O melhor da MSP raiz: entrevista com Nicolosi

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por Pedro Brandt

Atendendo a um convite da revista Plaf, escrevi um perfil sobre o desenhista José Márcio Nicolosi, veterano funcionário da Mauricio de Sousa Produções, hoje atuando como diretor de muitos dos projetos de animação da empresa, mas, entre meados da década de 1970 e o comecinho dos anos 1980, um dos mais destacados artistas – para alguns, o melhor – a ilustrar os personagens da Turma da Mônica.

Usei o pretexto do artigo para a revista para conhecer melhor o Nicolosi (Zé Márcio para os íntimos), que gentilmente respondeu a 30 perguntas por e-mail, em agosto de 2019, que utilizei como base para o meu texto – e que, aliás, foi publicado na edição 4 da Plaf, lançada em abril de 2020. Passado um ano da publicação do meu texto na edição impressa da revista, retiro essa entrevista da gaveta na expectativa de que ela encontre muito mais fãs do Nicolosi por aí. Atentem que, em alguns casos do que você lerá abaixo, duas perguntas são respondidas na mesma resposta.

Paulistano, nascido em 6 de novembro de 1958, o desenhista está na ativa profissionalmente desde 1974. Talvez você reconheça seu traço do antigo gibi do Pelezinho, da paródia Cascão Porker (sua volta aos quadrinhos MSP, depois de década afastado), da adaptação em livro ilustrado (estrelando Cebolinha e o próprio Mauricio) de O Pequeno Príncipe, ou ainda dos dois álbuns de sua série autoral Fetichast (lançados em 1991 e 2007). Mas, se você teve sorte, conheceu o traço de José Márcio Nicolosi lendo os gibis do Cebolinha, no final dos anos 1970, quando, indiscutivelmente, as HQs mais bem desenhadas da turminha foram produzidas. 

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1 - Você ainda gosta de ler quadrinhos de forma regular? Caso sim, gostaria de saber quais os três melhores quadrinhos que você leu recentemente.

Fiquei um bom tempo sem acompanhar e ler quadrinhos em função do meu envolvimento maior com animação. Mas quadrinhos são de fato minha verdadeira origem e a eles retornei com prazer recentemente. Destaco aqui essas três obras fantásticas: O relatório de Brodeck, adaptação de Manu Larcenet do romance de Philippe Claudel, com desenhos fortes e narrativa envolvente; Ayako, de Osamu Tezuka, que me mostrou o lado diferente do Osamu, menos "cartunesco", numa temática mais adulta envolvendo o Japão do pós-guerra;  e Gus, de Christophe Blain, um western com roteiro ágil e arte muito expressiva.

2 - E, de uma forma geral, quais seus autores e obras em quadrinhos favoritos? Por que eles te marcaram? Você é do tipo que coleciona, tem uma biblioteca de quadrinhos em casa?

Não tenho perfil de colecionador, mas tenho vários títulos na minha modesta gibiteca: Asterix, Lucky Luke, Iznogud - parcerias de Goscinny com Uderzo, Morris e Tabary, respectivamente; Corto Maltese, de Hugo Pratt; Barbarella, de J.C. Forest; Little Nemo, de Winsor McCay; Krazy Kat, de George Herriman; Tenente Blueberry, de Charlier e Jean "Moebius" Giraud, entre outros. Comecei a me interessar por quadrinhos através de publicações em jornais e suplementos dos anos 1960 que meu pai trazia pra casa. A Folhinha de S. Paulo, suplemento infantil da Folha de S. Paulo, publicava tabloides do Horácio, do Mauricio, e O Gaúcho, do Shimamoto. Gostava também das tiras Gunsmoke, do xerife Matt Dillon, e das charges futebolísticas que Messias de Mello fazia pra Gazeta Esportiva.

3 - E ilustradores que não sejam de quadrinhos, de quem você é fã?

Quase todos os ilustradores dos quais sou fã, em algum momento de suas carreiras, fizeram quadrinhos: Flavio Colin, Messias de Mello, Jayme Cortez, Frank Frazetta, Sergio Toppi e Lorenzo Mattotti são alguns, mas eu diria que a belga Gabrielle Vincent é absolutamente notável em suas ilustrações para o livro Um dia, um cão. Dizer muito, com poucos traços, não é pra qualquer um. E ela o faz com maestria.

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4 - Qual a sua relação com animação enquanto espectador? Você é do tipo que tenta ver tudo o que aparece na TV e no cinema, que pesquisa animações diferentes e pouco divulgadas no Brasil? Que animações mais te impressionaram recentemente e por quê?

5 - E, ao longo da vida, quais os desenhos animados (série ou longas-metragens) que te marcaram?

Adorava e acompanhava toda a produção para TV da Hanna-Barbera dos anos 1960; Pepe Legal, Manda Chuva, Os Flintstones, Jonny Quest, entre tantos. Todos eles, e suas respectivas dublagens no Brasil, feitas pela AIC, me marcaram muito. No cinema, o que mais me marcou foi, sem dúvida, Tom e Jerry. Meu pai me levava aos domingos pra assistir às matinês dessa dupla incrível, no Cine Metro, na Av. S. João, em São Paulo. Era maravilhoso. Nunca imaginei que fosse me envolver com animação algum dia, mas dos anos 1980 em diante acabei atuando muito mais nessa área. Acredito que poderíamos ter trabalhado mais no sentido de encontrar um estilo próprio, uma identidade, um jeito brasileiro de animar, mais ajustado à nossa capacidade de produção, a exemplo do que os japoneses fizeram. Festivais mundo afora sempre exibiram trabalhos criativos e inovadores. O Festival de Zagreb, na antiga Iugoslávia, era um deles. Não dá pra ver tudo o que é produzido. O nosso festival Anima Mundi tem exibido muita coisa boa produzida aqui e no mundo. Father & Daughter, do holandês Michaël Dudok de Wit, e Viagem de Chihiro, de Hayao Miyazaki, sempre me impressionaram, por seus estilos e força narrativa.

6 - No começo dos anos 1980, você trabalhou em duas animações de longa-metragem do Mauricio, As aventuras da Turma da Mônica (1983) e A princesa e o robô (1984). Como foram, para você, essas primeiras experiências no ramo da animação, que memórias você tem dos bastidores desses dois filmes?

7 - Em 1984, você troca de vez a carreira de ilustrador de quadrinhos pela de animador. Como se deu isso? Naquele momento, continuar trabalhando com animação era, por assim dizer, um caminho sem volta? Ou você cogitou permanecer atuando com quadrinhos?

No final dos anos 1970, o Mauricio de Sousa comprou uma produtora de animação para produzir seus próprios filmes. Eu já não estava mais sendo aproveitado nos quadrinhos e acabei sendo transferido para este novo departamento. Eu queria animar, mas não tinha experiência nenhuma, então fui fazer layouts de planejamento de cena e ajudar o pessoal da animação nos desenhos dos personagens. No caso da animação, havia mais liberdades artísticas, diferentemente da rigidez do setor de quadrinhos. O primeiro longa, As Aventuras da Turma da Mônica, foi uma experiência interessante, especialmente por reunir tantos animadores com teorias e práticas diferentes. Cada um com suas convicções e jeito próprio de animar. A direção de animação era, digamos, muito flexível. Em meio de veteranos e novatos, fui observando e tentando assimilar o que era possível. Já no segundo longa-metragem, A Princesa e o Robô, me envolvi de maneira um pouco diferente, continuava a fazer os layouts de planejamento de cena, só que, desta vez, ajudei nos storyboards e também gravava áudios guia numa fita cassete, pra servir de referência de tempos e intenções de fala dos personagens, pros animadores trabalharem. O longa foi produzido em nove meses por muito menos profissionais do que uma produção deste tipo normalmente envolveria. Foi lançado e teve uma certa repercussão. Mesmo assim, a Embrafilme, com dificuldades administrativas, acabou não dando continuidade. Sem perspectivas de trabalho na MSP e com muita vontade de me tornar animador, fui buscar uma chance no mercado de animação publicitária. Na realidade, este era o mercado com mais tradição no Brasil. Comecei como assistente na produtora do Daniel Messias e aos poucos fui conquistando a confiança da direção até me confiarem filmes inteiros. Em seis anos, foram mais de 600 comerciais animados para as produtoras de Daniel Messias e de Luis Briquet: A águia Sam, das Olimpíadas de 1984, Frango da Sadia, Snoopy, Bond Boca, a série da Tostines – o Mexicano, Freud e Heremita (pela Briquet), o Mágico, o político e o jogador de futebol (pela Daniel Messias)... Pantera Cor-de-Rosa, Pernalonga, entre tantos personagens famosos. Nesse meio tempo, em 1985, aconteciam lançamentos de quadrinhos muito interessantes: as graphic novels estavam chegando às bancas. Autores importantes como Frank Miller e Bill Sienkiewicz  vinham a toda velocidade. Sem falar nos europeus: Moebius e Manara e outros mais. Pensei em produzir alguma coisa própria da área em que comecei e cresci e o fiz em 1991, lançando Fetichast – Províncias do Desejo, meu primeiro trabalho de HQ autoral.

8- Nos anos 1990, você volta a trabalhar com o Mauricio, novamente com animação, e permanece até hoje nessa atividade. A tecnologia evoluiu, fazer animação ficou mais fácil e mais barato. Entretanto, acredito que fazer animação – e depois exibir o resultado para uma potencial audiência – ainda é um desafio. O que você poderia comentar a esse respeito?

A tecnologia para se fazer animação evoluiu, e muito, no entanto, a base de tudo continua a mesma: é preciso ter boas histórias, bons roteiros com animações e estilos compatíveis ao número de profissionais envolvidos. Há anos a MSP vem tentando entrar no mercado internacional com suas produções. A competição é desigual e injusta. Não há uma fórmula especial para se ter sucesso. A experiência mais recente que tive foi com os filmes da série Monica Toy, que entraram com mais facilidade em outros países, atingiram muito mais pessoas por não serem falados numa língua específica e com histórias curtas e simples. Estão no Youtube e na Netflix.

9- De todas as animações que você dirigiu, quais te deixaram mais satisfeito e por quê?

Sem dúvida, Monica Toy foi uma experiência marcante pra mim por eu ter tido total liberdade na criação dos roteiros. Além de ter gravado todos os áudios e ter orientado grandes profissionais durante o processo. A produção das vinhetas de ligação da série CineGibi também foi um momento muito bom, tanto que acho que o timing de animação da TM tradicional deveria ser neste estilo. Outro trabalho de que gosto muito foi a animação que fiz pro videoclipe do D2, pra MTV, da música Eu tive um sonho, já com uma proposta bem diferente.

10- O seu estilo de desenho é muito marcante. É possível dizer que é você o autor do traço tanto em uma história da Turma da Mônica do final dos anos 1970 quanto em uma pinup produzida para o estúdio do Mauricio de Sousa em anos recentes. De onde veio o seu estilo de desenho? O que você leu na juventude que foi determinante para te influenciar na maneira de desenhar, que ilustradores estão no seu DNA artístico?

O meu estilo de desenho foi e vem sendo construído ao longo dos anos através de erros e acertos. Nunca consegui emular nenhum estilo em particular. Por mais que tentasse, saía sempre diferente. Comecei então a tentar entender e resolver tecnicamente do meu jeito, baseado em tudo que já havia estudado. Neste sentido, posso dizer que não há apenas um ou dois desenhistas como referências, mas sim muitos.

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11 - E por falar em influência, você sempre comenta do papel que o Jayme Cortez teve na sua formação. Poderia contar um pouco sobre isso?

Jayme Cortez foi uma espécie de mentor. Foi ele quem me apresentou revistas como Heavy Metal, com desenhistas fantásticos como Moebius e Druillet, e a arte de Frank Frazetta. Um belo dia, ele jogou estas revistas sobre minha prancheta e disse para eu dar uma olhadinha. Foi  impacto fulminante. Era o final dos anos 1970 e, até então, nunca tinha imaginado que houvesse esse tipo de produção de quadrinhos e ilustrações com tanta beleza, sensualidade e ousadia. Cortez me estimulou a desenhar meus próprios quadrinhos. Forçando a me aventurar e a navegar por mares desconhecidos, numa viagem que continua até hoje.

Também funcionário de Mauricio nos anos 1970, o ilustrador luso-brasileiro Jayme Cortez foi determinante na formação de José Márcio Nicolosi.

Também funcionário de Mauricio nos anos 1970, o ilustrador luso-brasileiro Jayme Cortez foi determinante na formação de José Márcio Nicolosi.

12 - O seu pai também foi importante para sua carreira no desenho, não é mesmo? Ele também desenhava? Por acaso era leitor de quadrinhos? Sua família te apoiou na escolha de trabalhar com desenho?

Meu pai foi o primeiro desenhista que conheci e foi absolutamente decisivo na minha entrada na vida profissional. Me incentivou desde menino pois comecei a desenhar muito cedo, muito antes de aprender a escrever. Nos comunicávamos através de recadinhos ilustrados. Era jornalista, mas acredito que gostasse muito de desenhar e de caligrafia artística. Não me lembro de vê-lo lendo gibis em casa mas creio que era leitor assíduo dos quadrinhos publicados em jornais como a Folha de S. Paulo, onde trabalhou.

13- E por falar em trabalho, você cursou parte do curso de física, correto? Por que essa escolha ao invés de artes plásticas, arquitetura ou algum curso mais ligado ao desenho?

Comecei a trabalhar numa loja de automóveis usados, só depois fui pra MSP, aos 16 anos. Não tinha muita clareza quanto ao meu futuro profissional na MSP. Quando veio a época de vestibular, o cursinho e todas aquelas aulas animadas, resolvi prestar pra Física no período noturno, na USP. Por via das dúvidas, ser professor como minha mãe, também era uma opção. Passei. Fiquei feliz, mas pouco tempo depois percebi que havia cometido um engano, seriam necessárias muitas horas de estudo por dia e desse tempo eu não dispunha, pois precisava trabalhar durante o dia todo. Tentei uma transferência pra outra área, mas não deu certo, então fiz minha escolha e abandonei definitivamente a faculdade.

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14- A quantas anda a animação do Astronauta, baseada nas graphics do Danilo Beyruth? Alguma previsão de estreia?

A série do Astronauta será produzida pela HBO. Serão seis episódios de 22 minutos e, até onde eu sei, sem data prevista para lançamento. Produzimos aqui na MSP o teaser, que foi exibido na Comic Com. Foi animado num prazo curto, mas acredito que tenhamos alcançado uma qualidade interessante e atingido nosso objetivo principal: despertar o interesse pela produção da série. A animação será produzida pela produtora Birdo.

15 - E quais são os seus projetos futuros em animação? Tem alguma novidade ainda inédita que você poderia antecipar (pelo menos em parte) aqui nessa entrevista?

Na MSP estou trabalhando algumas propostas na área de games e pra nova turminha baby da Mônica. Tenho também intenções de fazer animações curtas com meus personagens de Fetichast.

16- Quem leu os gibis mais antigos da Turma da Mônica, ou na época ou em republicações, percebe que coexistia ali uma pluralidade de estilos (uns mais simples, outros mais rebuscados) ilustrando as histórias dos personagens. Entretanto, parece haver uma memória afetiva intensa ligada ao que se convencionou chamar de “fase fofinha”, que vai da segunda metade dos anos 1970 até os primeiros anos da década seguinte e tem em você e na ilustradora Emy Acosta os principais representantes. Como era, na época, essa questão de aplicar um estilo tão distinto nessas HQs? Até que ponto existia liberdade de criação e até que ponto vocês precisavam respeitar o model sheet ou outros preceitos do estúdio?

Bem, quando eu entrei no estúdio, em 1974, a Emy já estava lá e já era uma das principais desenhistas da empresa. Ela pertencia, e ainda pertence até hoje, ao setor de merchandising e ilustração, setor ao qual fui encaminhado na época. Eu tive imensa dificuldade em reproduzir aquele estilo redondinho dela. Não havia manuais ou modelos de estudos disponíveis apresentando fórmulas de construção das proporções, com variações de poses e atitudes dos personagens. Os desenhistas tinham que produzir e não tinham muito tempo pra ensinar. Quase desisti, a ponto até de pensar que meu futuro não seria no desenho. Ou, pelo menos, naquele tipo de desenho. Comecei então a pesquisar por conta própria outras fontes que eu tinha em casa. Asterix sempre foi uma referência. Os detalhes e a expressividade das poses que Uderzo colocava nos seus quadrinhos me chamavam a atenção. Seria possível desenhar a Mônica no estilo europeu de Uderzo? Foi tentando esta mistura de estilos, emprestando detalhes de um e de outro, que fui moldando aos poucos minha própria maneira de resolver meu estilo "redondinho" da Turma da Mônica.

