Quatro vezes John Romita Jr.

Nem eu nem os amigos que assinam os textos abaixo estaremos na CCXP 2018, super evento de cultura pop em São Paulo que, entre 6 e 9 de dezembro, recebe como convidados uma série de artistas, brasileiros e estrangeiros, para sessões de autógrafo, lançamentos, palestras, etc. e tal. Estivéssemos lá, o entusiasmo maior, com certeza, seria sobre a presença do desenhista americano John Romita Jr. Falo por mim, mas sei que falo também pelos comparsas de Raio Laser, que Romitinha está em nossa lista de ilustradores de quadrinhos favoritos. Sendo assim, seria sensacional poder encontrá-lo e pegar um autógrafo (um sketch, quem sabe), fazer uma foto e trocar meia dúzia de palavras para agradecê-lo pelas milhares de páginas produzidas ao longo dessas décadas todas.

Justiceiro "parrudo" de JRJR

Mas, qual revista autografar? Uma edição de X-Men, em formatinho, de quando Romita Jr. fazia as histórias dos mutantes tendo Magneto como líder? Ou uma Super Aventuras Marvel, com alguma história do Demolidor escrita por Ann Nocenti? Ou a edição especial Grandes Heróis Marvel - n° 50 (também em formatinho), que compila “Justiceiro - O Homem da Máfia”, com a versão parrudíssima do personagem? Quem sabe então a minissérie Homem Sem Medo, em parceria com Frank Miller (e arte final do monstro Al Williamson)? Ou talvez a one-shot Corações Negros, estrelando Motoqueiro Fantasma, Wolverine & Justiceiro?

Opções não faltam. O filho do lendário John Romita produziu tanto material que muitas vezes é difícil lembrar de tudo. Além das mencionadas no parágrafo anterior, tem muitas HQs dele que me atraem mais pela arte do que pelas histórias, caso da mini em duas partes do Cable e da fase do Thor escrita por Dan Jurgens (na qual os desenhos de JRJR eram finalizado por computador, deixando um interessante efeito de lápis nas páginas).

Como não poderia deixar de ser, Romita Jr., prolífico como ele é, tem também muito material pouco inspirado, menos na construção de cenas e mais como narrador visual. Sua recente incursão pela DC Comics deixa isso claro. Mas essa “fadiga” não é de agora. Quem acompanha sua trajetória deve lembrar de quando (meados dos anos 90) ele começou a chamar a atenção pelo exagero, com personagens que pareciam compostos por vários blocos empilhados (usando ombreiras e cabelos mullets). Pior, desenhando sagas odiadas, como a do Aranha Escarlate. Fato que, nos últimos 25 anos, contam-se nos dedos seus trabalhos dignos de nota – Kick Ass e Eternos (com Neil Gaiman) seriam dois deles.

Nada disso realmente importa. Romitinha é um autêntico operário dos quadrinhos e folhear uma revista com seus desenhos, seja “das antigas” ou de agora, é muito melhor do que quase tudo disponível na prateleira de comics de uma banca de jornal.

Os textos que se seguem comentam um pouco de nossa admiração pelo trabalho do cara. A ideia inicial era produzirmos um top 3 “favoritas de JR JR”, além de apontar aquele que, em nossa opinião, era o pior quadrinho feito pelo desenhista. Acabou não rolando desse jeito, mas ficou – acredito – legal mesmo assim. Boa leitura!

ps: Ah, já sei qual revista eu pediria para John Romita Jr. autografar: alguma edição de Força Psi com histórias do Estigma (Star Brand), um favorito pessoal. (Pedro Brandt)

por Márcio Jr., Lima Neto, Marcos Maciel de Almeida e Ciro I. Marcondes

O demolidor Daredevil de John Romita Jr.

por Márcio Jr.

Eu já disse algumas vezes, mas não custa repetir: quadrinhos de super-heróis são ficção barata, produzida em escala industrial. E isto, na esmagadora maioria das vezes, é o melhor que eles podem oferecer. Sempre fico constrangido diante de quarentões que buscam a “grande arte” ou o sentido mais profundo da vida em gibis do gênero. Não que algumas obras não sejam capazes disso. A questão é que são a exceção, não a regra.   

