Brasília 60 anos – aparições de um imaginário em quadrinhos

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por Pedro Brandt

Há exatos 60 anos, em 21 de abril de 1960, Brasília era inaugurada como a nova capital do Brasil. Além do impacto no país, por razões óbvias, o acontecimento foi notícia na imprensa internacional, que relatou, com assombro e otimismo, a novíssima cidade brasileira. Filmagens, fotografias e outros registros da época ainda impressionam ao mostrar o que parece uma maquete de prédios de arquitetura modernista no meio do deserto – um deserto, aliás, de terra vermelha, que as fotos em preto e branco não conseguiam mostrar.

Muitas outras fotos, tanto da construção de Brasília quanto de seu cotidiano nos primeiros anos, revelam – ou ao menos insinuam – o vazio e a amplitude monumental da cidade – ainda em obras, muito tempo depois da inauguração. Se vistas hoje essas imagens impressionam, imagine o efeito há seis décadas. Especialmente naqueles tempos, Brasília causava estranhamento, fascínio e uma inegável associação com localidades antes apenas vistas ou imaginadas em obras de ficção. E, especificamente, de ficção científica. Esse imaginário sobre a cidade, muitas vezes fantasioso e focado principalmente nas edificações criadas por Oscar Niemeyer, não demorou para reverberar na cultura pop. E não seria diferente nas histórias em quadrinhos.

Ao longo de anos, fui juntando alguns quadrinhos com menções a Brasília, em especial aqueles que criaram algo a partir do imaginário futurista da cidade, mais do que retratá-la como mero cartão postal ou como a cidade onde moram e (aspas opcionais) trabalha parte dos políticos brasileiros. O que vem a seguir não se pretende como uma lista definitiva ou completa das aparições da capital do Brasil em histórias em quadrinhos. Optei por um recorte que passeia pelo inusitado e pitoresco, com algo de histórico e, acima de tudo, para encher os olhos, coisa bonita de ser ver. Como eu acho que Brasília é – e, gostaria de acreditar, os autores aqui relacionados também acharam quando produziram esses quadrinhos.

Este post é também uma homenagem às seis décadas da nova capital. Um aniversário sem festa durante a quarentena, mas que não poderia passar em branco na Raio Laser.

HQ pioneira

Provavelmente a primeira aparição de Brasília em uma história em quadrinhos data de janeiro de 1959. Trata-se de uma edição especial da revista mensal Epopéia (nome ainda grafada com acento) encomendada a Adolfo Aizen, dono da Editora Brasil-América, a Ebal, pelo próprio Juscelino Kubitschek. O então presidente, reconhecendo o efeito educativo dos gibis lançados por Aizen – que tradicionalmente colocava nas bancas publicações com biografias quadrinizadas de vultos nacionais –, acreditava que uma revista do tipo seria importante para apresentar a nova capital do país a seu público-alvo, ou seja, crianças em idade escolar.

Epopéia - Brasília (capa)

Epopéia - Brasília (capa)

Com textos de Nair da Rocha Miranda e desenhos (também a capa) de Ramón Llampayas, “Brasília, coração do Brasil” é uma HQ meticulosamente pesquisada. Um texto de apresentação explica que, antes da chegada à gráfica, os originais passaram pelo escrutínio de JK, Niemeyer, engenheiros e arquitetos envolvidos com a construção da cidade, além de citar uma bibliografia que contou com livros, relatórios, estudos e outras fontes de consulta. Completam esta edição especial de Epopéia uma série de fotografias da construção de Brasília.

A HQ inicia sua jornada na formação geológica do planalto central no estado de Goiás que, segundo o texto de um recordatório, é a “região mais antiga da Terra”: “Em épocas pré-históricas, um mar profundo, de águas quentes e revoltas recobria-a inteiramente, como provam os fósseis e restos de vida marítima de toda espécie contidos nos sedimentos das camadas estratificadas do platô goiano”.

Epopéia (Brasília) - detalhe

Epopéia (Brasília) - detalhe

A história continua com o descobrimento do Brasil, a chegada dos bandeirantes e o descortinar de novos territórios, passando por diversas tentativas políticas, ainda no século 19, de levar a capital da colônia para o interior, onde ficaria menos vulnerável à invasões pelo litoral. São apresentados, nas páginas seguintes, diversos dos argumentos utilizados com esse mesmo intuito e ainda alguns dos entusiastas dessa mudança, como o astrônomo e geodesista belga, radicado no Brasil, Louis Ferdinand Cruls, que ajudou a esquadrinhar o planalto central; e o religioso São João Bosco, conhecido pela visão profética de uma nova capital no centro do país. “Neste sítio surgirá a Grande Civilização, a Terra Prometida, onde jorrará o leite e o mel! Sucederá na Terceira Geração!”, teria dito, em sonho, um anjo a Dom Bosco.

Chegamos, então, em Juscelino e a marcha para construir Brasília em páginas recheadas de textos nos balões e recordatórios, com datas, leis, discursos, promessas, etc. Pouco depois, entram em cena o urbanista Lúcio Costa e o arquiteto Oscar Niemeyer. E é por aqui que a HQ fica mais interessante, apresentando diversas plantas aéreas e outras estruturas que viriam a dar a cara da cidade, como as (conjuntos habitacionais) superquadras, palácios, igrejas, monumentos e outros setores de Brasília.

Epopéia (Brasília) - fundadores

Epopéia (Brasília) - fundadores

A HQ é encerrada com ilustração quase mística de JK, e loas à bravura do presidente – figura que, para muitos, era a reencarnação do faraó egípcio Aquenáton que, por sua vez, levou a capital do Egito de Tebas para uma nova cidade, que recebeu seu nome, que significa “o horizonte do (deus) Aton”.

Tal qual as outras edições de Epopéia, “Brasília, coração do Brasil” é uma HQ de narrativa meio “dura” e condução enfadonha. Parece que estamos na aula, não no recreio. O valor histórico deste gibi, entretanto, é inquestionável.

Pererê de Brasília

Brasília tinha apenas seis meses de idade quando o número 1 da revista Pererê chegou às bancas. A primeira história da publicação, “Viagem para Marte”, mostra o saci criado por Ziraldo em uma simpática aventura de oito páginas, na qual o protagonista é abduzido por marcianos que, na versão do ilustrador e cartunista mineiro, são sacizinhos inofensivos, de diferentes cores, que adotam Pererê como seu mestre. Marte, na HQ, tem o visual futurista de Brasília, onde Pererê é recebido pela população em sua Esplanada dos Ministérios.

Pererê (detalhe)

Pererê (detalhe)

Por ocasião da exposição Pererê do Brasil, que ocupou as galerias Picolla I e II da Caixa Cultural Brasília, “Viagem para Marte”, entre outras HQs e passatempos do personagem e sua turma, foi republicada em uma edição especial oferecida aos visitantes. Luxo só!

Justice League in South America

Personalidades notórias visitaram Brasília enquanto a cidade ainda engatinhava, como Dwight Eisenhower, Che Guevara, Super-Homem, Mulher Maravilha e Átomo. Isso mesmo! Três integrantes da Liga da Justiça, em plena Era de Prata, vieram investigar a aparição de dois misteriosos gigantes de pedra em solo candango.

A trama da HQ em questão, publicada em 1962, na edição de número 15 da revista Justice League of America, é pra lá de DC Comics: oriundas de uma realidade paralela distante a apenas um minuto da nossa, as tais criaturas percebem que os dois universos estão cada vez mais próximos, a ponto de se chocarem em três localidades: Tóquio, Brasília e Central City. Como dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, os gigantes de pedra decidem eliminar essas três cidades da Terra, caso contrário, os dois universo colapsariam. Bom, se estamos hoje falando de 60 anos de Brasília, não preciso nem dizer que a Liga salvou o dia, né?

Justice League of America

Justice League of America

Na mesma Esplanada dos Ministérios visitada por Mulher Maravilha, Átomo e Super-Homem, em frente à Catedral, dois outros gigantes podem ser encontrados. Feita de bronze, medindo oito metros de altura, a escultura Os Dois Guerreiros, mais conhecida como Os Candangos, é uma obra de Bruno Giorgi – ele também um “gigante”, no caso, das artes plásticas. A escultura é uma homenagem aos operários que construíram a nova capital brasileira, os chamados candangos.

Visita diplomática

Produzida entre 1963 e 1967 pelo quadrinista americano Don Sherwood, a série Dan Flagg tinha como protagonista, em aventuras que rodavam o mundo, o marine americano que dá nome a essa tira diária. Munido de referências fotográficas e um enorme talento para o desenho, Sherwood impressionava, especialmente, em suas reproduções arquitetônicas, como pode ser conferido na tira de 1º de maio de 1964, com uma passagem por Brasília, na qual um militar brasileiro ciceroneia quatro astronautas russos, além de uma agente infiltrada disfarçada, pelo Palácio da Alvorada, Congresso e Brasilia Palace Hotel.

Dan Flagg

Dan Flagg

L’homme de Brasília

O cinema e as histórias em quadrinhos são contemporâneos e se retroalimentam desde sempre. Sendo assim, cabe aqui um parêntese para comentar um filme que talvez tenha sido o principal responsável, por muito tempo, pela criação de um imaginário no inconsciente internacional a respeito de Brasília. Pelo menos de uma Brasília vintage. Lançado nos cinemas em 1964, O homem do Rio é uma produção franco-italiana protagonizada por Jean Paul Belmondo, ator conhecido por, entre outras feitas, o papel principal em Acossado (1960), a emblemática estreia em longas-metragens de Jean-Luc Godard, e por emprestar seu rosto para o Tenente Blueberry, o caubói das BDs de Charlier e Giraud.

L’homme de Rio é uma aventura ao estilo dos filmes que parodiam a franquia 007, com ação, romance, comédia e situações absurdas. Rodado em Paris, Rio de Janeiro, Petrópolis, na Floresta Amazônica e em Brasília, o longa-metragem dirigido por Philippe de Broca tem uma sequência que se tornou famosa, na qual o personagem de Belmondo, o piloto Adrien Dufourquet, sai em fuga por Brasília, passando pela Esplanada dos Ministérios, pelo Palácio da Alvorada e pelo “Buraco do Tatu” na Rodoviária do Plano Piloto.

A cena, colorida, impressiona ao mostrar a amplitude da cidade, quase sem carros ou pessoas, em contraste com a arquitetura modernista e a poeira castigando o smoking branco de herói – que se livra de seus perseguidores de bicicleta, para depois pegar um avião, seguir para a Amazônia e chegar lá de paraquedas.

Delta Vega

Brasília também fez uma “ponta” no episódio “Onde nenhum homem jamais esteve”, de 1966, integrante da primeira temporada de Jornada nas Estrelas. Parte da equipe da Enterprise desce até uma colônia de mineração no planeta Delta Vega. O cenário, uma pintura realizada por Albert Whitlock, mostra, bem ao canto direito, onde vemos uma porta por onde os personagens passam, que o prédio em questão faz referências às colunas do Palácio do Planalto.

Star Trek - Delta Vega

Star Trek - Delta Vega

Alguns anos depois, em 1973, foi a vez da Catedral surgir transmodificada em sede da Federação Espacial, no episódio To rule the universe, um arco de história - com arte de John Stokes - que faz parte das tiras de Star Trek publicadas na época na Inglaterra.

Star Trek - To Rule the Universe

Star Trek - To Rule the Universe

Para o alto e além!

E quem foi que disse que Brasília nunca teve um super-herói brasileiro sobrevoando os seus céus? Ainda em sua infância, na década de 1960, a cidade teve não um, mas dois super-heróis. Ok, ok, seria forçar MUITO a barra dizer que Raio Negro e Fantastic eram heróis brasilienses, moradores de uma superquadra e que enfrentavam vilões na Praça dos Três Poderes ou no Parque da Cidade. Isso nunca aconteceu e sequer foi vislumbrado nas poucas aventuras desses dois personagens. Suas histórias, aliás, costumavam se passar em outros cenários. Entretanto, ambos tinham ligações com as forças armadas, o que significa que em algum momento bateram continência na capital. Especialmente Raio Negro, personagem criado por Gedeone Malagola e publicado a partir de 1966, cuja identidade secreta é Roberto Sales, tenente da Força Aérea Brasileira (FAB).

Raio Negro

Raio Negro

Lançado em 1967, Fantastic, a quem alguns se referem como “agente secreto bossa-nova” – curiosamente, quando a bossa já não era assim tão nova, a jovem guarda começava a desbotar e a Tropicália preparava para dar o bote – ofereceu sua “desinteressada” (sei!) ajuda aos militares para tentar desvendar intrigas internacionais. Criado por dois argentinos radicados no Brasil, Luis Meri (texto) e Osvaldo Talo (desenhos), Fantastic aparecia na capa de suas revistas em montagens cujo fundo eram fotos de Brasília.

Fantastic

Fantastic

Thunderbirds are go (to Brasília)

Mas se Raio Negro e Fantastic não dessem conta do recado, bastaria convocar os Thunderbirds. Sim, os inesquecíveis personagens da série de TV, interpretados por bonecos, livraram a capital brasileira de uma invasão monstruosa. Publicada em 1967, entre as edições 147 e 154 da revista britânica TV21, a história batizada Visitor from space acompanha dois integrantes da equipe de heróis em uma missão que passa por uma floresta tropical e segue depois para Brasília. Mas, não fosse pela falas de Scott e Virgil, jamais saberíamos que se trata da cidade, já que nada em cena remete a ela. Sobre isso, cabe-nos apenas dar um desconto, afinal, a soberba arte é cortesia do sensacional Frank Bellamy.

