Rapidinhas #15 - Quadrinhos Digitais
/Tá de quarentena, em casa, na medida do possível e do saudável? Ótimo, permaneça assim. Para você nem precisar sair para comprar gibi, a RAIO LASER faz um delivery de quatro resenhas curtas de Quadrinhos Digitais que você pode conferir do conforto e da segurança do seu lar. #FicaEmcasa #LeiaQuadrinhos (BP)
por Lima Neto, Bruno Porto, Márcio Jr. e Ciro I. Marcondes
O Human Star! - Blue Delliquanti (ohhumanstar.com, 2012-atualidade): O terreno da HQ digital possui uma amplitude tão absurda, que apesar das dezenas de títulos que partem para explorá-lo todos os dias, pode-se dizer que não avançamos mais que alguns metros dentro de seu território. Minha não-requisitada opinião é de que o avançar terreno adentro resultará em uma mudança tão radical nos quadrinhos que futuramente seus exploradores não poderão mais serem chamados pelo nome HQ. MAS, enquanto essa metamorfose não vem, uma tropa de títulos digitais caminha pelo deserto de bits como personagens de desenho animado surpreendidos pelo precipício abaixo deles. Enquanto ainda não percebem sua situação, expandem as possibilidades linguísticas e estéticas das “HQTrônicas”. Outros webcomics vão encarar o espaço digital como uma antessala que precede a realização impressa, angariando leitores e desenvolvendo suas histórias pacientemente, dia após dia. À primeira vista, essa modalidade parece não se diferenciar do modelo impresso: a área de leitura corresponde à mancha gráfica de uma página impressa; o layout obedece à mesma estrutura paginada de uma revista. Há, porém, mesmo nesta comedida modalidade, um diferencial libertador: o tempo. Não há limites para a quantidade de páginas, possibilitando a determinados criadores um timing narrativo demorado, comedido, e enriquecedor tanto para a obra quanto para eles mesmos. Uma das webcomics mais exemplares deste modelo é a HQ O Human Star! de Blue Delliquanti.
Em publicação desde 2012 (!), O Human Star! é um drama de ficção científica sobre um gênio roboticista que renasce em uma réplica robótica de seu corpo 16 anos após sua morte misteriosa. Sem saber quem, ou o quê, o trouxe de volta, Aleistar Sterling é deixado às portas de sua antiga residência e se encontra com um mundo que seguiu sem sua presença. Neste mundo estranhamente familiar, onde a existência de robôs e inteligências artificiais não é apenas um fato comum, mas uma realidade sancionada e protegida por direitos civis, Aleistar tenta juntar as peças de seu renascimento ao mesmo tempo em que sua presença reacende antigos ressentimentos entre ele e seu ex-sócio e amante, Brendan Pinsky. Essa tensão, que se desenrola em sensíveis e bem construídos flashbacks, só é quebrada pela presença de Sula, uma androide que é fruto da tentativa mal sucedida realizada por Pinsky de transferir os padrões mentais de Aleistar para um corpo robótico.
Possuindo apenas a personalidade de Aleistar mas nenhuma de suas memórias, Sula teve o corpo construído com atribuições masculinas mas pediu que seu corpo fosse mudado para a forma feminina a partir do momento em que sua identidade começou a se desenvolver e se destacar do modelo em que foi baseada. Para Brendan, Sula é uma filha adolescente que carrega uma parte de seu ex amante. Para Aleistar, ela é um espelho de seu íntimo, a visão de um outro dele mesmo que é mais vivo do que ele jamais foi. É no seio desta família complexa que o mistério de sua ressurreição se desenrola. O que se sabe é que Aleistar é encarado como um deus pelos robôs e máquinas em seu redor, e que as únicas coisas que encontrou quando acordou foram robôs estranhamente familiares que o lembravam de projetos de infância.
Blue Delliquanti sabe contar sua história. Cada momento é concebido com calma e reverência, como se operasse um organismo vivo que exigisse bastante tato. O Human Star foi ganhador do prêmio Prism Award de 2018 e nomeado para o Ignatz Awards em 2017. Sua narrativa avança no terreno do pós-humanismo interseccionando discussões sobre a construção de identidade e a clássica discussão sobre a natureza do ser humano, mas sob uma ótica particularmente diferente. Se, por um lado, seus robôs e androides não são uma pretensa ameaça a ser caçada, sua presença livre e assegurada de direitos também não elimina os mistérios que uma inteligência artificial guarda em seu fictício inconsciente.
