13 PERGUNTAS PARA GALVÃO BERTAZZI
/Há mais de duas décadas, Galvão Bertazzi esfrega na cara de todo mundo – em jornais ou na internet – quão besta a vida é. Ácido até a medula, o roqueiro que se criou em Goiânia e partiu pra Floripa tem sido um dos mais consistentes autores de tiras do Brasil. Tanto que durante o período em que a deusa-maior Laerte ficou afastada da Folha devido à Covid 19, foi Galvão o autor escalado para substituí-la. Passou no teste com louvor. Nessa entrevista ele relata a experiência e fala ainda de HQs longas, empreitadas editoriais, mercado, artes plásticas e desenhos animados. Assunto não falta pro sujeito. (Márcio Jr.)
1) Galvão, você passou por uma grande experiência agora há pouco, tendo que substituir ninguém menos que a Laerte na seção de tiras da Folha de São Paulo – provavelmente a mais prestigiada do país. Como surgiu esse convite?
Olha, "substituir" é uma palavra muito forte, se tratando da Laerte. Ela é insubstituível! O que eu fiz foi quebrar um galho, segurar as pontas enquanto ela se recuperava dos sintomas desse vírus bizarro.
Os editores da Folha me contactaram num domingo à noite e a ideia era ficar ali por uma semana. Acabei ficando três. Acho que no total foram 22 tiras enviadas pra eles.
2) Você sentiu algum tipo de pressão? Afinal, o afastamento da Laerte se deveu ao fato dela ter contraído Covid 19.
A pressão foi a seguinte: um dos meus projetos de vida é publicar naquela seção de tiras da Folha. Não escondo isso de ninguém e ninguém nega que aquele é o espaço mais prestigiado do Brasil, pra não dizer o único, em se tratando de um jornal impresso e diário.
Ser convidado pra publicar ali foi uma enorme alegria que não teve chance de ser manifestada por causa do motivo: a Laerte com sintomas fortes do Covid. Acho que dá pra entender o antagonismo da coisa, né?
Ao mesmo tempo em que a ideia de publicar ali era fantástica, eu só torcia pra que a Laerte se recuperasse o mais rápido possível pra eu poder devolver o espaço pra ela.
Note que numa situação normal ou menos aflitiva, eu teria comemorado aos quatro ventos o convite. Mas levando em conta a situação, respirei fundo e cumpri a tarefa de dar o meu melhor e esperar que tudo ficasse bem com a Laerte.
3) Que tipo de abordagem você quis adotar nessas tiras da Folha?
Sem saber por quanto tempo estaria ali, optei por um pout pourri do que já faço habitualmente: manter minhas críticas cotidianas acerca da sociedade e algumas bobagens pontuais sobre política – mas com objetivo claro de ser certeiro em TODAS as tiras que fossem pro jornal.
Rolou uma cobrança interna muito forte pra ser certeiro em todas as tiras. Acho que derrapei em uma ou duas, mas fiquei feliz com a média. E olha que eu sou geralmente muito crítico com o que eu faço e costumo achar tudo muito ruim.
O massa foi que de certa forma eu me senti muito "em casa", sabe? Rolou uma naturalidade boa em sentar e produzir praquele espaço
Faz muitos anos que desenhar tiras se tornou algo necessário na minha vida e no meu dia-a-dia, então eu deixei qualquer noia de lado e fiz o que sei fazer. Rolou legal.
Hoje posso dizer que fazer tiras é meu trabalho principal e todas as minhas outras atividades, mesmo as que dão retorno financeiro maior, são apenas bicos!
4) Como foi devolver o espaço para a nossa ídola? As duas últimas tiras, em particular, trataram disso com humor e sensibilidade.
Eu já tinha programado umas duas ou tiras pra hora de "entregar a casa" pra Laerte. Quando ela estava melhor, me escreveu sugerindo aquela "tira de passagem" e pra mim foi a maior honra da minha vida.