17 - Nas suas HQs com a Turma da Mônica, Pelezinho, etc. é possível notar uma multiplicidade de recursos gráficos e narrativos, se não inéditos, bastante raros na trajetória das HQs do Mauricio, como diferentes angulações e jogos de câmera, uma expressividade “elástica” tanto no corpo quanto nos rostos que você aplicava nos personagens, as hachuras, enfim, uma abordagem muito próxima da autoral e em diálogo com a animação – quase como se, ainda nos 1970, você já estivesse fazendo o que os autores fazem agora nas graphics MSP. Não é exagero afirmar que ali está o auge, enquanto linguagem de quadrinhos, alcançado pelos gibis mensais do Mauricio. Entretanto, ainda em meados dos anos 1980, ao invés de dar continuidade a essas possibilidade, o estúdio opta por HQs bem mais simples, que vão no caminho inverso (simplicidade extrema de recursos narrativos e fidelidade quase absoluta ao model sheet). Você saberia dizer por que dessa opção pela simplificação?

O movimento sempre foi muito importante pra mim. Animação e quadrinhos sempre estiveram próximos. Desenhos animados, quadrinhos em movimento, são imagens em movimento. O cinema é a fonte de inspiração para ambos. Desenhar como se estivesse com uma câmera nas mãos foi um desafio a que me propus encarar. Isto requer tempo de elaboração. Quando se produz em larga escala este tempo já não existe. Os talentosos desenhistas da MSP hoje tem uma alta produção a cumprir. Na época eu era do departamento de Ilustração e Merchandising da MSP, ou seja, os quadrinhos não eram minha principal atividade dentro da empresa, apesar de gostar muito de fazê-los. Além disso, havia muito menos revistas mensais do que se tem hoje. Traços mais simplificados são mais fáceis de serem reproduzidos por diferentes profissionais. A quantidade de revistas mensais é bem grande, portanto, a produção de páginas por dia é bem alta. Ganha-se por página desenhada e aprovada. Os prazos são curtos e a pressão sobre os desenhistas é grande. Tudo isto contribui para uma simplificação que, invariavelmente, perde artisticamente. Quando se aumenta a quantidade, afeta-se profundamente a qualidade. Eu, por exemplo, tive muitas páginas recusadas na minha época por não serem limpas e simples o suficiente para outros arte-finalistas trabalharem. Além de problemas com o model oficial da casa. O único que aceitava era o Alvin. O que me deixava muito feliz.

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18- Dessa época da “fase fofinha” quais são as suas histórias favoritas (e por quê)?

"Baile à fantasia", da Turma da Mônica, e "Guerra no campinho", da turma do Pelezinho, publicadas pela Abril, respectivamente em 1977 e 1978. Me senti bem à vontade pra desenhar e a arte final do Alvin Lacerda Filho está fantástica em ambas. Lembro-me dele colocando sua prancheta na sala onde eu ficava e começando a trabalhar nessas páginas. Era um prazer vê-lo ali ao lado, arte-finalizando meus desenhos. Aprendi e apreendi muita coisa só de ver sua mão esquerda em ação. Uma segurança e domínio técnico incríveis.

19- Você tem diversas histórias curtas, autorais, publicadas ao longo dos anos 1980 e 1990 em revistas de quadrinhos brasileiros. Gosta de alguma delas em especial (e por que)?

Teve uma que saiu na Metal Pesado, chamada "Memória", que fiz sobre o caso do PC Farias, o "Morcego Negro", tesoureiro do fatídico ex-presidente Collor, que achei muito interessante. Teve também uma série em quadrinhos chamada FlipBook Stories, onde eu falava sobre animação, seus princípios e suas diferentes técnicas, e uma página especial sobre a "Amazônia ano 3000",  lançada numa revista/catálogo do Festival HQ Mix em 1997.

