HQ em um quadro: sudeste da Ásia na BD clássica, por Peyo e Delporte

Benoît Brisefer chega em Khben-Nogbang (Peyo, Yvan Delporte, 1968): bem na época em que houve a polêmica a respeito do brasileiro executado na Indonésia, eu estava lendo esta história do personagem Benoît Brisefer, clássico belga criado por Peyo (de "Schtroumps" e "Johann e Pirluit"). Aqui, o simpático mini-herói (edição: "Os doze trabalhos de Benoît Brisefer") precisa recuperar nove pedaços de papel dos títulos de um terreno com petróleo que estão espalhados pelo mundo. Isso o leva até um "certo país no sudeste asiático", descrito no letreiro do quadro aqui destacado desta maneira: "Khben Nogbang, cidadezinha do Sudeste da Ásia, mistura o charme pitoresco do extremo oriente aos benefícios da civilização ocidental...". Ao olharmos para o quadro, vemos não apenas a cidade viva, magnificamente representada no traço gros nez de Peyo, como também as propagandas de Coca-Cola ironicamente emplacadas acima das lojinhas orientais. Ora, longe de querer fazer qualquer análise pseudossociológica que compare a situação sociocultural do sudeste da Ásia com a história da BD francobelga, eu gostaria apenas de apontar algumas curiosidades ao redor deste requadro.

Fuzilamento no sudeste da Ásia... Peyo já foi chamado de racista e comunista, e creio que neste caso sua intenção era fazer uma discreta denúncia dos "males do capitalismo" chegando de maneira ambígua a "tão bárbaro país". O imaginário sobre a Ásia, e especialmente do sudeste asiático (guerra do Vietnã pegando fogo) no meio dos anos 60 dificilmente seria outro: não apenas Peyo e Delporte não nomeiam o país, tratando-o como alguma substância genérica, como logo à frente o pequeno herói se envolve rapidamente em uma trama militar, mostrando os soldados (amarelos) do sudeste da Ásia prestes a fuzilar (por engano, lógico) um "honesto" arqueólogo europeu. Logo emerge, obviamente, o imaginário do colonialismo "cientificista" belga (e francês), e em plena era das descolonizações. Logicamente, os militares de tal país são mostrados como vilões atrapalhados, que caem na astúcia de Benoìt, mas ao mesmo tempo choca a imposição de suas leis brutais, de suas sanções severas, ditatoriais. Se pensarmos hoje na Coreia do Norte, ou neste caso de execução na Indonésia, etc, de que lado estariam efetivamente Peyo e Delporte? Na denúncia da "praga capitalista" ou no estereótipo racista que constroem a respeito das culturas que eles, de maneira tão colonialmente paternal, querem "proteger"?

A China de Hergé

A resposta reside, obviamente, na ambiguidade. Se hoje estas questões são plurais e apontam para vários lados, imagine nos anos 60, quando um imaginário de identidades sólidas e iluministas ainda vigorava com força em países como a França e a Bélgica. Isso tudo poderia levar a mais um debate inútil sobre Charlie Hedbo, mas eu prefiro olhar ainda mais para o passado e pensar a HQ de Tintim O lótus azul, de Hergé (1936). Muito criticado pelo viés racista e canhestro de seu Tintim no Congo, Hergé, afetado por uma crise identitária, resolve, na época, fazer da investida do personagem na China uma verdadeira experiência etnográfica e transcultural, consultado um amigo chinês a respeito dos costumes e de maneira de ser dos chineses, à época em um impasse político graças ao imperialismo japonês, retratado na história. O detalhismo cultural perseguido por Hergé aqui é fotográfico: das casas de ópio às cidades, à natureza e aos veículos, a China era processada e representada com respeito, numa trama também militar, mas menos esquemática do que na HQ de Peyo. Há inclusive uma página inteira de desambiguação dos estereótipos chineses, e Tintim e o chinês Tchang desenvolvem terna amizade.

O que quero chamar a atenção é que esta esquizofrenia representacional e de posicionamento político que apontamos em Peyo e Delporte (é sempre um "alvo fácil" mirar uma obra de outro contexto histórico e cultural) também existe no mestre "intocável" Hergé. Qual Hergé preferimos ler: o racista do Congo ou o humanista da China? Seria fácil defender um ou outro dependendo dos propósitos e intenções ideologizantes que construímos a priori. Não se enganem: Os doze trabalhos de Benoît Brisefer é uma ótima história em quadrinhos: é dinâmica, ilustrada e narrada com a excelência da BD clássica, e um lindo inventário sobre o envelhecimento e a maturidade. O personagem é até mais cativante do que a contrapartida mais famosa das criações de Peyo (Schtroumps), além de dar um tabefe irônico na cultura de super-heróis. Até ganhou um filme recentemente. Talvez bons produtos culturais possam (e até devam) ser ambíguos, facilitando o destrinchar da complexidade que envolve nosso posicionamento ético e político nos dias de hoje.

Por fim, escrevi tudo isso para me ajudar a pensar também a capa da última revista Fluide Glacial, que, num movimento (talvez honesto) anti-Tintim (reparem que o desenho faz referência ao quadro de O lótus azul), retrata um "francês típico" carregando um chinês rico (com um loira) em uma Paris completamente dominada pela cultura chinesa, com a seguinte chamada: "Perigo amarelo! E se já for tarde demais?" A capa da tradicionalíssima revista de humor francesa (ops...) já provocou stress diplomático com a China. Enfim, novos tempos, mas a polêmica histórica continua... (CIM)  