Como disse meu querido amigo Fabio Bianchini, é a mesma coisa que o Paul McCartney ter lhe convidado pra fazer uma música juntos.
Só que pra mim a Laerte é ainda maior que o Paulinho lá da Inglaterra! Hahaha!
Você precisa entender uma coisa: a Laerte é o meu Norte em se tratando de quadrinhos, tiras, sensibilidade e estética artística. Ela talvez seja a única artista de quadrinhos que tenho "consumido" ultimamente.
Isso de não ler quadrinhos pode parecer arrogante, mas eu posso explicar. Eu sou uma esponja e sou muito suscetível a absorver e trazer pro meu trabalho tudo que leio. Isso me causa um problema pessoal muito grande, porque o meu maior medo é simplesmente copiar alguém sem nem perceber. Tenho um problema sério com o excesso de informações de hoje em dia e as referências pra mim são sempre muito fortes e pesadas Eu comparo muito meu trabalho com o dos colegas e não sei lidar muito bem com isso.
Talvez seja imaturidade mesmo e eu precise lidar melhor com isso.
No caso da Laerte, a história é outra: ela atingiu um nível e uma desenvoltura fora da curva, tanto nos roteiros e textos quanto nos desenhos e na forma como resolve com perfeição as tiras e as HQs maiores que faz.
Mesmo se eu me esforçasse, jamais conseguiria chegar nem perto do que ela faz, então isso me deixa confortável pra ler qualquer coisa que ela faça, desde as coisas antigas até as atuais. Então esse é um território livre pra me esbaldar com as cores, traços e ideias dela.
Não sei se fui claro nessa resposta, mas ok. Também não está muito claro pra mim o que tenho feito nesses 44 anos de vida. Enfim....
5) As tiras não são novidade alguma em sua carreira. Há quanto tempo você usa esse formato e quais os motivos da predileção por ele, ao invés de histórias mais longas?
Cara, faço tiras "oficialmente" desde 1998, que foi quando joguei minha primeira tira na internet.
Gosto deste formato porque me resolve rápido e com o passar do tempo eu praticamente penso tudo em ritmo e formato de tiras. Até minhas conversas casuais passaram a ser uma grande tira.
Hoje consigo entender que você pode contar uma história gigantesca dentro de uma única tira. Como é raro eu usar personagens fixos, descobri com o tempo que posso "jogar" os personagens e suas problemáticas mais complexas no colo do leitor, usando apenas três ou quatro quadros e alguns balõezinhos, deixando com que ele, o leitor, desvende por conta própria tudo que se passa na vida de cada bonequinho e descubra também em que mundo ele vive.
Gosto de fazer historias longas também, mas elas me custam mais. É que geralmente ela já vem pronta na minha cabeça e o meu maior trabalho não é o ato de desenhar em si, mas o trabalho de domar minha ansiedade pra ver todas as páginas prontas. Eu quase morro.
A tirinha tem um tempo de narrativa muito rápido e é gostoso resolver a história naquele espacinho apertado.
6) Qual sua relação com o desenho? Digo: quanto esforço você dedica especificamente ao desenho nas suas tiras e cartuns?
Parece piegas, mas desenho é necessidade vital pra mim. Eu recebo as toneladas de informações truncadas do mundo exterior e respondo com desenhos.
Hoje sinto uma liberdade incrível, e que demorou anos pra ser adquirida, de me comunicar através do desenho, em especial com as tiras. É como se todos os problemas da minha vida se resolvessem com uma tira bem feita e certeira.
O pepino disso é que os problemas nunca acabam, logo a produção também não tem descanso.
Sempre que me perguntam sobre porquê eu desenho eu me lembro que, na época da escola, eu tinha um problema sério de foco (que ainda existe) e não conseguia prestar atenção nas aulas ou palestras. Eu simplesmente apagava ou dormia.