Não se trata mais de “será que robôs sentem como humanos?” mas sim de “somos robôs e sentimos diferente dos humanos, e daí?”. Essa abordagem é fruto da perspectiva queer de Dellinquanti e seus personagens, que não apenas traçam paralelos com a realidade transsexual, mas de fato coloca a natureza pós-humana da transição sexual como parte de um “descolar-se” de uma noção de humano construída ao longo dos séculos. Apesar da delicadeza do desenvolver da trama, há algumas barrigas melodramáticas que poderiam ser melhor resolvidas, mas a presença da alegre Sula e a consistência da arte de Dellinquanti e do universo que construiu, arrematam esse quadrinho que, com 8 anos de estrada, oferece boas horas de leitura para todos os que apreciam uma boa ficção científica. (LN)
The Resistance - J. Michael Straczynski, Mike Deodato (AWA Studios, 2020): Fundada no final de 2018 por dois profissionais que fizeram carreira na Marvel - Axel Alonso como editor-chefe e Bill Jemas como vice-presidente - a AWA Studios (Artists, Writers, and Artisans Studio) deu azar de programar o lançamento de seu primeiro título justamente para a semana em que a maior distribuidora de quadrinhos estadunidenses, Diamond Comic Distributors, cancelou o envio de revistas para as 2.500 gibiterias nos EUA, Canadá e Reino Unido devido às crises nas infinitas terras causada pelo Covid-19. Ironicamente, a grande aposta da editora, The Resistance - escrita pelo veterano J. Michael Straczynski e com desenhos de Mike Deodato, em sua segunda série autoral depois de mais de duas décadas de exclusividade na Marvel - se propõe a ser o pontapé inicial de um novo universo de super-heróis espalhados pelo mundo que surgem após uma pandemia global matar quatrocentos milhões de pessoas em dois meses.
Com a impossibilidade da edição impressa chegar aos leitores, a AWA fez como muitas editoras e se absteve de comercializar a edição digital pelo ComiXology (até que a distribuição física se normalize), mas disponibilizou gratuitamente o número de estréia em seu site e nas plataformas WEBTOONS e Tapas, de HQs para dispositivos móveis. O plano é dividir as edições de vinte e poucas páginas em três ou quatro episódios para serem lançados semanalmente no formato de rolagem vertical das duas plataformas. Isso continuaria mesmo após a distribuição dos impressos ser regularizada, provavelmente no modelo de assinatura mensal paga dos webtoons. Essa resenha, portanto, é da perspectiva dos primeiros episódios do webtoon The Resistance.
Straczynski combina premissas já exploradas em seriados que criara para a Showtime e Netflix (neste segundo, com as irmãs Wachowski), Jeremiah (2002-2004) - em que toda a população adulta do planeta é exterminada por um vírus - e Sense8 - em que oito pessoas de diferentes partes do mundo de repente se descobrem mental e emocionalmente conectados, compartilhando suas habilidades. Mais do que apresentar protagonistas, os primeiros episódios no formato webtoon servem para estabelecer o contexto da situação, que é dolorosamente real diante do momento atual, abordando das diferentes reações diante das mortes anunciadas à disseminação de fakenews e teorias de conspiração. Na ausência de superseres durantes os três primeiros episódios, a arte excepcional de Deodato se limitou a alternar a representação visual de pessoas comuns e cenários de base fotográfica, como de cidades em chamas e marcos narrativos como o Kremlin. As cores de Frank Martin foram essenciais para afastar da HQ um certo jeitão de fotonovela feita a partir de banco de imagens.
O que parece ser o maior problema de The Resistance até o momento advém da transposição de uma HQ firmemente projetada no suporte de páginas, sobre o qual Deodato tem grande domínio, para o formato webtoon. Melhorando à medida que os episódios se sucedem, a adaptação feita por Iliana Jimenez nem sempre salvou, por exemplos, cenas em páginas duplas, como a do parlamento britânico do primeiro episódio, ou que requerem grandiosidade, como a sequência que se passa na sala de controle militar da China. Assim como observa-se na imensa maioria de webtoons derivados de HQs produzidas para o formato físico, o letreiramento feito por Sal Cipriano se mostra um pouco menor do que poderia ser para gerar uma leitura realmente confortável. No entanto, o fato desse problema já não acontecer com os títulos posteriores da AWA anunciados ou já disponíveis como webtoons - como Archangel 8 e Hotell - sugere que os processos configurativos de tradução visual de HQs de Super-Herói para o formato vem se aperfeiçoando - o que é uma excelente notícia para o gênero. (BP)
What We Mean by Yesterday - Benjamin Marra (Instagram do artista, 2019-atualidade): Se nem música eu ouço pela internet, o que dizer desses tais quadrinhos digitais? Não que eu tenha algum orgulho disso. Muito pelo contrário. Teimosia de velho. (E olha que nem sou tão velho assim.)