HQ em um quadro: join the dark side, por Blain e Lanzac

Arthur Vlaminck sonha com seu ministro vestido de Darth Vader

(Christophe Blain, Abel Lanzac, 2010): sejamos francos: que interesse poderia haver em um quadrinho hiperrealista sobre a diplomacia francesa? Um quadrinho obcecado com a minúcia e a técnica do ofício, com pouco cartum, pouca narratividade, poucos pontos de virada, excessivamente repetitivo, com personagens que parecem perfeitos exemplos monótonos do que acontece em certos setores do funcionalismo público. Ora, convenhamos que está aí um pouco da graça. Quai d'Orsay (como é conhecido o Ministério das Relações Exteriores francês) teve seu roteiro concebido justamente por um diplomata que lá trabalhou no início dos anos 2000, e foi pensado em cima de vivências reais. E o fato de ser um tipo de história para insiders do mundo da diplomacia o torna um tanto enigmático e desafiador, especialmente considerando-se que a cada página conhece-se mais sobre um universo novo para a maioria das pessoas. O tom blasé (uma certa mistura do humor europeu com Dilbert) do quadrinho produz um tipo de anestesia que contamina como que por uma osmose de escritório: como o funcionário que trabalha ali dia-a-dia, vamos acompanhando reuniões enfastiantes, discursos que são refeitos mil vezes, ações megalomaníacas dos quadros superiores, etc. Acabamos nos juntando a este humor discreto erigido sobre o banal ao nos tornarmos, também, funcionários do Quai d'Orsay.

A HQ trata da trajetória de dois personagens principais: a do jovem diplomata Arthur Vlaminck, que é encarregado de escrever os discursos do Ministro das Relações Exteriores Alexandre Taillard de Vormes (baseado no ex-Ministro francês Dominique de Villepin), e a do próprio Ministro. O primeiro, em princípio acanhado, vai ganhando dimensão na medida em que começa a compreender as contradições e dificuldades hercúleas de seu ofício, sendo "seduzido" cada vez mais pelo "lado negro" da força representado pelo aspecto workaholic, midiático, idealista de fachada e contraditório do Ministro. Um interessante jogo de bastidores políticos e diplomáticos se instaura enquanto vamos acompanhando e conhecendo a maneira com que se decide uma intervenção em algum país africano, ou um discurso na ONU, por exemplo. No final das contas, o que parecia uma monótona narrativa copiosa sobre o cotidiano burocrático da diplomacia ganha ares shakespearianos quando grandes decisões precisam ser tomadas, cada palavra falada precisa ser medida e a vida de pessoas entra em jogo. Obviamente, por efeito cômico, o caso edipiano de Star Wars, em toda sua opulência dentro do pop, serviu mais aos autores do que Shakespeare, e vemos, no final do Volume 1, Vlaminck sonhando com Taillard vestido de Darth Vader (sem perder os trejeitos efusivos), procurando convencê-lo a abandonar sua vida pessoal e a se dedicar integralmente à "causa" da diplomacia. Bastante premiado (inclusive em Angoulême), Quai d'Orsay ganhou uma versão cinematográfica de sucesso em 2013, e é uma das melhores BDs francesas da atualidade. Fiquem de olho aí, editoras. (CIM).   

Chninkel: o grande poder da obra-prima

por Ciro I. Marcondes

Um Chninkel

Às vezes no deparamos com uma obra-prima assim de supetão, sem qualquer previsão, buscando apenas uma leitura descompromissada. Não que eu não esperasse nada ao abrir O grande poder de Chninkel (Le grand pouvoir de Chninkel), obra em quadrinhos que impressiona já numa breve folheada, graças ao vigor e à robustez dos desenhos barbáricos do grande ilustrador polonês Grzegorz Rosinski. Conhecendo também o trabalho do clássico roteirista belga Jean Van Hamme – que, entre outras coisas, trouxe ao mundo a série de fantasia Thorgal, a detetivesca XIII e as aventuras do bilhardário Largo Winch –, era de se esperar algo refinado, num primeiro escalão de BDs estilo Métal Hurlant, cheio de aventuras prodigiosas e cenários hiperimaginativos. Porém, vale frisar, eu não esperava uma obra-prima.

Mas o que qualifica esta BD como obra-prima? Chninkel foi publicado em 1986 na revista belga (A Suivre), editorada pela Casterman, e, em alguns aspectos, é a típica HQ francobelga dos anos 1980: passa-se em um mundo de fantasia cheio de raças exóticas, guerras intermináveis e déspotas execráveis; além disso, é imersa em um quase interminável ciclo de aventuras e peripécias, num modelo epopeico, que carregam o leitor rumo a uma clássica jornada heroica; por fim, doses generosas de violência e erotismo confirmam a tendência desta HQ em capturar os aspectos mais gerais que definiram esta época como uma das mais vertiginosas da BD.

A exuberante arte de Rosinski

Para além dos clichês já representados no próprio background da história, Chninkel se destaca por ser um tipo de parábola religiosa que é, ao mesmo tempo, uma paródia e uma crítica ao universo do evangelismo. Sua história é a de Daar, um mundo em constante guerra, dominado por três imortais e seus povos, que subjugam e escravizam tantos outros: Zembria, a ciclope, que rege um grupo de ferozes amazonas; Barr-Find, o mão-negra, líder de um grupo barbárico de humanos; e Jargoth, o perfumado, que lidera uma raça de elfos que voam em orquídeas carnívoras. No meio de eterna guerra entre os três imortais, uma raça de escravos chamada Chninkel (uma espécie de ratinho antropomorfo) luta por sua própria sobrevivência. As sete páginas iniciais, que mostram o contexto e os atos sanguinolentos de batalha, são particularmente primorosas – apocalípticas, exuberantes, desoladoras.

Um dos chninkels, J’On, sobrevive a uma batalha avassaladora, e, ao ver-se só em meio a uma multidão de cadáveres, presencia a aparição de um monólito negro (tal qual em 2001) que se apresenta como o Grande U’N, mestre criador de mundos. A figura divinal explica-lhe então a sua insatisfação com o mundo em guerra e confere uma missão ao pobre Chninkel: no curso de cinco cruzamentos de sóis (o “ano” no mundo de Daar) ele deve conseguir acabar com todas as guerras em seu mundo. J’On, percebendo sua pequenez diante de tamanha responsabilidade, questiona o criador de mundos sobre porquê ele ser o escolhido, no que a figura divinal responde: “Eu sou encarregado por uma infinidade de outros mundos e de milhares de milhares de seres que criei. Você pensa que eu tenho tempo de procurar qualquer outro neste mundo aqui? Será, portanto, você, J’On, o escolhido”.