Quando procuro um gibi de super-herói – e isso é mais frequente que vocês possam imaginar –, o que desejo é imaginação desenfreada, narrativa gráfica vigorosa e uma espécie de reencontro com minha já distante juventude. Basicamente a mesma coisa que me oferecem os discos do KISS e dos Ramones. Talvez venha daí minha dificuldade com os gibis de super atuais: seus pretensos “conteúdo adulto” e arte rebuscada. Tudo feito sob medida para o nerd bobalhão.

As incríveis páginas duplas e o design de novos personagens em Daredevil.

Gosto de gibi de super-herói que tem cara de gibi de super-herói. E neste quesito, John Romita Jr. é um mestre. Ao contrário dos desenhistas contemporâneos – que buscam uma espécie de realismo fotográfico em páginas vitimadas por detalhismo masturbatório, ainda que paupérrimas do ponto de vista narrativo –, Romitinha nos entrega estilo no traço e perícia no storytelling. Seus super-heróis parecem super-heróis. Seus desenhos parecem desenhos. E suas histórias em quadrinhos são histórias em quadrinhos – e não um amontoado de splash pages desconexas. Em uma carreira que já ultrapassa quatro décadas, JRJR desenhou virtualmente todos os personagens da Marvel – e alguns da DC. Seu auge, entretanto, está registrado nas páginas de Daredevil, numa longa fase que vai de janeiro de 1988 (nº 250) a julho de 1990 (nº 282), com poucas edições tapa-buraco no meio do caminho. Para mim, seu Demolidor só é superado pela fase clássica de Frank Miller. Mas aí é outro papo.

Demolidor detona o Justiceiro em sequência magistralmente coreografada. Sequer vou me ater aos ótimos roteiros de Ann Nocenti – que lhe valeram indicação ao Eisner e traziam um raro olhar feminino e político, passando por temas como meio-ambiente e machismo. Longe das pretensões vazias que terminaram por tomar conta do gênero, o título era, em essência, um gibi de super-herói que respeitava a inteligência do leitor. E a simbiose entre roteiro e arte é, no mínimo, memorável. Em Daredevil, o desenho de Romita Jr. atingiu a maturidade. Há ali a mais perfeita fusão entre anatomia e estilo jamais conseguida pelo artista, antes e depois – quando gradativamente adotaria uma abordagem mais cartunesca. Seu Demolidor é elegante, porém sólido. Possui massa. É acrobático, mas não inumanamente flexível – como o Homem-Aranha que ele mesmo viria a produzir. Seus movimentos são críveis. 

Diante de um cartel de novos personagens, Romita Jr. desenvolveu alguns dos designs mais interessantes do período. Mary Tifoide e Blackheart que o digam. Mesmo vilões clássicos adquiriram originais interpretações em suas mãos. É o caso de Mefisto, cuja natureza demoníaca o quadrinista levou a novos horizontes.

Ainda que o desenho de Romita Jr. esteja esplendoroso em Daredevil – que nos legou algumas das mais belas páginas duplas da história dos comic books –, tudo se encontra a serviço da narrativa. JRJR conduz nosso olhar de forma clara e inequívoca através das páginas, criando um fluxo contínuo e com o ritmo exigido pela trama. Seus enquadramentos são afiadíssimos e poucas vezes se viu um posicionamento tão preciso dos personagens e objetos em cena. As sequências de ação, de tirar o fôlego, possuem coreografia irretocável.

Mefisto finalmente representado como um demônio de primeira grandeza.

Romita Jr. fazendo da página um tratado de design gráfico.

Cada página de Daredevil é um bloco narrativo a ser estudado. O artista abre mãos de maneirismos na disposição dos quadros e deixa a sarjeta trabalhar soberbamente. Mesmo quando o momento não possui força cinemática – como por exemplo numa troca de diálogos –, Romita Jr. afasta o tédio visual com soluções de design gráfico arrebatador. E ainda sobrou espaço para experimentações gráficas em flashbacks, sequencias oníricas e cenas na neve. 