Descobri que se eu ficasse desenhando nos cadernos ou mesmo nos cantos dos livros, eu conseguia dividir a atenção tanto nos rabiscos quanto nas aulas e foi aí que me liguei que o desenho me ancorava de certa forma e eu conseguia entender as mensagens recebidas ao meu lado.
7) Como você vê o espaço e o mercado para os cartunistas brasileiros hoje?
Acho que o único caminho viável no Brasil hoje em dia é a independência. É cada um por si, cavando espaço em algumas pouquíssimas revistas e jornais disponíveis ou se autopublicando.
A internet, ao mesmo tempo que é fantástica e onde todo mundo pode publicar e até descolar um troco desenhando, se tornou um terreno vasto demais. Eu não consigo mais acompanhar tudo que está rolando. Foco em poucos autores e publicações.
Há pouco tempo fui seduzido pela maior e mais prestigiada editora independente desse país, a EDITORA PÉ DE CABRA. O Carlos Panhoca me pegou de canto, me prometeu o mundo e em 2019 lançamos o Vida Besta - uma coletânea de tiras fabulosas deste que vos escreve. Além do meu livro, o cara teve as manhas de publicar o Diego Gerlach, o Pedro D´Apremont, Fabio Lyra, Victor Bello e agora um trabalho primoroso do Gabriel Góes. Cara... se tem uma editora que tá mostrando como se faz quadrinho massa, underground, maloqueiro e absurdo é a Pé de Cabra!
Estamos com planos de soltar um enorme compêndio satânico esse ano. Vamos ver o que acontece.
8) Você também tem uma produção considerável nas artes plásticas. Fale um pouco sobre isso e sobre como você acha que esse trabalho se relaciona com o que você faz em quadrinhos.
Tudo que eu faço deriva do desenho. Pintar telas, fazer painéis em muros ou mesmo fazer música só é possível com o exercício do desenho.
É como se tudo isso estivesse conectado com o ato de desenhar – que pra mim é a forma mais clara e dinâmica de me expressar.
De vez em quando canso um pouco de ficar só nas tiras e quadrinhos, então sou impelido a experimentar outras coisas e é aí que eu abro caminho pra experimentações e possibilidades mais livres de um resultado esperado.
O legal de pintar, por exemplo, é que não tenho o controle que usualmente tenho sobre o que estou fazendo – e eu preciso aprender a usar esse "descontrole" nas tiras, por exemplo. Então são coisas que se retroalimentam de certa forma.
9) Há tempos você comentou sobre um projeto de animação em Portugal. Em que pé isso está?
Conheci o gente-finíssima Humberto Santana pelo Facebook. É dele a produtora Animanostra, lá em Portugal, e ele me propôs apresentarmos um projeto inédito de curta animado pra um festival tradicional daquele país.
Acontece que logo na sequência veio essa maldita pandemia, tudo virou de pernas por ar naquele país e no mundo e o projeto não decolou... AINDA! Esse ano vamos tentar novamente a candidatura e vamos torcer!!!
10) Seu trabalho é caracterizado por uma urgência e mordacidade únicas. De onde você tirou isso, meu jovem?
Eu sou ansioso e não tenho foco, como já falei ali em cima. A única coisa que me mantém relativamente são é desenhar. Logo, a coisa nunca para.
11) Em 2019 você lançou Vida Besta, uma antologia de tiras pela Pé de Cabra, editora do nosso punk favorito, Carlos Panhoca. Fale um pouco sobre o livro e sobre como tem sido a carreira dele.
Acho que respondi essa ali em cima, belê??
12) A quantas anda a Juarez & Donizete, seu projeto editorial solo?
Cara, não sei o que aconteceu. Foi um sonho, desses que se sonha só.
Sob esse selinho mequetrefe soltei meu primeiro Vida Besta, depois mais alguns zines e livrinhos autopublicados. Acho que cansei.
Eu não ando muito animado de ficar bancando impressão e essas coisas todas, então a "JEDONI" tá de portas fechadas por enquanto.
13) A vida é besta?
É. Fim.