Enquanto U’N parece uma figura divinal tirânica, amarga e opressora tal qual Jeová no Velho Testamento, J’On vai se transformando, pouco a pouco, de uma figura à Moisés (afinal, ele tem de livrar seu povo da escravidão e ouve diretamente um chamado de seu Deus) em uma à Jesus Cristo. Logo percebemos que O grande poder de Chninkel tem uma clara intenção de produzir uma reflexão sobre a ética da Bíblia como um todo. Se, em algum momento, pensamos que há nesta HQ certo proselitismo cristão, percebemos, ao final da leitura, que seu verdadeiro sentido reside em ironizar o monoteísmo como um todo, colocando todas as complexas linhas narrativas e desdobramentos da trama à mercê de um ato egoico, paranoico e vingativo concentrado nas mãos de uma imagem onipotente.

"Doses generosas de violência... e erotismo"

Excelente design de criaturas

J’On, assim, vai viver uma série de peripécias que deflagram sentido claramente mitológico, concentradas em cenas e atos que se configuram como parábolas, e onde rapidamente percebemos figuras e atos presentes nas próprias fileiras dos evangelhos, como Maria Madalena, Judas, os evangelistas, a travessia do deserto, etc. Estas peripécias são narradas com tal desenvoltura, envolvendo-nos em meio a raças particulares, cenários exóticos e coadjuvantes carismáticos, que a linhagem bíblica que parece a todo tempo nortear a história não impede que nos surpreendamos a cada instante. Cada solução pensada por Van Hamme para as armadilhas que a jornada reserva são carregadas de soluções criativas, saídas inesperadas, pequenos milagres que, no contexto da história, não parecem forçados. Cada sincronismo presente na narrativa lembra mais, efetivamente, um evento mitológico do que um deux ex machina, ainda que este recurso seja utilizado no final, mas mergulhado em franca ironia.

Excelente design de máquinas

A arte de Rosinski ajuda tudo a se tornar mais épico, com o amplo uso de splash-pages, megarrequadros e lettering expressivo. Além disso há um aproveitamento do preto-e-branco robusto e sensual, com detalhamento minucioso nas expressões dos personagens e excelente design de criaturas, máquinas e cenários. Seus quadros contêm intensa movimentação, praticamente sem linhas de ação, fazendo-nos supor este movimento, tal qual um Delacroix, a partir de uma cinética inerente à expressão do desenho. Em cada mínimo detalhe, um primor.

Chninkel por vezes é tão intenso em seus movimentos que parece que estamos vendo uma animação, ao invés de lendo uma HQ.

Parábola sobre o poder

Por fim, como se tudo isso não fosse suficiente para caracterizar

O grande poder de Chninkel como uma obra-prima dos quadrinhos, falta falar sobre o próprio poder em si, o que talvez seja a elaboração mais sutil, e ao mesmo tempo a mais importante da HQ. Vamos lembrar, em primeiro lugar, que J’On não sabe exatamente qual a natureza de seu poder “milagroso”, e a todo instante ele questiona se sua “visão” do U’N não foi um sonho ou uma alucinação. Sem qualquer poder que lhe esteja disponível, cabe a ele o tempo inteiro exercer seu poder de dúvida, um pouco como Jesus em A última tentação de Cristo, e se deixar levar pela missão como que por intuição. Assim, o pobre Chninkel é também uma espécie de Forrest Gump, e as coisas vão se sucedendo como que se fossem ao mesmo tempo milagres e coincidências. Esta perspectiva abre um olhar muito interessante sobre a natureza, digamos, gnóstica do mundo, onde existe uma dupla face de acontecimentos, uma na esfera do divino e do sobrenatural, e outra nas leis da física e da materialidade. Os acontecimentos, de qualquer forma, são os mesmos, e o leitor deve escolher qual a percepção que melhor lhe sensibiliza, duvidando junto com o Chninkel e tendo de oscilar entre interpretar a história como uma fábula paródica (no caso do poder ser falso) ou como uma fábula holística (no caso dele ser real). Vivenciar estes acontecimentos, no fim das contas, seja qual fora a sua natureza, é o que parece contar.

A própria natureza do poder em si, bastante tolkeniana (que, por sua vez, é também cristã), é problematizada a partir do momento em que percebemos que J’On não ostenta um poder bélico, ou mesmo sobrenatural, mas sim demarca sua posição política com ideias e uma intervenção não-violenta, tal qual Ghandi, através do diálogo e do poder de arrebanhar seguidores. O poder de O grande poder de Chninkel é, portanto, um poder moral, um poder invisível, presente em qualquer um, e não apenas em um escolhido por Deus. Esta mensagem, a de que as forças motivadoras que transformam a humanidade estão nos indivíduos, ecoa mais em um existencialismo sartreano do que propriamente na doutrina Cristã. A ironia é que, para ser impulsionado a, sozinho, libertar seu povo, J’On precisa ter uma alucinação religiosa. A religião é colocada como uma falsa força-motriz, um poder motivador capaz de mover montanhas não por sua natureza sobrenatural, mas sim por sua força de congregação social, tal qual pensava, por exemplo, Durkheim. Fica a impressão de que J’On poderia realizar toda a sua façanha sem qualquer visão ou “missão” divina, apenas acreditando em sua força individual. Porém, resta também a questão dialética que diz que ele também não poderia fazê-lo, afinal, a religião seria a única motivação capaz de movimentar esforço tão descomunal. Impasses de um texto ambíguo.

A despeito do final sinistro e assombroso, mais afeito a um niilismo hipercínico, parodiando o apocalipse bíblico, todo o caráter épico de O grande poder de Chninkel, associado às suas várias matrizes de interpretação e à sua arte de primeira grandeza, nos levam a pensá-lo como uma das obras definitivas da BD. Obviamente é difícil pensar em uma obra de ficção nas histórias em quadrinhos atuais que levante tantas questões, e ao mesmo tempo com tanta estranheza e tanto impacto estético. Certamente traduzi-lo para o português deveria ser uma prioridade e uma urgência.