Acumulei uma tonelada de scans, mas raramente leio algum deles. Prefiro ficar correndo as páginas, em nebulosas madrugadas amigas, admirando arte e storytelling. A leitura de HQs, para mim, permanece como um fenômeno analógico e ligado ao papel. Imagino que isso não vá mudar tão cedo. Mas fui irremediavelmente fisgado pela série What We Mean by Yesterday, do canadense Benjamin Marra, publicada diariamente em sua conta no Instagram (@benjamin_marra).
Marra é uma espécie de Paul Gulacy apodrecido. O mais próximo que HQs como Night Business e Terror Assaulter têm no Brasil estaria no catálogo da Escória Comix. What We Mean by Yesterday, por outro lado, não traz seu usual preciosismo gráfico, com pesadas sombras aplicadas sobre desenhos deletérios, optando pela simplicidade da linha (ainda deletéria), cujo único propósito é nos arremessar no quadro seguinte.
Dia após dia, em quatro vinhetas, acompanhamos a comédia de erros que é a vida do Sr. Barnes. Numa atmosfera que remete a Depois de Horas, de Martin Scorsese, vemos o professor enfrentar uma jornada dominada por cinismo e má-sorte. Em uma certa etapa, Marra pareceu perder as rédeas da narrativa. Já as recuperou. Folhetim diabólico, todos as tardes me pego conferindo ansiosamente o Instagram, para ver se a tira mais recente foi postada. No que foi que eu me tornei? (MJR)
As Aventuras do Capitão Presença – Drogas Levam ao Crime / Billy Soco – Guernica – Gabriel Góes e Arnaldo Branco / Gabriel Góes e Diego Gerlach (Independente, 2020 / Beleléu/Cosmos, 2018): Dia desses esta dupla ocasional, mas explosiva, do quadrinho brasileiro (responsável por duas brilhantes adaptações de Nelson Rodrigues) – falo de Gabriel Góes e Arnaldo Branco – soltaram a bomba online: As Aventuras do Capitão Presença – Drogas Levam ao Crime, uma historinha de quatro páginas que simula um encartado moralista de merchan dentro de um gibi de verdade. Na capa, encontramos o “Justiçador”, antagonista do Capitão Presença que poderia ser uma simples paródia do Justiceiro, mas que remeteu imediatamente a um fenômeno mais atual do brasileiro nerd-reaça-punheteiro que encontrou algum tipo de “razão de ser” no abismo de chorume, fake news e canalhice que se tornou o “poder” em nosso país: super-heróis de direita, tais quais Doutrinador, Destro Martelo da Direita (sic) e outros recalques passa-vergonha do tipo. Só essa sacada já valeria louvor, mas o texto de Arnaldo está (como sempre) afiado, zoando recordatórios sorumbáticos de Frank Miller (reizão dessa galera) e a ausência de cérebro de tais brucutus (nada contra, Alley Oop. Foi mal). Góes, por sua vez, consegue mimetizar/parodiar, ao mesmo tempo, estilos de Mazzucchelli, Miller e até Rob Liefeld (tipo Cablezão) sem perder sua identidade, cores saturadas maneiras e referências legais. Me lembrou outro feito da cultura visual brasiliense, né? Afinal, “drogas são o flagelo da sociedade”.
Acessando esse quadrinho, ainda caí numa outra grande realização em dupla com Gabriel Góes: Billy Soco – Guernica, lançada em formato físico de gibizinho em 2018, mas felizmente disponibilizada online. Desta vez, Diego Gerlach, aderindo a um maneirismo incomum nos seus autorais Know-Haole, cria uma história “infantil” tipo “super powers” (na real, lembra também um encadernado em quadrinhos dos Comandos em Ação) para Góes usar e abusar de um estilo “fofo”, claríssimo (apesar dos apocalípticos tons púrpura que guiam a paleta de cores da HQ), que traz à lembrança material publicitário e cartoons dos anos 80. O que é estranho, pois esse remix ambíguo de HQ indie contemporânea e saudosismo de Góes e seu herói ingênuo deixam o leitor numa sinuca de bico: levar a sério ou não esse troço? Digo isso porque, apesar da clara intenção de ser descartável e simplório no enredo como um todo, existe um apuro, tanto na arte quanto no texto, que comovem. A história é tola (mesmo que, em 2018, esses caras tenham antecipado o cartunesco e vil Brasil de hoje), mas emocionante. Billy Soco é um personagem genérico (de propósito), mas carismático. No final das contas, estas paródias, que são discursos ao avesso, funcionam muito bem nas circunstâncias atuais, em que qualquer lógica parece ser pensada andando pra trás. Ambos os gibis estão disponíveis de graça e online na conta do Góes no Tapas. (CIM)
Se quiserem ver os autores do texto comentando mais sobre estes e outros quadrinhos digitais, confiram abaixo a primeira LIVE da Raio Laser: