HQ em um Quadro: Paratextos ficcionais e multimodais em Super-Homem versus Mulher-Maravilha - por Gerry Conway, José García-López e Dan Adkins.

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por Bruno Porto

Splash page de “Super-Homem versus Mulher-Maravilha” (Gerry Conway, José García-López e Dan Adkins, 1978): A trama de Super-Homem versus Mulher-Maravilha se passa após a entrada dos EUA na Segunda Guerra e gira em torno do conflito de opiniões entre os dois protagonistas acerca do desenvolvimento da bomba atômica: enquanto a Filha da Ilha Paraíso considera inconcebível o poder de destruição do artefato, o Homem de Aço está disposto a protegê-lo em prol dos valores estadunidenses. Saem na mão mas têm que se unir para impedir que dois supervilões do Eixo - Sumo e Barão Blitzkrieg, criados para a aventura - se apoderem dela. A EBAL publicou a HQ no Brasil no final de 1978 como seu Almanaque de Quadrinhos 1979, no mesmo formato tablóide de 27 cm x 36 cm adotado para confrontos épicos do Kryptoniano com o Homem-Aranha (1977), Muhammad Ali (1979) e o Capitão Marvel (1980).

A impactante página de abertura da HQ é um único quadro, metonímico e metafórico, que, em sua construção complexa, busca sintetizar tudo que o leitor encontrará pela frente. É uma capa além da capa. Nela, um par de mãos - fazendo as vezes das do leitor - manuseia uma pasta de arquivo do Ministério da Guerra, identificada com uma etiqueta de ULTRA SECRETO, que contém uma fotografia da Mulher-Maravilha tentando laçar o Super-Homem nos céus de uma metrópole, uma carta com carimbos e assinaturas governamentais, e vários cartões presos com clipes.

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Os cartões contém bilhetes assinados pelo roteirista Gerry Conway, o desenhista José García-López, o arte-finalista Dan Adkins, e o “supervisor” (como traduziram a função de editor) Joe Orlando, descrevendo uma resumida troca de comunicações entre o editor e os três co-autores da HQ: o roteirista propõe o que poderia ser “a história do século”; o desenhista agradece as referências visuais enviadas e promete para meados de abril o desenhos para aprovação “pelas autoridades competentes”; o arte-finalista informa estar entregando as páginas a tinta e devolvendo o material de referência que José mandou, comentando que “essas fotos estavam incríveis”. O editor, por sua vez, encaminha para Jenette (Kahn, publisher e futura presidente da DC) e Sol (Harrison, presidente da DC) explicando terem feito “o melhor que podiam” e que “agora, cabe a vocês conseguirem a aprovação de Washington”.

Corroborando isso, a carta do Ministro da Guerra para o presidente estadunidense informava que “a verdade por trás da luta de Super-Homem com a Mulher-Maravilha deve ficar em sigilo e só deverá ser informada ao público depois de terminada a guerra”, pois “poderia pôr em risco a segurança nacional e talvez produzir efeitos negativos até sobre o resultado da guerra”, e que os dois heróis haviam concordado “em manter absoluto sigilo sobre o que eles descobriram”. E vocês achando o máximo aqueles paratextos ficcionais que Alan Moore e Dave Gibbons inseriram ao final de cada capítulo de Watchmen

O detalhado requadro mistura realidade (o processo de produção da HQ, a assimilação do imaginário de folders, carimbos, clipes) e ficção (os super-heróis, o misterioso motivo para ser manter a luta em segredo) em uma envolvente composição multimodal que testa os limites da suspensão da descrença, mesmo que a arte não seja hiperrealista ou fuja do estilo do gênero. Essa sensação de ‘baseada em fatos reais’ acrescentaria uma dimensão extra à leitura da publicação, ainda mais em se tratando de dois personagens de ficção que se encontravam no auge do seu realismo naquele distante 1979: o fabuloso filme com Christopher Reeve estreara no Brasil no Natal de 1978 e o seriado com a indiscutível Lynda Carter estava nas telas da Rede Globo desde março de 1977. Desculpe qualquer coisa, Adam West. Desta forma, era possível para o leitor-mirim considerar a possibilidade de que houvera mesmo uma autorização governamental para que a HQ fosse publicada - afinal, há nela pessoas e fatos reais, como o físico Albert Einstein (que é salvo de um sequestro pela Mulher-Maravilha) e o presidente estadunidense Franklin Delano Roosevelt, além de informações sobre o Projeto Manhattan, que resultou nas primeiras bombas atômicas. E a ambiguidade da “fotografia” aérea no folder? Apesar do crédito realista “Radiofoto Chicago Tribune 11 de Junho de 1942” escrito em sua margem, ela era azulada e não era preto-e-branca ou sépia como as fotos antigas... e que fotógrafo seria louco de pegar um helicóptero e fazer esta foto de tão perto?!

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Essa dualidade proposta pela página de abertura prossegue HQ adentro, especificamente no início de cada uma das seis partes em que a narrativa é dividida. Intitulados como Relatórios (numerados de 1 a 6), cada capítulo se abre em um belíssimo spread cercado por bilhetes, fichas, documentos, recortes de jornal e afins presos com clipes e grampos, como se fizessem parte do dossiê apresentado na primeira página. A esforçada tradução visual do departamento de arte da EBAL – não creditado – para os letterings originais criados pelo genial letreirista Gaspar Saladino (responsável por logotipos memoráveis de personagens como Batman, Lanterna Verde, Vingadores e Capitão América, entre muitos outros) resolvia de forma satisfatória a ilusão vernacular, constante e consistentemente trazendo de volta a promessa feita no início da leitura. (BP)