HQ em um quadro: Jodorowsky for kids, por Arno e Jodorowsky

Holibanum, Alef-Thau, Diamante, Malkuth e Hogl... caem (Jodorowsky, Arno, 1989): Certamente não é recomendável escrever sobre uma obra da qual constam oito volumes e que atravessou duas décadas tendo-se lido apenas um deles, mas, apesar de em alguma instância isso aqui consistir nisso mesmo, tentarei fazer o possível para que este possa ser um texto honesto. Afinal, é função da seção "HQ em um quadro" capturar algo de essencial nos quadrinhos a partir de uma única imagem, e resolvi tornar esta pequena reflexão desafiadora justamente por esta dificuldade. De qualquer forma, confesso que comprei essa HQ pelo preço 1 (um) Euro, numa promoção da incrível Elektra Cómics em Madrid, e não sabia que era o miolo de uma série grande. A ideia aqui é atingir o âmago desta história de maneira volátil, rápida, e se possível, certeira. O que vemos aqui são cinco personagens da série "As aventuras de Alef-Thau"... caindo. Esta cena está no Volume 5 da saga: El Emperador Cojo (em espanhol); L'Empereur Boîteux, no original. O contexto da imagem merece uma linha: o grupo cai porque foge, através de um rio, de uma infestação de "vírus hipertrofiados" que consome tudo que a circunda. No final das contas, eles caem num local seco, porque a presença da imortal Diamante faz desaparecer tudo que tenta matá-la, incluindo o rio e os vírus. A paisagem é de um colorido vívido e claro, e as formações rochosas são lindas, angulosas e fluidas, algo como a Chapada dos Veadeiros aqui no DF. A geologia e a botânica do mundo mágico é um dos atrativos desta HQ. Parece uma maluquice? Pois bem-vindo ao mundo de Alejandro Jodorowsky, o inimitável criador desta história. Selecionei este quadro com os cinco aventureiros porque ele parece expressar, de maneira metonímica, os componentes básicos deste universo: senso de aventura, o sentimento do companheirismo, o risco constante, o mundo fantástico, a chance ao improvável. O que chama a atenção nesta série é o fato de o grande Jodoroswky, autor de filmes incríveis, como A Montanha Sagrada (chancelado por John Lennon) e El Topo, e da enormemente cultuada série Incal, com Moebius, ter escolhido trabalhar, paralelamente à sua obra-prima, nos anos 80 e 90, com uma série de fantasia quase infanto-juvenil, elaborada no traço límpido (quase linha-clara) do desenhista Arno. "As aventuras de Alef-Thau" pode não conter as reviravoltas catastróficas, os desdobramentos metafísicos, a inflexão religiosa e as culturas intensamente alienígenas do Incal, mas certamente guardam seu valor. Para situar o leitor: "Alef-Thau" se passa um mundo ilusório (?) de fantasia que é na realidade um jogo (literalmente) entre os chamados imortais. O personagem principal e título da saga, uma figura élfica, começa como um aleijado sem braços, nem pernas e nem perspectivas, que vai ascendendo espiritualmente enquanto seu corpo se recompõe, membro a membro.

Se a história parece insólita, tenho certeza de que não soará tão estranha àqueles já familiares ao universo do Jodorowsky. Cineasta, quadrinista, mago, ator, mímico, dramaturgo, tarólogo. A tudo compete este homem. Suas obras são mergulhadas numa busca por transcendência, onde figuras que se tornaram signo de alteridade, como bruxos, aleijados, anões e assassinos, buscam sua própria forma de redenção mística. Cabalismo, sociedades secretas, hermetismo e bruxaria não são elementos estranhos à ordem cósmica estabelecida por Jodorowsky, e eles podem aparecer tanto no passado distante ou inexistente (caso da fantasia de Alef-Thau) quanto no futuro cyberpunk pós-apocalíptico (caso de Incal). Seu interesse pela moralidade e pelo limiar da sexualidade rendeu também outras obras clássicas, como Os Bórgias (com Manara) e La folle du sacré-couer (também com Moebius). Mas o que parece ser mais primordial na obra deste grande mestre é sem dúvida o aproveitamento de uma estética surrealista como foco de resistência: a uma tradição narrativa ordinativa, bestializante e ilusória; a uma ordem lógica racionalista do pensamento, francamente aprisionadora; a uma série de barreiras psicológicas e espirituais que impedem o desabrochar de um inconsciente livre, totalizante, produtor de um verdadeiro self.

Alef-Thau traz estes elementos de maneira leve, aventureira e contagiante, como se fosse O Senhor dos Anéis que tivesse tomado, digamos, um quarto de ácido. A série é ajudada pelo desenho luminoso e super colorido de Arno, grande ilustrador que, por sinal, faleceu em 1996 e veio a aparecer como personagem na continuidade da série (coisas de Jodô). Mesmo assim, Alef-Thau não é desprovida de enredamentos instigantes, lisérgicos, non-sense ou, em última instância, completamente incompreensíveis, tais como, apenas na edição que eu li: 1) uma personagem, Malkuth, que se suicida transformando-se em energia vital para vir a ser... a nova perna de Alef-Thau. 2) uma cidade habitada apenas por pessoas feias, defeituosas ou velhas, que foram expulsas do celestial Reino do Centro Maestro, lugar encantado que aceita apenas pessoas "perfeitas", pois que seu ideal máximo é a beleza. 3) uma personagem-imortal (Diamante) que morre e renasce como um bebê que simplesmente...cresce muito mais rápido que todo mundo e logo é uma adolescente madura que pode procriar com... Alef Thau. A lista poderia prosseguir em torno de viagens astrais e monstros gigantes. Não o faremos, mas resta pensar, em primeiro lugar, na fertilidade de produção de uma mente febril e absolutamente desvinculada de qualquer premissa clássica que é a de Jodoroswky. E, em segundo e último lugar, em quão longe podem ir as HQs e a ficção em geral para adolescentes, e em quão rasos estes produtos realmente são em suas versões mais populares (literatura de vampiros, filmes de super-herói, séries de zumbis... melhor parar por aqui) . (CIM)    

Peripécias de Laureline e Valerian

por Ciro I. Marcondes

Uma Pilote com Valerian na capa

Os anos 1960 viram uma intensa virada de paradigma na HQ francesa (BD) graças à publicação de uma revista que faria história, responsável tanto pela maximização do quadrinho de humor escrachado (gros nez), especialmente com Asterix, como pela sua superação, através de outros gêneros que foram tomando corpo e ganhando as páginas da revista, como o faroeste (Blueberry), a aviação (Tanguy e Leverdure), e a ficção científica (Lone Sloane). Autores geniais desta nova fase da BD franco-belga debutaram na Pilote: Bilal, Moebius, Charlier, Druillet, Godard, Lob, Pichard, etc. O gênero sci-fi, intimamente associado ao quadrinho barbárico (veremos), vai ganhar cada vez mais impulso e, no anos 1970, se glorifica com a publicação de Métal Hurlant, nascida das impossibilidades editoriais da Pilote, sendo uma revista com conteúdo de imaginação mais densa e filosófica, de qualidades lisérgicas, eróticas, um ápice. Mas isso é outra história.

Um dos principais quadrinhos da Pilote responsáveis por fazer esta ponte foi justamente a série Valerian, agente espaçotemporal (ou, na edição portuguesa a que tive acesso, agente espácio-temporal), escrita por Pierre Christin e ilustrada por Jean-Claude Mézières. Longe ainda do apelo transcendental das HQs de Druillet, Moebius ou Dionet, Valerian, publicada primeiramente em 1967, é fruto da mentalidade juvenil e transitória da revista. A saga deste simpático agente responsável por patrulhar o tempo e o espaço juntamente com sua namorada Laureline tem contornos mais space-opera, com a presença de grandes impérios galácticos (o da Terra, especialmente), aventuras cruzando o espaço sideral e a aparição de inúmeras culturas alienígenas, antropomórficas ou não, chegando até povos primitivos, barbáricos, pouco evoluídos, que precisam conviver com espécies capazes de construir tecnologias que parecem feitas de pura mágica. Nada que você não tenha visto em Star Wars, mas pensado antes disso.

A origem desse afã pela ficção científica e pela fantasia (e, especialmente, pelos dois juntos no mesmo espaço) certamente está ligada, primeiro, a uma tradição oriunda da sci-fi apocalíptica (Bradbury) e aventuresca (Asimov) da literatura americana dos anos 40 e 50, além dos pulps descartáveis com monstros radioativos e ETs invasores. Os franceses, além disso, tinham em seu imaginário infanto-juvenil a presença de Jules Verne, o que certamente delineou uma tradição de sci-fi em suas fileiras culturais. Por fim, eu suspeito que a mentalidade  new age surgida com o grande despertar da cultura jovem nos anos 60 tenha de alguma forma associado o gênero sci-fi a algum tipo de escrita por excelência da utopia, considerando que o gênero tem esse privilégio de poder ser arriscar literariamente em cenários e contingências radicais para se pensar as culturas humanas, sejam elas a do futuro distante, a do passado arquetípico ou a do sonho.

Laureline: cintura de pilão

A série Valerian, agente espaçotemporal tem longa trajetória (mais de 10 álbuns produzidos pela equipe original, além de ser publicada até hoje e ser base para uma série animada) e consagrou seus autores. Christin, especialmente, chegou a trabalhar com Uderzo e produziu histórias célebres ilustradas pelo lendário Enki Bilal. O volume de Valerian que me chegou em mãos, O embaixador das sombras, é português e foi editado pela Meribérica, tendo sido lançado originalmente pela Dargaud em 1975, pertencendo, portanto, à fase mais avançada do título.

Kafka para crianças

Ponto central: a legenda a descreve bem

Narrada com desenvoltura e toda elaborada no traço elegante, um tanto cartunesco, de Mézières, esta é uma HQ que, por mais que levante algumas pretensões mais inteligentes a respeito de ética e política, não se esquiva de ser um divertimento prioritariamente juvenil. Seja no seu traço lindamente infantilizado, ou no fato de se basear em uma tradição épica (de contar grandes histórias, cheias de peripécias), tudo em Valerian nos remete ao mesmo tempo ao auge da HQ clássica, na era ouro (coisas como Flash Gordon), e a um apontamento para o futuro da HQ francesa – a sci-fi metafísica de Métal Hurlant. A beleza de ler este elo perdido está justamente em voltar a um ágil imaginário de aventuras juvenis (como os livros de Lucky Starr, de Isaac Asimov) sem que elas nos enganem por serem simplesmente pueris. Valerian nos joga no mundo das crianças, mas nos respeitando como adultos, algo que as BDs fazem sem concorrente equiparável na HQ mundial.

Em O embaixador das sombras, Valerian, Laureline e um embaixador terrestre estão se dirigindo a “Ponto Central”, uma espécie de grande babilônia espacial, ao mesmo tempo estação e um aglomerado natural de centenas de culturas de diversas partes do universo que se refugiam por lá. O local é tão vasto e incompreendido que em suas galerias há várias zonas abandonadas, aquáticas ou mesmo não-mapeadas. Em uma espécie de “golpe de Estado”, tanto Valerian quanto o embaixador são sequestrados por uns tipos um tanto terroristas, e Laureline fica sozinha na imensidão de Ponto Central, tendo em mãos apenas um animal capaz de transmutar qualquer coisa em outra (“magicamente”) e como ajudante um paspalho oficial responsável pela recepção do embaixador.

Astúcia!

O embaixador das sombras é uma HQ muito versátil, dinâmica e engenhosa por uma série de fatores: em primeiro lugar, o protagonismo é revertido. Valerian, naturalmente, é o herói da série, com sua altivez suicida e blasé, à Corto Maltese, mas, neste volume, quem manda ver é Laureline – destinada a enfrentar uma multidão de alienígenas inescrupulosos, mercenários, muitas vezes lúbricos, até que possa resgatar os “frágeis” homens sequestrados. Mais uma vez fazendo jus à tradição épica que a BD resgata dos clássicos greco-latinos (Odisseia, Eneida, etc.) Laureline não tem outra opção a não ser sobrelevar a característica épica mais polivalente: a astúcia.