Daredevil também foi um campo de experimentação para JRJR. Mas é preciso que se faça justiça: além do talento e do impressionante trabalho empenhado em Daredevil, John Romita Jr. foi agraciado pela sorte. Primeiramente por ter sido escudado pelo melhor arte-finalista de toda a sua carreira: o lendário Al Williamson. Substituto de Alex Raymond e parceiro de Frank Frazetta, Williamson praticamente finalizou sua longa carreira nos quadrinhos como arte-finalista da Marvel. Para o Demolidor de Romita Jr., realizou um trabalho sofisticado e minucioso, alternando pena e pincel e criando texturas raras para um gibi de super-herói. Além disso, havia ainda a maestria e a consistência narrativa das cores de Max Scheele. Lançando mão de grande sensibilidade no uso da limitada paleta de cores dos comic books de então, Scheele produziu resultados mais que impressionantes. Ainda hoje dou graças a Deus pela virtual inexistência do photoshop naqueles dias.

O Demolidor de Ann Nocenti e John Romita Jr. foi publicado no Brasil em Superaventuras Marvel. Formatinho. Abril. Quadros, páginas e textos mutilados. Recolorização local. Não consigo entender o motivo de uma obra tão celebrada ainda não ter recebido uma nova (e decente) edição. A Coleção Histórica Marvel me parece a mais adequada para isso. E a presença de JRJR na CCXP era a deixa ideal. Não rolou.

Tempos depois, Romita Jr. voltaria ao Demolidor na mini-série O Homem Sem Medo. Al Williamson e Max Scheele juntos. E roteiro de Frank Miller – o que imediatamente transformou a HQ num clássico. Muitos dizem que é o melhor trabalho de John Jr.. Mentira. Pode até ser o mais importante, mas o período de dois anos e meio dando forma aos roteiros de Ann Nocenti permanece imbatível. Pode conferir.

Agradecimentos especiais ao amigo Milton Takao pela generosa disponibilização dos scans da série completa. 

JRJR: O Jack Kirby da minha geração

por Lima Neto

Sendo breve: Jonh Romita Jr. é o Jack Kirby da minha geração. Polêmico, eu sei. Mas eu explico. Quando eu entrei em contato com o traço do “Romitinha” pela  primeira vez, eu sabia muito pouco sobre os bastidores dos quadrinhos de super- heróis. Sabia que existiam escritores e desenhistas; sabia que ele era filho do John Romita que ilustrava (na época) a tira do Homem-aranha que eu lia no jornal. Era 1984/5 e eu lia Heróis da TV com aquele choque Marvel típico de quem não está acostumado a ver o herói da história se fuder mesmo ganhando do vilão. Naquela época o traço do Romitinha não me chamava a atenção, mas eu sabia de que o tipo de desenho que gostava era aquele que fosse o oposto do traço do Kirby. Como todo jovem, eu achava que o pouco que conhecia era tudo que precisava. Idolatrava John Byrne e George Pérez sem perceber a influência do “Rei” correndo em cada linha. Mas esse texto é sobre John Romita Jr..

Romitinha: personagens massivos

Somente um tempo depois é que fui descobrir que aqueles números de Iron Man, escritos por David Michelinie e Bob Layton, eram os primeiros trabalhos do artista na Marvel. Não me considero um fã de Homem de Ferro. Muito cedo eu aprendi que o que valia a pena era ir atrás dos nomes dos criadores, pois eram eles que faziam um gibi ser bom ou ruim. E foi assim que fui vendo o “Romitinha” virar “Romitão”. Primeiro durante seu percurso formador no Demolidor de Ann Nocenti, depois sendo encaminhado - já como super estrela - para os X-Men. 

Nesse tempo de produção (numa época em que os desenhistas estavam acostumados a fazer até seis ou sete edições sem que precisasse de fill-in para descansar) seu traço sofreu uma metamorfose. Não era mais o desenho burocrático do início de carreira, sua linha era como que possuída de uma energia viva. Seus personagens eram agigantados e os limites dos requadros pareciam que iriam se partir a qualquer momento. É no momento em que retorna para o título que o colocou na casa das ideias que podemos ver o contraste que os anos imprimiram no trabalho de John Romita Jr.

