RAPIDINHAS: PILHA DE ANGOULÊME 2022

Dois meses depois da cobertura exclusiva RAIO LASER/EUROCOMICS em Angoulême, com alguns dos gibis adquiridos devidamente lidos, vale a pena compartilhar nossas impressões (na forma de crítica) sobre estas novidades. Portanto, aí vão cinco contribuições minhas e duas de Bruno Porto neste sentido – um quadrinho francês, dois belgas, um israelense e três espanhóis. Resenhas RAIO no padrão de sempre. (CIM)

Confira nossa cobertura de Angoulême 2022:

Playlist com os 13 vídeos da cobertura Raio Laser/Eurocomics

LASERCAST # 36 - QUADRINHOS ALTERNATIVOS BRASILEIROS EM ANGOULÊME 2022

LASERCAST #38 – NEM TUDO O QUE ACONTECE EM ANGOULÊME, FICA EM ANGOULÊME 2022

ANGOULÊME É UMA FESTA!

ROLÊ ALEATÓRIO EM ANGOULÊME E UM POEMA PARA A ESTÁTUA DE CORTO MALTESE

por Ciro Inácio Marcondes e Bruno Porto

Tunnels – Rutu Modan (Actes Sud BD, 2020): O procedimento mais bruto e básico da arqueologia consiste em escavar camadas de terra que revelem cidades, eras e períodos geológicos distintos, uns sobrepostos sobre os outros, empilhados pelo poder do tempo. O que a quadrinista israelense Rutu Modan – uma das figuras proeminentes nos romances gráficos contemporâneos – faz em Tunnels, com sua metáfora sobre escavações, tesouros, exploradores e, claro, túneis, é sobrepor camadas interpretativas cada vez mais complexas para sua história, como se fôssemos escavando e, de repente, descobríssemos algum segredo sobre as relações familiares, que ocultava então um outro segredo, sobre vaidade e academia, que ocultava outro sobre o passado das relações Israel-Palestina, e por aí vai.

Tunnels foi um dos grandes destaques da seleção oficial para o Fauve d’Or em Angoulême (que foi vencido por Marcello Quintanilha), e é fácil visualizar por quê. Rutu Modan guarda algo de uma longa linhagem de mulheres extremamente engraçadas (de Lina Wertmüller a Tina Fey), ao mesmo tempo em que compartilha um senso de humor “deadpan” característico de Buster Keaton-Jacques Tati-Wes Anderson. Ou seja: a história sobre uma família de arqueólogos que procura a famosa arca da aliança (“aleluia irmãos!”) escavando sob território palestino, e que envolve colecionadores de arte, judeus ortodoxos e até o ISIS, ganha tons de farsa e às vezes até descamba para o pastelão. Tudo com um cálculo preciso entre ironia, absurdo e drama, uma boa fórmula para fazermos uma leitura da realidade em si, que deve residir em algum lugar aí no meio.

Este é um romance gráfico ao mesmo tempo denso, cheio de meandros e lições não necessariamente claras, e leve, meio besta, adorável na sua abordagem da linha clara, parodiando Tintim e descaracterizando (ao mesmo tempo em que homenageia) a tradição colonial-europeia de quadrinhos recheados de “white saviors”, cientistas eticamente engajados, e populações que precisam ser resgatadas de perigos imaginários. Em Tunnels, o buraco é (com o perdão do trocadilho) bem mais embaixo. Visões de mundo, interesses econômicos, vaidades individuais e devires históricos colidem quando as camadas dessa escavação começam a se imiscuir, se indiferenciar, revelando os caminhos tortos do mundo moderno. Certamente um dos melhores quadrinhos lidos no ano. No blog O Quadro e o Risco você vai encontrar uma excelente entrevista em português com Rutu Modan, em que ela explica seu processo de criação e os desafios de produzir Tunnels. (CIM)