Os Shingouz

Como ágil diplomata e às vezes como sorrateira negociadora, ela vai atravessando um mar kafkiano de pistas em zonas cada vez mais perigosas até que possa obter o paradeiro de Valerian. Percebam: primeiro, ela negocia com os horripilantes e pouco confiáveis Shingouz, mistura de morcegos com tamanduás, que os levam até os Kamunik, centauros medievais dados a provações e testes de resistência, que os levam até os sórdidos e ameboides Suffus, que dominam o mundo dos prazeres e das fantasias, e os reconduzem até os libidinosos Bagoulins, que, por meio de alucinações, os fazem chegar até os Groubos, que se parecem com dinossauros aquáticos e andam junto com os Zuurs, águas-vivas capazes de travar contato telepático, e assim sucessivamente...

A cadeia kafkiana pela qual essa garota tem de passar (um pequeno calvário feminino), como se pode ver, é imensa e muito fértil na variedade tanto morfológica quanto cultural de alienígenas. Certamente Christian nutria imenso prazer nesta arte demiúrgica de criação de mundos, culturas e seres que inundam a ficção-científica e a fantasia como um todo, assemelhando-se a Borges no seu bestiário (O livro dos seres imaginários). Este prazer, o de criar e o de travar contato com novos mundos, fruto da especulação livre da imaginação, certamente é um dos trunfos destes dois gêneros, que se inserem nestas zonas libertárias da mente, nestas possibilidades de desamarração do cotidiano em coisas outras, que desimpedem princípios rigorosos de realidade e nos permitem almejar saltos em queda livre existencial. Daí, talvez, a presença dos dois gêneros misturados em obras híbridas, como a space opera ou space fantasy, como já vimos em Storm, O andarilho dos limbos, Agaragem hermética e, é claro, em Star Wars.

Os Suffus

Em O embaixador das sombras, o final não desmente essa lógica híbrida, essa fusão do arcaico com o futuro tecnológico (como se, urobóricos que somos, nosso futuro avançado necessariamente nos trouxesse de volta à nossa origem primitiva – uma coisa, assim, meio 2001, meio Nietzsche). Valerian estava, afinal de contas, em uma das últimas e mais escondidas portas de Ponto Central, onde uma sociedade selvagem, aparentemente aborígine, vivendo bucolicamente na praia há milhares de anos, detém o conhecimento sobre o universo.

Os Kamunik: onde a fantasia medieval se funde ao sci-fi

Bons selvagens?

Essa regressão rosseauniana, apesar de extremamente apressada (como todo tipo de transição em Valerian) coloca em choque as duas visões tradicionais da ficção-científica apresentadas a Laureline em suas peripécias: a da babilônia futurística e mágica, onde inexiste a ética e tudo é comprado através da subversão e da perversão (do alma, dos bens materiais, do corpo); e a do paraíso utópico em que, passados todos os estágios da civilização, retorna-se a um universo zen embrionário (como um útero ou um paraíso perdido), minimalista, de eterno retorno de todas as coisas. Se uma história tão simples é capaz de trazer um pouco de Homero, Kafka, Rousseau ou Nietzsche às crianças, não há porque se queixar das incoerências e trapalhadas narrativas que poderiam ser denunciadas nesta clássica BD.

Valerian pode ter envelhecido em vários aspectos, mas o entusiasmo juvenil de sua essência permanece intocado, e é isso que importa para que siga sendo lida.

A morte, sempre

por Ciro I. Marcondes

Elijah faz parte da polícia filosófica e não pode morrer. Não que ele seja um imortal invulnerável, ou que não possa envelhecer. Elijah simplesmente vive em um mundo onde os seres humanos podem construir clones de si mesmos (“ecos”) que guardam em si todas as memórias precedentes, como a cópia de um arquivo de computador. Se um eco morre, os outros, como backups, carregarão as memórias e cópia idêntica do corpo físico daquele que faleceu, trazendo extensão e continuidade eternas às pessoas, que podem morrer apenas se decidirem matar todos os seus ecos.

É dentro desta lógica de imortalidade calculada em base de dados que se passa a incrível história de Os últimos dias de um imortal (Les derniers jours d’un immortel, Futuropolis, 2010), produzida  por dois talentos da BD francesa atual: o desenhista Gwen de Bonneval e o roteirista Fabien Vehlmann, que realizam trabalhos juntos desde os anos 90, quando se conheceram na cidade de Nantes. Este trabalho, talvez o mais ambicioso da dupla, esteve na seleção oficial de Angoulême em 2011, e é uma das obras mais criativas que vi em ficção científica recentemente. Singela, clean, introspectiva, cheia de pequenos apontamentos para as causas humanas, Os últimos dias de um imortal é uma graphic novel para ser lida e relida em suas várias possibilidades e penetrabilidades, como se cada enfoque (filosófico, antropológico, jurídico) dos temas abordados pela HQ fosse uma lente diferente que demandasse atenção exclusiva do leitor.

Elijah vive num mundo utópico e obedece a uma espécie de federação galáctica que controla as diversas espécies de alienígenas que precisam conviver a partir de suas brutais diferenças: fisiológicas, culturais, orgânicas, existenciais. Em um mundo ordenado e funcional que é operado por tecnologias que lembram magia, e em que os seres humanos podem desfrutar de uma imensa variedade de comportamentos culturais (como por exemplo se metamorfosearem em outros corpos para prática de sexo esportivo!), a função da polícia não deve deixar de ser filosófica. Para resolver crimes ancestrais, querelas arcaicas e impasses de profunda dimensão, um policial como Elijah deve ser um homem sereno, dotado de habilidades diplomáticas e conhecimentos de filosofia e antropologia. Em Os últimos dias de um imortal, o crime é um conceito que tange o pensamento filosófico, e não jurídico. De alguma forma, associando a motivação da criminalidade à proposição ética, e não estatística, esta HQ se aproxima de uma obra como Crime e castigo. Numa sociedade utopial, é legítimo voltar às ambições e motivações mais arraigadas para que o crime seja entendido como dedobramento de seus primeiros princípios, e sirva como complemento desta mesma sociedade.

