TINTIM E OS PIRATAS CHINESES

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por Bruno Porto

Na feirinha de rua da Dongtai Road, em Xangai, é possível encontrar a preços módicos as histórias em quadrinhos As Aventuras de Tintim tal qual eram publicadas desde o final dos anos 1960, em edições pra lá de piratas. Cada álbum é dividido em dois livrinhos de 9 cm x 12 cm, impressos no preto e branco mais cinza possível em papel jornal da pior qualidade. Não raro, a ordem e as proporções dos quadrinhos são alteradas, e os desenhos foram em sua grande maioria decalcados com resultados variados. Isto é, variam do ruim ao péssimo, de deixar Carlos Zéfiro com vergonha.

Os livrinhos são vendidos embalados em saquinhos plásticos para não se desfazerem devido ao seu péssimo estado de conservação.

Os livrinhos são vendidos embalados em saquinhos plásticos para não se desfazerem devido ao seu péssimo estado de conservação.

Tintim é um dos personagens mais conhecidos dos século XX, tendo sido publicado em mais de cinquenta 50 idiomas e com mais de 200 milhões de exemplares vendidos mundialmente. Criado em 1929 pelo cartunista e designer gráfico belga Hergé, tem uma de suas seminais aventuras passadas justamente em Xangai, nos anos 1930: Le Lotus Bleu.

Nosso herói 丁丁 (pronuncia-se dīngdīng)

Nosso herói 丁丁 (pronuncia-se dīngdīng)

O Lótus Azul (ou O Loto Azul, título usado na sua primeira tradução no Brasil) é o quinto álbum em quadrinhos do personagem. Publicada semanalmente em preto-e-branco no periódico Le Petit Vingtième de 1934 a 1935, a HQ foi reunida em álbum no ano seguinte pela Casterman, e colorida em 1946. Foi a primeira das histórias do jovem repórter, cuja "coragem e inteligência são aquelas com que (as crianças) podem sonhar e ter algum dia”, que ganhou uma pesquisa de referências históricas e culturais mais completa, pelo que a série ficaria posteriormente conhecida. O herói voltaria mais uma vez à China em Tintim no Tibete, de 1958 (o álbum completo sairia em 1960).

Apesar de só ter sido publicado na China oficialmente a partir de 2001, os chineses conhecem e, de uma forma geral, amam Tintim. Já escutei de mais de uma pessoa que "ele foi um estrangeiro gentil com o povo chinês e ficou contra os japoneses". Isto faz parte do enredo d’O Lótus Azul, cuja mais recente edição brasileira é a publicada pela Quadrinhos na Cia em 2005.

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No excelente artigo Desventuras de Tintín en China - publicado em 12.12.2006 na edição on-line da revista espanhola Foreign Policy - Pierre Justo lista as diversas versões, traduções e formas de censura que as histórias sofreram quando publicadas no Império do Meio. Títulos como O caso Girassol e O caranguejo das tenazes de ouro se transformam em Uma arma muito perigosa e A história completa do grupo de contrabandistas Caranguejo Vermelho que comercializa drogas dentro das pinças dos caranguejos. Até aí, tudo bem, pois o processo de tradução de quadrinhos envolve adequar o conteúdo multimodal da melhor forma para quem irá recebê-lo. Mas, quando o discurso político entra em jogo, o caso fica um pouco diferente. Em uma edição de 1969 de Tintim no Tibete, traduzido como Uma bela história de amizade (posteriormente virou O misterioso homem das neves e, mais recentemente, Tintim no Tibete Chinês), lê-se na legenda do último quadro (no qual o Yeti observa os heróis retornarem à civilização): "Tintim salvou a seu amigo Tchang do Tíbete, mas os tibetanos vivem sob o jugo dos diabos comunistas, e é terrível!".

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Mudanças de todos os tipos no próprio O Lótus Azul (que vira Tintim na Velha Xangai) suavizam o tom rude de alguns diálogos e costumes chineses. Na versão que adquiri, por exemplo, foi cortado o quadro em que Tintim relata ao seu amigo Tchang como muitos estrangeiros acreditam que os chineses jogam seus bebês indesejados no rio. Aliás, em Dongtai Road, O Lótus Azul pirata sai mais caro que as outras HQs do personagem, justamente por se passar em Xangai, como me explicou a vendedora. Mesmo assim, ainda é muito barato.