Être un homme: Comment et pourquoi - Albert Monteys (Éditions FLBLB, 2021): Na breve conversa que tive com Monteys em frente ao Hôtel de ville d'Angoulême (que você confere aqui), ele revelou que não estava no Festival para autografar nem ¡Universo!, que a Dargaud lançara no país dois anos atrás (devidamente resenhado pelo Marcão Maciel aqui) nem o excelente Matadouro-Cinco, adaptação sua (arte) e de Ryan North (roteiro) do romance antibelicista de Kurt Vonnegut, que ainda não fora publicado na França (mas que nosso Marcão também resenhou aqui). Oficialmente, ele estava ali para lançar a edição francesa de Ser un hombre: Cómo y por qué - Guía de uso de la testosterona, publicado pela espanhola Astiberri há uma década. O livro é uma obra prima do humor irônico, expondo os aspectos ridículos da masculinidade tóxica como um manual do universo macho, com capítulos dedicados, por exemplo, a se conseguir uma cicatriz, listando quais cortes de cabelo são aceitáveis e regras de postura no vestiário, ou como utilizar mais de 20% da capacidade do seu pênis (de acionar um interruptor de luz a utilizá-lo para abater um urso), entre outros tópicos semelhantes.

Na maior parte do ligeiro álbum (32 páginas), Monteys imprime em seu caprichado e expressivo desenho uma linguagem bem próxima à infografia, que é reforçada pela decisão de ter a arte de cada capítulo sempre a duas cores, em que o preto é combinado a uma segunda cor, frequentemente reticulada. O tom da HQ é preciso, sem resvalar para a grosseria, como se a finada revista MAD fosse um pouco mais sofisticada a ponto de explorar temáticas adultas sem a fúria do conservadorismo estadunidense. Traduzida por Thomas Dupuis, a edição da FLBLB é muito bem cuidada, não apenas adaptando com coerência os letterings caligráficos que Monteys utiliza — tarefa creditada aos letreiristas Lucie Castel e Guillaume Heurtault, com o auxílio de Maïwenn Brochen — como melhorando a capa original graças à escolha tipográfica. (BP)

Transcrepuscular (Los Ojos Bizcos del Sol) – Jordi Pastor (Gigamesh, 2020): Um planeta que não faz o movimento rotacional e, portanto, possui um dos lados eternamente iluminado (e logo com tórrida temperatura) e o outro sempre no escuro (portanto, um deserto gelado). A fina linha equatorial que une as suas duas abóbodas convexas é o único espaço habitável e palco das tensões e aventuras de Transcrepuscular, série baseada nos livros do consagrado autor espanhol de sci-fi Emilio Bueso, cujo primeiro volume foi adaptado para os quadrinhos por Jordi Pastor. Trata-se de uma pira alucinatória com paleta rosa-choque e laranja de fazer corar mesmo os delírios mais jodorowskyanos.

Na verdade, a breve sinopse acima das condições do mundo de Transcrepuscular é uma das únicas coisas facilmente compreensíveis dentro de um contexto que se abre para a imaginação sem rédeas e despreocupada que o autor original chama de sword and planet. Conexões simbiótico-lisérgicas com moluscos místicos, rituais transcendentais de sexo e epifanias ao se viajar num trem que é na verdade uma espécie de centopeia gigante, essas são coisas que encontraremos nessa narrativa aberta e avessa a detalhamentos. Ela vai nos carregando vertiginosamente ao interior psiônico de um grupo de personagens-aventureiros (como se fosse um RPG que habita o ápice de uma viagem de cogumelos psilocybe cubensis) que veem suas realidades se deteriorarem diante de mistérios, revelações e miragens.