Os últimos dias de um imortal vai desenvolvendo estes temas de maneira morosa, no traço limpo e quase juvenil, num preto-e-branco azulado, de Bonneval. A narrativa privilegia espaços abertos, modernistas, grandes quadros silenciosos, e diálogos lacônicos, ensimesmados. Em sua visão futurista soft, vamos passeando por obras de arte voadoras, espécies com um só espécime, seres que se comunicam pelo paladar, além de uma gama incrível de criaturas exóticas, como se Star Wars resolvesse dar verdadeira dimensão cultural ao seu variado número de monstros. Este aspecto, antropológico (ou antropobiológico, já que estamos falando de culturas não-humanas), soma-se ao debate diplomático e a uma ontologia da morte para cultivar verdadeiro leque de profundidades interessantes que os desdobramentos da trama são capazes de provocar.

Vale explicar: o cenário desta HQ, com seu estoicismo estético, já seria por si só uma forma provocativa e ampla de se registrar a arte dos quadrinhos, mas o roteiro de Vehlmann acaba se concentrando em aspectos ainda mais envolventes. Em primeiro lugar, Elijah vê seu melhor amigo, com que cultiva uma relação de profunda simbiose, subitamente optar pela morte, eliminando seus ecos e lentamente sumindo da memória daqueles que o conheciam. Aqui, uma instigação bastante original sobre a memória se instaura: Elijah sofre não apenas por perder o amigo, num mundo onde a mortalidade se torna cada vez mais rara, mas também por perder a memória sobre esse amigo, revelando a contradição principal dos afetos humanos: sofremos com a memória porque optamos por mantê-la, e a mantemos porque precisamos dela como alicerce de nossa própria mortalidade. Em um mundo de imortais, memórias são inúteis, porque desgastantes, e Elijah sofre com os desdobramentos desta contradição.

Sci-fi em aporia

A morte, aqui, portanto, seja a morte física ou a morte da memória, acaba encontrando-se em profundo estado de aporia, ou seja, um estado do impossível ou do impraticável (segundo Aristóteles), a divisa de onde não se pode ver a fronteira, o locus em que se instala a não-passagem, o espaço do não-ser. A aporia, portanto, é onde repousa o problema, o eterno intermediário sobre o qual não há solução, sobre o qual se reproduzem as intermitências da vida, um espaço a ser invadido, mas nunca compreendido, nunca contornado, nunca solucionado. Em conferência proferida em 1992, Jacques Derrida, em um belo texto, coloca a morte como a principal aporia, aquilo sobre o qual não podemos jamais falar. “Minha morte, ela é possível ?”, interroga-se o filósofo, como se, como evento fenomênico, fosse impossível falar-se da própria morte como se fala da morte do outro, já que a morte do outro pode ser observada, mas a de si próprio, não.

Neste caso, vale lembrar a belíssima passagem de Os últimos dias de um imortal em que Elijah recupera as memórias de um eco seu que morre devorado pelos temíveis seres Aleph: memórias traumáticas, de terrível dor e sofrimento, que levarão o protagonista a ressignificar a morte e a tomar drásticas decisões na continuidade da história. Todo este debate a respeito do desaparecimento da mortalidade leva à ideia de que este também seria o desaparecimento da aporia principal de todo o pensamento, desfazendo a aporia da morte mas criando outra, a aporia da imortalidade. Desta maneira, é neste jogo improvável entre morte e imortalidade que repousa o principal delineamento filosófico de Os últimos dias de um imortal. O que não é, afinal, a morte?

Esta questão encontra ressonância também no pensamento tardio de Jean Baudrillard (“A ilusão vital”), para quem nossa obsessão com o prolongamento da vida retoma um desejo de nossos ancestrais unicelulares, cuja carga genética era inteiramente reproduzida na divisão binária, tornando eles virtualmente imortais, exatamente da mesma forma que os “ecos” da HQ. Esta busca por uma imortalidade binária e estéril (Baudrillard chama o surgimento da divisão sexuada de “maior revolução da história”) parece ser justamente um dos últimos questionamentos da HQ. O impasse final de toda esta problemática parece ser, justamente, a resposta (impossível) da questão: desejamos/precisamos da morte?

Todo este debate, somado à crise antropológica/diplomática entre os seres Ganédons e Aleph (chegando a resvalar no terrorismo) que recai sobre a figura de Elijah, faz de Os últimos dias de um imortal uma ficção-científica toda especial, toda artisticamente entalhada, e humanisticamente perpassada. Diferentemente da BD clássica (Godard, Ribera, Forest, Druillet), que privilegia a space-opera e aventuras de fantasia, aqui temas uma renovação radical, adequada aos tempos atuais e necessária dos quadrinhos de ficção científica, voltada para um dos princípios do gênero, ainda tão translúcido: a ficção-científica deve colocar a humanidade em situações éticas impossíveis no mundo atual, mas verossímeis em um futuro presumido, e capazes de trazer respostas para perguntas de nossa época.

Não seria isso o mesmo que colocar em aporia?

Cosmosmurf e o inconsciente coletivo

por Ciro I. Marcondes

Uma coisa que diferencia essencialmente uma HQ como Schtroumpfs (Smurfs) de outra como Tintim é aquela velha oposição mythos x logos, que já vemos nos filósofos pré-socráticos, e que, em meio a um embate dentre duas das mais celebradas obras de nossa cultura pop, se torna um alegre festejar de dois olhares distintos que a humanidade pode lançar sobre seus próprios desígnios.

Explico-me: se a característica principal, fundadora, de Tintim é a sua racionalidade e sua argúcia, tornando-a uma HQ cerebral (conforme traduzimos do poder dedutivo e da verossimilhança das histórias de seu protagonista), em Schtroumpfs temos de tudo o contrário: conforme sempre nos lembramos nas piadinhas sobre estes personagens (“duendes azuis que vivem dentro de cogumelos. O que o autor disso anda fumando?”), os Schtroumpfs são basicamente calcados no poder imaginativo. Suas narrativas não possuem argúcia, dedutibilidade ou lógica. Temos de acreditar naquele universo inverossímil, mergulhar nele, confiar em sua capacidade de traduzir, alegoricamente, algo sobre nosso mundo.

