Pigmento: a comoção das imagens
/por Ciro Inácio Marcondes
Ao me deter sobre Pigmento, a intensa e poética história de amor que Aline Zouvi elaborou como seu primeiro romance gráfico (pela Quadrinhos na Cia.), logo veio à cabeça uma citação da filósofa portuguesa Teresa Vergani: “Entramos no simbólico quando temos a nossa morte atrás de nós e a nossa infância à nossa frente”.
Essa frase enigmática reflete as intenções também enigmáticas de Pigmento, que é um livro para ser decifrado não com uma interpretação comum, pensada através da lógica, mas sim por meio da decodificação de seus símbolos, numa espécie de mitanálise de um mito urbano ligado a diversas questões contemporâneas, um tipo de fábula que nos conduz à densidade profunda do inconsciente e suas intempéries, trazendo luz ao nosso mundo comum.
Em Pigmento, a tatuadora Clarice, por mais que tenha vontade, não consegue se tatuar, formando um ciclo de ansiedade e frustração, até que a chegada de uma restauradora de livros, Lívia, coloca a ordem das coisas em sua vida numa outra rotação. A restauração de um livro com insígnias nórdicas faz esse mundo simbólico emergir como possível chave para a efetiva restauração da alma destas personagens.
Esta relação profunda com o inconsciente das imagens é mediada pela personagem Teresa, uma mulher idosa e avó de Lívia, que decide fazer sua primeira tatuagem já com idade avançada. Em determinado momento, reflete-se que a tatuagem possui uma relação estreita com a morte, já que a tattoo é uma marca que a pessoa vai levar no corpo até o fim da vida. Tatuagem transfigura-se, portanto, num signo de morte. Porém em Pigmento isso não é o que parece.
Ora, uma tatuagem é uma imagem (ou palavras transfiguradas em imagens) suturada no corpo, que (em muitos casos) transfigura-se numa mediação densa com as camadas profundas que essa imagem tem com suas origens imaginárias. O imaginário, por sua vez, é um acordo imanente entre todos os seres humanos, que colhem dele os símbolos que baseiam a significação de tudo no mundo. Daí a citação a Vergani: por via do simbólico, superamos a nossa morte, que fica para trás, e nos abrirmos eternamente a uma nova infância, reiterada. Pigmento, em grande medida, é sobre isso aí.
Aline Zouvi já havia ensaiado a beleza de sua visão e abordagem sobre o mundo em obras menores, como Síncope e Óleo sobre tela, mas aqui a coisa ganha outra dimensão (não só em volume). Há um entendimento muito maior do potencial da linguagem dos quadrinhos também como ferramenta simbólica, numa conjunção quase espiritual entre palavra e imagem. E ela faz isso com rebuscamento, mas sem pedantismo e na medida certa para a perfeita compreensibilidade de suas intenções metafóricas: páginas pretas separando átimos de sensibilidade, emoções distorcidas, ilustrações grandes, expressões vívidas, narrativa em grande escala.
A traição das imagens
Não à toa, em meio a um oceano de citações (sobre as quais vou me deter adiante), sobressaem-se, em Pigmento, telas do pintor belga René Magritte, que, como Zouvi, possuía a habilidade de expressar muitas e complexas emoções em quadros grandes e silenciosos. A autora, como Magritte, usa a palavra apenas pontualmente, como que transformando-as em valises de poder mágico, e uma simples risada “rá rá rá” nos comove de um jeito diferente, em meio aos quadros, pausas, respiros gráficos e splash pages marcantes.
Permitam-me uma nova citação, desta vez do próprio Magritte: “Eu faço uso da pintura para tornar os pensamentos visíveis”. O pintor belga procurava desvendar o mistério entre o dizível e o visível, numa articulação surrealista que abandona o sentido para abraçar o sensível e o imaginário irracional, buscando a forma dos pensamentos, ao invés de seus significados. Isso tudo reverbera muito na arte de Pigmento, especialmente em seu final, onde essas coisas todas se conformam na bela história de amor representada.
E, claro, antes de tudo, Pigmento é uma história de amor. Amor dissidente, que celebra a diversidade como constituição de um novo paradigma para pensarmos esse tipo de relação. Daí a imensa cruzada de citações e referências do gibi, que a princípio podem parecer excessivas ou vãs (uma enxurrada de name dropping), mas que na verdade podem querer homenagear a vasta literatura da dissidência e da diversidade em si mesmas, ajudando a constituir um novo cânone, um posicionamento que afirma ser esse romance gráfico apenas a ponta do iceberg de algo muito maior. Por exemplo, a tomada de consciência sobre outros campos simbólicos, como o do amor sáfico, que emergem fazendo parte da beleza do mundo.
Assim, Pigmento nasce clássico justamente por combater o clássico, por propor alternativas, e pela pesquisa que suscita em seu intrigante mundo, com suas relações simples e complexas ao mesmo tempo. É um privilégio testemunhar o amadurecimento, desta forma, de uma artista de quadrinhos no Brasil. Tudo isso torna a comoção uma emoção buscada nas entrelinhas entre simbólico e o factual. Sinal de que nossa produção está ganhando muito em visão e técnica ao mesmo tempo.