Jordi Pastor capricha numa arte que tira proveito da ausência de gradações e sutilezas das ferramentas digitais para criar contrastes aberrantes, em cores virulentas que se alteram em praticamente cada quadro. O resultado pode ser frustrante para alguns leitores, porque muito doidão e incompreensível, porém experimental e desafiador para outros. Lembrando a arte do grande e falecido ilustrador francês Arno, o sword and planet de Pastor e Bueso de fato segura bem a responsa de dar continuidade à tradição de misturar fantasia, ciência e lisergia, presente em obras da tradição europeia, como Alef-Thau ou Le Vagabond des Limbes, ainda que, como ocorre em publicações deste tipo, quando a coisa está esquentando, o gibi acaba. (CIM)

La Folie des Lucioles (#1 La Jungle Maudite) – Stéphane Bouillet (Public Averti, 2021): Vudu, xamanismo, plantas do poder, arte visionária. Violações, assassinatos, traições, possessões. Tudo isso se mistura neste que também é o primeiro volume de uma trilogia ainda inconclusa, realizada pelo artista e quadrinista francês Stéphane Bouillet. Ele diz que elaborou todos os esboços deste gibi sob estado de consciência modificado: estados hipnóticos, transe, meditação, alucinações. Pode parecer papo de doidão, mas Bouillet leva a sério as vivências xamânicas, aparentemente despertadas no encontro com elefantes selvagens no Congo Brazzaville.

Qualquer que seja a inspiração, La Folie des Lucioles nos captura como uma incursão sem volta ao coração das trevas. E a referência ao livro de Conrad não é por acaso. Ilustrado vigorosamente com influência de mangá ero guro, mas sem se distanciar de suas referências europeias (notadamente Moebius), o gibi nos coloca diante de três personagens (dois homens e uma mulher) que acordam em uma selva extremamente sinistra sem se lembrarem de quem são, seus passados e antecedentes. Logo eles descobrirão que a selva é um espaço umbral onde coisas profanas acontecerão. Seriam projeções de suas mentes? Estariam eles num pesadelo de psicodelismo turvo provocado por alguma droga ou torpor meditativo? Estas respostas ficam à deriva (ou talvez deixadas para os próximos volumes), mas o desenvolvimento desta jornada dark foi perturbador o suficiente para arrancar elogios rasgados de Jean-Pierre Dionnet.

La Folie des Lucioles, extremamente gráfico e violento, vai nos colocar diante de realidades desconfortáveis, como o estupro e as violências física e psicológica. Ao mesmo tempo, há uma troca de valores que prevalece entre os deuses sinistros do vodu, certo Samsara, a preservação do instinto de sobrevivência e a força do renascimento. Bouillet não nos poupa de experiências traumáticas, e sua arte, em quadros grandes, dinâmicos, que alternam vozes e exploram brilhantemente imagens em negativo, é um vetor perfeito para o aspecto desvairado e alucinatório do quadrinho. Inclusive, ele compõe aqui uma das cenas de sexo (xamânico) mais “transcendentais” que já vi num gibi (e isso é uma coisa boa). Enfim, uma grande surpresa, considerando que o adquiri na base do “instinto” – quando você apenas folheia a obra sem qualquer referência num stand, vai com a cara dela e leva. Uma coisa assim corajosa, indiferente às delicadezas e medos contemporâneos, que só poderia mesmo estar localizada longe das grandes editoras. (CIM)

The City of Belgium - Brecht Evens (Drawn + Quarterly, 2021): Premiado com o Fauve d’Angoulême: Prix Spécial du Jury em 2019, este livraço do belga Brecht Evens nos carrega junto a três personagens quando estes adentram o lado eufórico e sombrio dos bares e boates multicoloridos, em uma estrutura narrativa livre de requadros e margens. Escandalosamente magnífica, a arte deste álbum traduz de forma meticulosa a urgência da trama — é a última noite do protagonista na cidade, sua esposa já se encontra em Berlim — e verdadeiramente surpreende a cada virar de página. (BP)