O foguete de Tintim: racional projeto de propulsão

A síntese máxima desta oposição está na história do Cosmoschtroumpf em relação aos dois álbuns de Tintim em que ele prepara uma viagem, e depois viaja, à Lua. Se, no caso de Tintim, temos um roteiro cheio de conspirações, com detalhado e racional projeto de propulsão à Lua (sendo o primeiro álbum inteiro apenas um preâmbulo que prepara a organização científica da viagem), numa história cheia de jogos de interesses e planos complexos de sabotagem (foi escrita nos anos 50), no caso do Schtroumpfs, a aventura escrita e desenhada por Peyo possui tom completamente diferente. Em primeiro lugar, a temática do sonho já chama a atenção: Cosmoschtroumpf (seria como um Cosmosmurf) passa dias e noites pensando em como ver as estrelas, viajar pelo cosmos, conhecer outros mundos. Sua ambição (e obsessão) é tamanha que ele constrói um simpaticíssimo módulo lunar que funciona com propulsão à base de pedaladas, e reúne toda a vila dos Schtroumpfs para testemunhar seu feito. O problema é que, com alguma lógica, as pedaladas do Cosmoschtroumpf não são suficientes para fazer a genringonça levitar, deixando o pequeno astronauta (ou cosmonauta, conforme Peyo, que me parece que fosse comuna, preferiu chamar sua criação – à maneira russa) desolado.

A história, que já parecia mirabolante o suficiente, ganha um inacreditável plot twist quando o Grande Schtroumpf (“Papai Smurf”) resolve armar um plano – em tudo fantasioso – para agradar o pobre Cosmoschtroumpf. Dopado (como não deveria deixar de ser em uma aventura dos Schtroumpfs), ele é carregado, assim como todo o seu módulo lunar (desmontado), junto com toda a vila dos Schtroumpfs, para a superfície de um longínquo vulcão inativo. Lá, o módulo é reconstruído pelos outros (reclamões) Schtroumpfs, que, ao mesmo tempo, tomam uma poção (talvez um psilocybe cubensis), feita pelo Grande Schtroumpf, que os faz parecer alienígenas. Por alienígenas, é claro, entendam: eles ficam cabeludos, com uma cor caramelada, uma tanguinha de feno, e mullets! Em meio a uma paisagem exótica e “lunar”, o Cosmoschtroumpf acorda achando que atravessou o cosmos, travando contato com seus mesmos amigos, porém disfarçados como seres lunares.

Os Schlips: selvagens! E de mullets!

Não é preciso evidenciar muito o culto à farsa (ou seria melhor dizer: ficção) que esta história carrega. Já dentro de um universo completamente alucinado (a vila dos Schtroumpfs) temos a invenção de um outro mundo alucinado: o “planeta” dos Schlips, que é como os Schtroumpfs transformados se autodenominam. Os Schlips acabam se mostrando uma cultura um tanto tribal, um tanto primitiva, dando vazão à ideia fantasiosa de que, de alguma forma, se encontrássemos uma sociedade na Lua, ela seria semelhante aos nossos povos selvagens. Esta ideia, Peyo certamente a retirou do filme Viagem à Lua, do mago pioneiro do cinema Géorges Méliès, um dos filmes mais famosos de todos os tempos. Rodado em 1902 e inspirado em Júlio Verne e H.G. Wells, este brilhante filme de ficção científica (especialmente no que tange à comercialização do cinema, e ao mesmo tempo à evolução de sua narrativa) coloca o colonialismo do séc. 19 em pauta ao tratar os astronautas como uma mistura de astrólogos, astrônomos e exploradores britânicos, e os selenitas como mimetizações de tribos africanas.

Ao associar a ideia de progresso científico (viajar à Lua!) ao pensamento mágico (tipo de cultura mitológica), Méliès acaba completando um círculo incomum, desenvolvendo subliminarmente a noção de que, no fundo de qualquer progresso científico há a fantasia. No fundo de qualquer pensamento racional, de alguma forma, resta ainda o pensamento mítico. (veja o filme com trilha sonora do Air).

De alguma forma, portanto, o pensamento mágico de Peyo desconfia da nossa aterrisagem na Lua (realizada um ano antes da publicação da HQ), já que, da mesma maneira que o Cosmoschtroumpf é ludibriado pelos seus conterrâneos, nós poderíamos ter sido ludibriados pelo mesmo processo, só que com uma diferença: assistimos à aterrisagem na Lua pela televisão, que é o grande meio de comunicação do séc. 20. No mundo real, a fantasia proposta por Peyo (usando não apenas a imaginação, mas também sedativos e drogas) é substituída pela mídia, o conversor universal da fantasia por excelência. Que o homem tenha aterrisado na Lua ou não, isso não vem ao caso (apesar de evidentemente tê-lo feito). O que importa é lermos em Peyo a conversão de um pensamento mágico num pensamento midiático, relacionando inteligentemente as diferenças entre os mundos mitológicos dos povos antigos e os mundos “mitológicos” criados por um mundo midiático e atual, do qual as histórias em quadrinhos fazem parte.

Assim, sobra desta reflexão a noção de como Peyo representa um contingente dos quadrinhos franco-belgas (BD), chamado gros nez (nariz gordo), alinhado ao mundo da deformação, do grotesco e da alucinação (Schtroumpfs que o digam), enquanto Hergé e seu Tintim, fundador da chamada linha clara, se desloca para o universo do logos, das aventuras bem-engendradas e racionais, fincadas no chão, servas da verossimilhança. De um jeito ou de outro, seja na antiguidade ou seja no mundo pós-midiático de hoje, esta dupla de HQs se revelam arquétipos fortes, condensados, importantes para percebermos o local das histórias em quadrinhos no nosso inconsciente coletivo.