20- Cascão Porker é um marco na sua trajetória. Além de ser sua primeira nova história com personagens do Mauricio em mais de 30 anos, é a mais longa. Conte um pouquinho dos bastidores dessa produção e o que ela representou (afetivamente, enquanto realização) para você.

Foi interessante ser convidado a fazer quadrinhos para a MSP depois de décadas ausente e de ter saído justamente por ter um estilo que não se encaixava aos padrões vigentes da casa. Estava dirigindo o Departamento de Animação quando surgiu esse convite. Pensei que seria difícil, principalmente não tendo mais o Alvin como parceiro na finalização, pois ele já havia falecido. Sugeriram então de eu mesmo finalizar a lápis, como já tinha feito antes, nas tiras do Penadinho e em tantas ilustrações da Folhinha, mas pra isso eu precisaria de um prazo maior. O Mauricio topou e aí comecei. Eu fazia as páginas entre as pausas de produção de animação. Assisti inúmeras vezes aos vídeos do filme para pegar as referências. Foi trabalhoso, pois não costumava trabalhar assim, mas foi muito legal. Porém, a publicação final, lançada em 2009, não saiu com meu nome nos créditos. Fato corrigido agora em 2019 por ocasião do seu relançamento.

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21- De certa forma, é possível dizer que Cascão Porker é a sua Graphic MSP. Mas se você tivesse a oportunidade de fazer outra, com qual personagem gostaria de trabalhar (e por que)?

Não considero "Porker" uma Graphic MSP. Pois ainda se trata de uma versão próxima dos personagens tradicionais do Mauricio. Versões minhas diferentes saíram publicadas nas edições comemorativas da Panini: MSP+50 e Ouro da Casa, com páginas em que fiz a Mônica um pouquinho mais gordinha e o Horácio um tiranossaurozinho diferente. Mas gostaria mesmo era de fazer uma versão de A Princesa e o Robô, com o Lorde Coelhão contando a sua versão da história.

22- Fetichast é a sua principal criação autoral enquanto ilustrador e roteirista de quadrinhos. Para quem nunca leu nenhum dos dois álbuns, apresente resumidamente do que se trata a obra.

Fetichast é a primeira obra de quadrinhos assinada por mim. Foi muito importante porque, durante décadas, fui um desenhista fantasma. O anonimato também aconteceu na animação enquanto fui freelancer. É muito importante seu trabalho ser apresentado ao público e receber críticas dirigidas a você, sejam elas boas ou não, e você poder responder por isso. Quando criei Fetichast, pensei em falar sobre coisas que seriam absolutamente impensáveis trabalhando com a turma da Mônica. Críticas sociais são perigosas e podem ferir suscetibilidades, à medida em que tratem de assuntos delicados e polêmicos. Fetichast me permitiu tocar nesses aspectos peculiares da nossa sociedade durante os anos 1980, quando se encerrava um período ditatorial de mais de 20 anos e uma falsa sensação de liberdade se estabelecia, tendo a TV como principal protagonista. Uma nação dividida, a exploração da mulher, do corpo feminino, a sexualização precoce das crianças, a ignorância disseminada me fizeram criar um mundo alegórico onde homens e mulheres estão em guerra. E me parece que continuam até hoje.

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23- Em Fetichast você tece comentários críticos em relação a sexualização infantil e à idiotia via telemanipulação. Na sua opinião, da publicação de Província dos desejos em 1991 para hoje, acredita que nós pioramos ou evoluímos em relação a isso?

Pioramos em uns aspectos e melhoramos em outros. Talvez hoje tenhamos mais consciência das coisas. Expõe-se mais o que antes se ocultava ou sequer se discutia. As mídias sociais demonstraram sua força e concorrem fortemente com a TV aberta, mas existe o perigo do "politicamente correto" virar censura, o que de certa forma, acredito que já esteja ocorrendo. Quem domina os meios tem condições absolutas de alcançar seus fins.

24- Em Festichast – Província dos Cruzados, seus desenhos dispensam a arte-final em nanquim e são finalizados em lápis, causando um efeito bastante peculiar e de forte personalidade visual. Quem acompanha o seu trabalho sabe que esse tipo de “acabamento”, por assim dizer, está presente em outras das suas HQs, mas ali é perceptível que você levou essa opção além. Por que escolheu esse caminho para a obra?