Thunderbirds

Thunderbirds

Quem também visitou Brasília no finalzinho dos anos 1960 foi a dupla Valerian e Laureline. A dupla de agentes do espaço-tempo criada por Pierre Christin (texto) e Jean-Claude Mézières (desenhos) desembarca na cidade ao final da aventura “Terra em chamas”, parte dois de “A cidade das águas movediças”.

Valerian e Laureline

Valerian e Laureline

Retrofuturismo

Influenciado por quadrinhos, séries e desenhos animados dos anos 1960, o ilustrador americano Steve Rude retrabalhou tudo isso para formatar o visual da série Nexus, criada em 1983 pelo roteirista Mike Barr. No arco “Justiça alienígena”, o único do personagem publicado no Brasil (pela Pixel, em 2006), além de uma edição única com sua origem (1999), Rude confirma mais uma vez seu olhar atento para boas referências visuais, apresentando uma Brasília ainda mais futurista

Nexus - Justiça Alienígena

Nexus - Justiça Alienígena

Cidade ilustrada

Mas, provavelmente, os autores de quadrinhos mais apaixonados pela capital brasileira são o ilustrador belga François Schuiten e o roteirista francês Benoît Peeters. Conhecidos pela série de álbuns As Cidades Obscuras, a dupla produz um trabalho altamente refinado, tanto em texto quanto em desenhos, cuja referência à arquitetura é mais do que uma constante, mas parte fundamental de suas obras.

Em 17 de outubro de 1997, Schuiten e Peeters participaram da 3ª Bienal Internacional de Quadrinhos, em Belo Horizonte. Um dia depois, estavam em Brasília, para conhecer a cidade. Da visita surgiu uma história curta, de três páginas, protagonizada pelo personagem Eugène Robick e publicada na última edição da revista mensal À Suivre, em dezembro de 1997.

Em entrevista ao jornal Libération, em 30 de setembro de 2016, sobre cidades e possibilidades para o futuro urbanístico, Peeters comentou que Brasília parece um sonho saído de uma história em quadrinhos: “Foi construída do zero, materializada a partir de um desenho. É um gesto utópico muito forte”.

As Cidades Obscuras

As Cidades Obscuras

A série de livros Cidades Ilustradas, da editora Casa 21, tinha como proposta convidar um desenhista para passar alguns dias em uma cidade brasileira e, posteriormente, produzir ilustrações sobre a experiência para a publicação em um livro. O responsável pela edição de Brasília, lançada em 2011, foi o gaúcho Edgar Vasques. O veterano entregou um livro pra lá de simpático, que passa pelos obrigatórios cartões-postais, mas também pela “Brasília real”, aquela do dia a dia, das pessoas que não têm nada a ver com o poder, como o bar Beirute, o Clube do Choro, e, algo muito caro aos brasilienses, seu céu e suas nuvens.

Cidades Ilustradas - Brasília

Cidades Ilustradas - Brasília

Nessa mesma linha de visitar Brasília e produzir algo a respeito, vale mencionar a obra coletiva Brasilia, ventura ventis, de 2005, com colaborações de Beb-Deum (Paris), Thierry Van Hasselt (Bruxelles), Roger Mello (Brasilia/Rio), Jochen Gerner (Nancy), Rodrigo Mafra (São Paulo/Brasília), Virginie Broquet (Nice) e Marcus Wagner (Rio de Janeiro) e a HQ digital Brasilia’s twins (2009), de Pascal Tessie.

A produção contemporânea de quadrinhos de autores de Brasília parece menos interessada em retratar a cidade, sua arquitetura, cotidiano e idiossincrasias. O que, claro, não é um problema – até porque, muito clichês foram produzidos nesse sentido. E, talvez, seja mais interessante, no atual momento, criações com apelo mais universal.

Uma exceção nesse sentido é a produção independente Aventuras brasilienses em busca da cidade oculta, de Frederico Flósculo, que, de maneira quase lisérgica, trabalha várias “mitologias” e diversas referências da cidade.

Mas quem melhor tem abordado Brasília em quadrinhos nos últimos tempos, com talento, graciosidade e humor, é o ilustrador Caio Gomez, em tirinhas produzidas (e republicadas à exaustão) no jornal Correio Braziliense. Um encadernado dessa produção seria muito bem-vindo.

Gomez

Gomez

Para fechar esse texto, deixo aqui o simpático registro do argentino Liniers quando de sua primeira passagem por Brasília.

Liniers - Brasília

Liniers - Brasília