Pulamos cinco anos no futuro. 1990 eu já era um colecionador de quadrinhos, e ia constantemente visitar a finada Livraria Sodiler atrás de quadrinhos importados para ter uma visão do que sairia no Brasil anos depois. E foi aí que tomei aquele tapa. Uma armadura massiva de Homem de Ferro se encolhia na parte superior da página, a arte em traços finos mostrava apenas a silhueta brilhante do ameaçador vilão enquanto faixas brancas de luz atravessavam toda a capa da revista. Era a edição número 260 da revista Iron Man, a saga era a "Guerra das Armaduras II". Ao abrir a capa, toda aquela exuberância gráfica explodia da página como um show de luz. Era uma versão repaginada do vilão Laser Vivo, e, embora eu não soubesse do que se tratava a história, era fácil ver quem estava ganhando. Mais do que isso, além do Romitinha, aquela era uma HQ escrita por John Byrne. Não havia gibi que eu queria mais naquele momento. Com o devido patrocínio familiar eu adquiri aquela edição e a namorei por anos até que a publicação brasileira chegasse naquele ponto.

Quando finalmente o gibi saiu no Brasil, eu já era um leitor mais amadurecido. O roteiro era um mix de Byrne anos 80 básico (vilões industrialistas, rabos de cavalo, ameaça atômica e repaginada com elementos clássicos) mas a arte de Romita estava ali com toda a sua energia. Nessa época, eu já tinha me apaixonado pelo traço de Kirby, mas foi vendo aquela edição que percebi que o caminho para entender o papel do Rei para os quadrinhos de super-herói me foi ensinado ao ver o desenvolvimento do traço do Romitinha. Diferente de Kirby, JRJR sofria de limitações claras (a representação do rosto feminino é o mais tácito exemplo), mas, assim como o Rei dos quadrinhos, Romitinha caminhou em direção da criação de um estilo próprio. Um traço que se construiu no esforço de expressar uma sensação, uma energia  característica do gênero.

A expressão em Romitinha (brinks)

Essa busca levou o artista a trilhar um caminho que conduziu seu desenho para as margens da abstração. O realismo não era o objetivo nem de Kirby e tampouco de JRJR. A abstração de Kirby criou todo um vocabulário visual que é sua  marca distinta. A abstração de Romitinha bebe da influência do Rei e cria seu próprio caminho. Em "Guerra das Armaduras II", vemos todo arsenal de linhas que ele usa para fazer seu universo. Das linhas mais finas até aos borrões grossos que esmagam o personagem. A hachura de JRJR é de fato o ator principal de seu trabalho. 

Exuberância gráfica

Romitinha: abstração

Assim como Kirby, também os arte-finalistas assumem um papel importante na dança frenética das suas páginas. No caso de "Guerra das Armaduras II", o veterano Bob Wiacek vai ser o parceiro de dança de Romitinha, emprestando um aspecto mais contínuo para o traço do artista (diferente das linhas fragmentadas de Klaus Janson), mas brilhando quando usa seu arsenal de texturas para dar contraste gráfico às linhas.

Então, quando afirmo que John Romita Jr. é o Jack Kirby da minha geração, digo isso não comparando o papel de cada um deles na história dos quadrinhos de super-heróis, mas observando como ambos fazem essa escolha clara de se aproximar da abstração de modo a engarrafar uma energia. O fato de que ninguém sequer tenta imitar o traço de Romitinha é prova disso. E um detalhe final: nos créditos de "Guerra das Armaduras II", os nomes de Romita Jr. e Wiacek vêm antes do roteirista John Byrne. Romitinha, ali, já era Romitão.

Homem sem medo de ser feliz

por Marcos Maciel de Almeida

John Romita Jr é cria da Marvel. Já zanzou por tudo quanto é personagem da editora. Tanto que ele sempre me pareceu deslocado quando faz qualquer coisa fora da Casa das Ideias. Os fãs de Kick Ass e assemelhados que me perdoem, mas JRJR de verdade é aquele que você só encontra no Universo Marvel. Se for arte finalizado pelo Al Williamson então, nem se fala. Pode ir na fé que é diversão garantida. 

Desde que me entendo por gente já era capaz de identificar seu inconfundível traço quadradão, mas muito poderoso. Considero essa sua maior qualidade: a capacidade de conferir grandiosidade aos personagens. Seus super-heróis realmente parecem saltar da página, com imponência ímpar. São simultaneamente fortes e esguios. São criaturas do tipo brutamontes esculpidas num traço paradoxalmente leve. É realmente um artista do tipo one of kind. 