A pirataria foi a saída durante muito tempo, quando a dificuldade de se introduzir legalmente personagens ocidentais (bem como quaisquer outras manifestações culturais) na China esbarra em questões políticas e de controle social. Um exemplo disso pode ser encontrado no livro Henfil na China antes da Coca-Cola (Record, 1981), quando o autor relata a emocionante conversa com um veterano do cartum chinês em que este rascunha em um pedaço de papel o último personagem estrangeiro de que se lembrava – Pafúncio, de George McManus – antes da tomada do poder pelos comunistas. Hoje, encontrar um Tintim na China é mais fácil e continua barato. Um álbum oficial, em chinês, de O Lótus Azul sai por cerca de R$ 12,00 lá. Mas a poderosa máquina de produção gráfica do país é a responsável por isso. Em qualquer livraria brasileira, a seção de livros infantis é praticamente toda impressa na China.

Piratintins: estatueta e escultura (em proporção 1:1) em Xangai e camisetas em Macau.

Piratintins: estatueta e escultura (em proporção 1:1) em Xangai e camisetas em Macau.

Isso não significa que Tintins piratas desapareceram da China. Muito pelo contrário. De excelente qualidade e design, os itens oficiais produzidos pela Moulinsart, companhia que cuida dos interesses da Fundação Hergé desde seu falecimento em 1983, são caros. Não é a à toa que a empresa fatura cerca de 16 milhões de euros por ano. Mesmo que em fevereiro de 2019 Xangai tenha ganho uma loja oficial do personagem - The Tintin Shop 丁丁历险记的世界 - os preços equivalem aos europeus. Assim, produtos como estatuetas e camisetas não oficiais continuam sendo facilmente encontrados nas pequenas lojas de souvenirs de Pequim, Xangai e demais destinos turísticos. A produção destes é artesanal ou em escala semi-industrial, com base em cópias dos moldes dos produtos oficiais que, afinal de conta, se encontram em fábricas chinesas.

Display do longa-metragem As aventuras de Tintim em um shopping center de Xangai.

Display do longa-metragem As aventuras de Tintim em um shopping center de Xangai.

A indústria da falsificação no país cria milhões de empregos na produção e comercialização de todo os tipos de bens, acessíveis ao bolso do povo chinês. Grosso modo, o governo finge que não está vendo pois tem a missão de tirar 300 milhões de pessoas – praticamente a população dos Estados Unidos – debaixo da linha da miséria e boa parte dos produtos culturais de origem estrangeira não seria consumida pela imensa maioria da população. Quando a adaptação cinematográfica de Steven Spielberg, As Aventuras de Tintin: O Segredo do Licorne, foi lançada na China em 2011, o filme chegou simultaneamente às telas de cinema e às prateleiras dos camelôs. Em Xangai, as HQs e demais produtos chineses não autorizados, como camisetas e DVDs com a coleção completa da elogiada série de animação franco-canadense (1991-1992, que foi exibida no país a partir de 2004) do personagem, gozam de prestígio não só entre os locais como, pelo vernacular imposto ao resultado (caracteres diferentes, erros de ortografia, qualidade superior de acabamento, aspectos às vezes não programados do design), entre colecionadores e apreciadores de quadrinhos do mundo inteiro.

Perceberam o sobe-e-desce dos títulos, estrelas, letras e da imagem nas lombadas?

Perceberam o sobe-e-desce dos títulos, estrelas, letras e da imagem nas lombadas?

Um dos itens mais curiosos da minha coleção é justamente uma caixa com todos os álbuns da série clássica - distribuídos por sete livros, além de um oitavo com textos do tintinófilo Michael Farr sobre os principais personagens - impressos em preto e branco no reduzido formato 17 cm x 23,5 cm. Está em inglês e é satisfatoriamente utilizável. Essa edição genérica me custou o equivalente a R$ 20,00 (em 2015), enquanto que uma versão oficial sairia pelo menos trinta vezes mais cara. Se o preço ridículo e as lombadas avacalhadamente desalinhadas não denunciassem a contravenção, uma breve avaliação do miolo revelaria, no início do oitavo volume, o nome do personagem principal impresso de forma invertida por um gráfico chinês pouco familiarizado com os caracteres latinos.

O autor em frente ao TinTin Bar / The Blue Lotus Hostel & Cafe na cidade de Yangshuo, no sul do China, em 2009.

O autor em frente ao TinTin Bar / The Blue Lotus Hostel & Cafe na cidade de Yangshuo, no sul do China, em 2009.

Este texto foi originalmente publicado no Portal Design Brasil em 17 de abril de 2007, e atualizado para esta publicação na Raio Laser. A versão original encontra-se no e-book Atribulações de um Designer Brasileiro (Porto+Martinez Books on the table, 2021), à venda na Amazon (link: https://www.amazon.com.br/gp/product/B08X4NBHYG). A obra reúne uma seleção de 50 textos nos quais o designer e pesquisador Bruno Porto analisa projetos, publicações e práticas do mercado, e discorre sobre estratégias de internacionalização do design brasileiro, dedicando especial atenção à China, onde viveu entre 2006-2012.