Alerte 5 – Max de Radiguès (Casterman, 2021): Finalista do “Fauve de Lycéens” (escolhido por estudantes secundaristas) em Angoulême 2022, Alerte 5, do belga Max de Radiguès, é um quadrinho simples, publicado originalmente em formato fanzine durante a pandemia a partir de 2020. Radiguès porém já havia vencido o prêmio Polar em Angoulême-2018 com seu quadrinho tarantinesco Bâtard, e Alerte 5 parece acenar para um cenário todo novo na carreira do autor, que parece usar o confinamento daqueles primeiros dias (traumáticos para todos) de insegurança e incerteza para criar uma metáfora bem sacada, porém um tanto inócua, do nosso “detestável mundo novo” pós-pandêmico. O plot é agônico, e foi o que me jogou à leitura: cinco astronautas confinados numa missão em Marte (o cuidado em fazer uma sci-fi hard é admirável) recebem a notícia de que devem acionar o tal “protocolo 5” (altamente rigoroso) de ações porque há uma suspeita de que a base, fora da Terra, possa sofrer um ataque terrorista.

Colocado assim parece dramático, mas Rodriguès, adotando um estilo “linha clara fofa” num desenho em preto e branco limpo, simplista, caricatural e sem sombras ou hachuras, procura nos conquistar com os conflitos internos, por vezes abobalhados, por vezes deveras emotivos, de sua simpática tripulação. Diferentes nacionalidades, etnias, profissões, formas de pensar e de se relacionar acabam transformando Alerte 5 numa espécie de sitcom amena. Quer dizer, o substrato sociopolítico, as tensões de um mundo real polarizado e dramático jazem lá, recônditas, em algum lugar. Logicamente, o autor trabalha mais com humor do que com desdobramentos sérios da pandemia e das relações internacionais, mas aos poucos vamos nos desgrudando do interesse inicial que buscava ensaiar uma visão lúdica sobre o confinamento para simplesmente irmos acompanhando repetições um tanto monótonas, que não são quebradas mesmo por um plot twist que se pretende muito engenhoso. Fofo, mas confesso que foi duro chegar até o fim.  (CIM)

Rituels – Álvaro Ortiz (Rackham, 2016): Autor pela prestigiada Astiberri, Álvaro Ortiz tem se destacado como um dos melhores quadrinistas da atual geração espanhola. Seu estilo alterna muitas diferentes configurações dos quadros em uma mesma história, o que facilita a imensa variação de temas que são abordados neste ótimo Rituels (“Rituais” na edição francesa). Lembro que, em Angoulême, ao abordá-lo para perguntar qual de seus quadrinhos seria o mais interessante para começar a ler sua obra, ele ofereceu Cendres, espécie de “road comic” com forte pegada indie (aparentemente seu “hit”), e Rituels, que ele descreveu como “para pessoas que gostam de coisas estranhas”.

Alguns dias depois eu estava, portanto, lendo Rituels com interesse cada vez renovado pelas diversas histórias que misturam: vida moderna, cosmopolitismo, certa sensualidade, ficção científica trash, um toque lyncheano, outro mais new age. Tudo isso encampado pela misteriosa imagem de um alienzinho pintudo que conecta as histórias, provocando caos, tormento e destruição por onde passa.

Ortiz não parece ter se importado muito com a homogeneidade dos capítulos ao criar Rituels. Realizado na Academia da Espanha em Roma com uma bolsa, esse quadrinho tem jeito de experimento e cada um de seus contos – alguns sequenciados em outros capítulos, e outros de um fôlego só – possui uma pulsão própria, alimentando um aspecto endógeno que só rompe fronteiras, formando um sentido geral para a história, se entendermos a imagem do alienzinho como uma metáfora para desejos humanos e a entropia do universo.

Quer dizer: mesmo parecendo irônico e aleatório, sem se importar com coerência (ou apenas querendo firmar uma história de horror nonsense que soe cool) Rituels costura bem coisas como: um pintor nazista a serviço de Hitler, a história secreta de uma governanta americana do século XIX, o destino do também pintor italiano Caravaggio, a produção de uma série de TV de baixa qualidade, etc. Aquilo que não está dito e é lacunar, produzindo o estranhamento geral de forma e conteúdo desta história, no final das contas, vem a somar para fazer de Rituels um dos gibis mais legais e originais que li nos últimos tempos. Não à toa, foi premiado no Salón del Cómic de Barcelona em 2016. (CIM)