Achava que seria interessante ver um episódio inteiro de Fetichast finalizado a lápis. Foi uma experimentação que acabou dando um resultado interessante. Voltarei a usar este tipo de finalização nas sequências.

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25- O primeiro Fetichast foi publicado em 1991 e o segundo em 2007. No seu antigo site (saiu do ar de vez?) você comentou que o terceiro álbum estava em desenvolvimento. Alguma previsão quanto a isso? E o que você pode adiantar sobre esse novo trabalho?

Tenho escritos os episódio três e quatro. Mas estou me empenhando mais em terminar um capítulo especial mais curto. Uma fábula dedicada às crianças e jovens de Fetichast, pra ser lançado na Comic Con 2019.

26- Como foi fazer a adaptação de O Pequeno Príncipe? Gostaria de saber detalhes de bastidores, como foi a pesquisa, quais as intenções da adaptação, etc. Pelos seus posts no Facebook, tenho a impressão de que você tem muito orgulho desse trabalho...

Foi gratificante criar as ilustrações para o clássico da literatura O Pequeno Príncipe. Pesquisei muita coisa, desde ilustrações originais do próprio Exupery até versões em quadrinhos mais recentes. Mas o que mais me marcou foi um musical francês, muito bonito, em que o protagonista lembrava muito o Mauricio bem mais jovem. A partir daí, comecei a imaginar as ilustrações, tentando de certa forma dar um toque brasileiro, incluindo araras azuis, tamanduás e sucuris, que de certa forma acompanham o "cabeludo e loiro" Cebolinha em sua jornada. Fiquei muito feliz com o resultado final e, principalmente, com o meu nome aparecendo nos créditos.

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27- Você também tem ilustrações no livro Mauricio de Sousa – Biografia em quadrinhos. Previsão de mais alguma parceria entre vocês dois?

Na biografia em quadrinhos eu fiz apenas a capa, baseada numa ideia do roteirista Flávio Teixeira que, por sua vez, se baseou numa tela de Norman Rockwell. As cores foram feitas por Mauro Sousa.

28- O seu perfil no Facebook ficou “silencioso” por muito tempo, mas recentemente você passou a postar com frequência, desenhos e memórias, e tem tido uma resposta carinhosa dos fãs. Um pedido que aparece com frequência por ali é o lançamento de um almanaque com as suas histórias da “fase fofinha”. Aliás, não é de hoje que seus admiradores gostariam de algo assim. Você (ou a MSP) chegou a cogitar uma publicação do tipo? Podemos esperar alguma novidade nesse sentido para breve?

Rompi o "silêncio" pra tentar, em principio, homenagear profissionais que eu admirava, com os quais convivi e que caíram no esquecimento. De certa forma, eu mesmo já estava me sentindo assim, então resolvi lembrar um pouco como foi o início de minha trajetória e falar da importância que eles tiveram na minha vida profissional, usando a mídia social disponível. E qual não foi minha surpresa ao descobrir histórias de vida de muita gente, inclusive muitos profissionais, que se relacionavam de alguma forma à minha. Situações que eu nunca poderia ter imaginado. E ter tomado conhecimento delas foi muito gratificante. Se ao longo dos mais de 40 anos de vida profissional não recebi muitos prêmios, posso dizer que esses depoimentos valeram por todos os prêmios que eu pudesse ter recebido. Por questões internas, será improvável publicar alguma coisa oficialmente pela MSP. Mas já me ofereceram possibilidades de publicar alguma coisa independentemente.

29- Qual a próxima publicação a ser lançada com a assinatura de José Márcio Nicolosi?

Uma fábula infantojuvenil em quadrinhos que se passa ainda no universo de Fetichast.

30- Que obra você ainda quer fazer (em animação ou quadrinhos)?

Continuar o 3º episódio, onde apresento um novo personagem, um desenhista chamado Patto Scorpio, e o 4º episódio intitulado "Províncias dos Véus Profanos", onde falo um pouco sobre como tudo começou; e também fazer animações de 12 temas musicais que criei para os principais personagens de Fetichast. Existe uma "trilha sonora" que imaginei há muitos anos, antes até de eu fazer o segundo episódio, "Província dos Cruzados", em 2007, e gostaria muito de apresentá-las.

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