Seja desenhando deuses do trovão, cabeças de teia ou supergrupos, o Romitinha sempre conseguiu dar uma identidade visual única aos personagens. Eles se tornam inconfundíveis com seu traço, como se o Thor fosse mais Thor, como se o Homem-Aranha fosse Homem-Aranha e por aí vai.  O que nos leva ao Demolidor.  Juro por Deus: quando penso no “Demônio Doido”, a imagem que me vem à cabeça é alguma desenhada pelo talentoso filho do Seu Romita. Também pudera. Sua passagem pelo gibi do personagem foi nada menos que espetacular, marcada por momentos memoráveis. 

Não satisfeito com sua quota mensal de DD, o Romitinha entrou em contato com ninguém menos que Frank Miller – simplesmente o roteirista e desenhista mais foda que já passou pelo personagem – para fazer uma graphic novel. E bem, o que era para ser uma edição especial acabou virando uma minissérie em cinco partes, dado o tamanho do gibi. O projeto foi batizado de O Homem Sem Medo e contou a origem e os primeiros dias de Matt Murdock como o Demolidor. E o encontro destes dois semideuses dos comics foi uma escolha muito feliz. 

O que vemos no gibi é uma equipe totalmente entrosada, fazendo um personagem pelo qual nutrem carinho mais que especial. Frank Miller está escrevendo com a fluidez de quem passa manteiga em pão quente, e o Romitinha não deixa por menos. Parece aquele filho que quer – e consegue – agradar o papai Miller, tamanho o esmero com que desenha cada linha. 

Cada página parece transbordar em frescor e vivacidade. Sabe aquela história de estar feliz com a profissão? É esse tipo de sensação que a dupla Miller e JRJR transmite. A simbiose foi tão grande que até em alguns momentos o Romitinha puxa para o traço do Miller, fazendo homenagens – talvez inconscientes – ao traço do grande mestre em Cavaleiro das Trevas, como fica claro na cena abaixo:

Dark Blind Knight

Uma coisa que os críticos de JRJR raramente podem reclamar é o fato de que o cara seja preguiçoso. É o tipo de desenhista que está sempre buscando novos ângulos e formas criativas de representar os personagens. Tá sempre fazendo o possível para fugir da perigosa zona de conforto. Duvida? Dá uma olhada nas cenas abaixo.

Comparar esse gibi com a fase em que Miller era escritor e desenhista é covardia, mas se pegarmos todo o run do Romitinha somado com esta célebre O Homem sem Medo, temos um honroso segundo lugar no panteão das grandes sagas do Demônio Doido. E isso não é pouca coisa. 

Romita Jr. tardio em detalhes: uma história do Hulk

por Ciro I. Marcondes

Em 2002, realizei uma viagem a Portugal e comprei um exemplar de banca chamado “Os Clássicos da Banda Desenhada Nº 9” que continha material especial selecionado sobre O Incrível Hulk. Belo gibi, com longos e cuidadosos textos de apresentação, além de histórias clássicas de Lee/Kirby, David/Keown e outros materiais que serviam como uma eficiente introdução ao herói. Já expliquei o porquê de gostar imensamente do conceito do Hulk e, logicamente, guardo esse quadrinho com apreço desde então.

A história não acaba aí. Os editores deste volume resolveram finalizá-lo com uma narrativa muito especial, que ficou guardada em meus rescaldos afetivos sobre quadrinhos durante um certo tempo. Na época, era algo fresco, publicado no mesmo ano nos Estados Unidos (em 2003 saiu no Brasil pela Panini). Uma história muda, na época um desafio (‘Nuff Said) proposto por Joe Quesada para que todas as edições Marvel de Fevereiro de 2002 fossem escritas sem diálogos. Participavam da empreitada os veteranos  Bruce Jones (roteirista das revistas de terror Eerie Creepy) e o arte-finalista Tom Palmer, clássico colaborador (que retornara naquele ano) de Gene Colan. Na arte, a excelência de ninguém menos que John Romita Jr.

Jones escreveu longos arcos cheios de intriga para o Hulk entre 2002 e 2004. Suas histórias tinham apelo humanista e não raramente derivavam para olhares específicos sobre coadjuvantes e personagens incidentais. Isso também se aplica à própria dinâmica das aventuras tradicionais do chamado Golias Verde. Banner sempre foi relegado a um pálido e insustentável motivo para que ocorressem as transformações no monstro (quando a porra começa a ficar mesmo séria). Porém, sob a batuta de Jones, o Hulk aparecia muito pouco, em flashes, sonhos e decupagens fragmentárias. Aqui, Banner era o foco, envolvido numa perseguição misteriosa que contava com desenganos e mentiras.

Jogos de ponto de vista “Corrida Silenciosa”, a história em questão, fazia parte deste arco. Romita Jr. o ilustrou apenas por seis edições, e Jones seguiu com outros desenhistas. O famoso “Romitinha”, tarimbado até o calejar dos nódulos dos dedos em 2002, ainda voltaria ao personagem em World War Hulk (2007-8), com muito maior repercussão, inclusive. A questão é: eu poderia fazer minha homenagem ao grande desenhista falando sobre sua edificante passagem pelo Demolidor, seu longo sucesso no Homem-Aranha ou sua inesquecível fase nos X-Men. Porém, quando se menciona “John Romita Jr.” para mim, o que pipoca mesmo na cabeça é esta irrelevante, do ponto de vista canônico, história do Hulk. E olha que a primeira história de super-heróis que li na vida foi já ilustrada por este senhor. E por que essa história me marcou? Não há um motivo bem definido. Jones e JRJR brincam com o olhar, pois Bruce Banner, careca e disfarçado está (pra variar) fugindo de perseguidores misteriosos após o Hulk supostamente ter matado uma criança num ato de fúria em Chicago. A narrativa foca no ponto de vista de uma garota autista que, em meio à sua infantil alienação, troca olhares com o herói e vai acompanhando, sutilmente, os seus passos, enquanto uns agentes estilo “men in black” entram na cafeteria que abriga todos os personagens. São enxutas 21 páginas.

Cor, temperatura e sutilezas

Se, no resto do arco de Jones, a quadrinização de Romita Jr. é completamente banal – páginas básicas de narrativa didática divididas em seis quadrões intercaladas por algumas splash pages, sendo a história igualmente dispensável – em “Corrida Silenciosa” o tom da dupla está completamente azeitado. E graças, é claro, ao Romitinha. Nessa época, seu traço já havia perdido a expressividade um tanto selvagem e inovadora que caracterizaram suas parcerias com Ann Nocenti no Demolidor e Chris Claremont nos X-Men. Em 2002, seu estilo está mais caricatural e limpo, possivelmente influenciado por coisas como mangá e Peter Kuper, a há alta dosagem de emoção nos olhos dos personagens, algo que sempre me fascinou e foi uma constante em sua maneira de ilustrar durante décadas. A arte-final de Tom Palmer também em nada lembra os trabalhos de A Tumba do Drácula dos anos 70: é refinada em tratamento digital, valorizando a elegância do traço de Romita Jr., como se desse uma embalagem premium a um produto clássico. Pode parecer uma merda, mas na verdade funciona lindamente. As cores do deserto e os matizes amenos da paleta de coloração dão temperatura e textura à história. Seu aspecto visual, cheio de sutilezas e transformações operadas pela sensibilidade de personagens e leitores, é que ficou inoculado na minha cabeça por anos. “Corrida Silenciosa” é uma pequena pérola que ganha força a cada releitura. Romita Jr. passa a segurança e maestria não apenas de quem foi desafiado após anos de repetições preguiçosas, mas também a noção de que sabe completamente o que está fazendo em cada mínimo detalhe. Sendo uma história contada inteiramente em diversos planos ponto de vista (POV), vamos acompanhando, sempre como uma descoberta, os jogos de olhares nas lentes e pupilas dos protagonistas. No ápice da narrativa, quando Banner está prestes a virar o Hulk, a metamorfose é operada numa representação de delírio ou sonho, e a consciência do personagem é arremessada em direção a um inconsciente surrealista. Romitinha dá a impressão de ter dedicado esmero a esta cena, pretendendo ilustrar uma transformação nada menos que antológica. A única splash page da história tem dinamismo e explosão, os olhos do monstro cegos em fúria.

A transformação do Hulk em quatro etapas

John Romita Jr é um artista no qual podemos encontrar qualidades em praticamente cada requadro que ele já tenha desenhado. Porém, de tudo o que está disponível no seu imenso catálogo de contribuições à indústria dos comics, “Corrida Silenciosa” aglutina o que seu estilo a partir de Demolidor: Homem Sem Medo mais ambicionou: síntese, clareza, elegância, força explosiva e emotiva. São motivos para nunca se esquecer desse quadrinho.