Rapidinhas Raio Laser #11: by Pedro Ribeiro

Rapidinhas Raio Laser #11: by Pedro Ribeiro

O nosso leitor e colaborador

Pedro Ribeiro

recebeu a missão de resenhar quatro gibis que recebemos por aqui e dar continuidade ao chamado "padrão Raio" de

resenhas rapidinhas

: avaliação honesta, não sem qualidade analítica, da nossa produção nacional (hoje com uma exceção estrangeira). Segue:

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Ayako: Osamu Tezuka para maiores

por Marcos Maciel de Almeida

Países com grandes tiragens de quadrinhos nativos costumam ter grandes patriarcas das HQs. Sergio Bonelli é a referência na Itália. Walt Disney e Will Eisner são os caras nos EUA. Brasil e Japão não são diferentes nesse quesito. Mauricio de Sousa e Osamu Tezuka são referências incontornáveis. Elevados – por muitos – à categoria de semi-deuses do gibi, ambos conseguiram deixar marcas indeléveis na história da nona arte em seus países. Criadores de verdadeiros impérios do entretenimento, Sousa e Tezuka parecem ter nascido com o toque de Midas. Ambos têm obra vasta e diversa. Mauricio conseguiu se aventurar além do entretenimento infanto-juvenil, criando histórias que passam por gêneros como o romance adolescente (Rollo e Pipa), filosofia (Horácio) e escapismo (Astronauta). Tezuka também não ficou para trás nesse aspecto, muito pelo contrário. Atacou em várias frentes, com temáticas do tipo aventura/fantasia (Astro Boy), contos de fadas (A Princesa e o Cavaleiro), semibiografia (Adolf) e suspense sobrenatural (Dororo), entre outras. Apesar disso, existem diferenças importantes entre os publishers brasileiro e japonês.  Por mais que a obra de Maurício de Sousa seja diversificada, ela é facilmente fagocitada pela extensão, profundidade e riqueza daquela produzida por seu homólogo nipônico. Como sói acontecer com os super-heróis americanos, as crias de Maurício vagam eternamente pelo universo da ficção, envelhecendo nada ou muito pouco, numa verdadeira história sem fim. No Japão, o papo é diferente e as trajetórias dos personagens costumam ter final, ainda que estejam no auge. E aí não tem choro nem vela. Acabou, está acabado, ainda que milhares de fãs insistam por ressureições e continuações. 

Tezuka também é partidário dessa filosofia e, por isso, investiu numa infinidade de temas e narrativas, que lhe consagraram um legado de fôlego. Além disso, conseguiu se manter como alvo de interesse por públicos de muitas faixas etárias, não apenas de crianças e adultos saudosos. Tezuka mostrou que, apesar do traço aparentemente delicado e infantil, a temática das histórias não precisava ser sempre pueril. Nem mesmo o linguajar e as situações mostrados deveriam ser sempre pasteurizados, afinal a vida não é feita apenas de momentos cor-de-rosa. Há ocasiões em que a barra fica pesada e somos forçados a reconhecer que tem muita gente escrota nesse mundo. O que nos leva ao calhamaço de 700 páginas (!)

Ayako, publicado no Brasil em fevereiro de 2018 pela Editora Veneta. 

Não é à toa que, para muitos, este trabalho seja considerado a obra prima do mestre mangaká. A epopeia da família Tenge no pós II Guerra Mundial toca em vários pontos sensíveis não apenas para o povo japonês, mas para toda a humanidade. O mais importante deles são as implicações de política interna e externa para o Japão derrotado. 

Já estamos acostumados a nem mesmo questionar a visão histórica que privilegia o ponto de vista dos vencedores, relegando a perspectiva dos vencidos a um segundo plano. Digo isso, porque não quero pintar um quadro no qual os japoneses apareçam somente como vítimas, mas o fato é que as narrativas que mostram as agruras do povo da terra do sol nascente são escassas. Exemplo: as bombas atômicas disparadas sobre Hiroshima e Nagasaki são tema praticamente inexplorado, especialmente em relação ao número de filmes e documentários dedicados à Guerra do Vietnã e outros eventos trágicos, como o holocausto do povo judeu. 

Como Ayako foi produzido em 1972-3, talvez nem mesmo Tezuka tenha tido as manhas de colocar o dedo nas feridas – ainda – abertas pelo ataque nuclear norte-americano de 1945. Mas isso não significa que ele tenha deixado de abordar outros assuntos espinhosos, que teimam em não ser mencionados, como o fato de que o Japão tenha virado uma espécie de “Estado Vassalo” dos EUA.

De forma discreta, mas incisiva, Tezuka dá diversas alfinetadas na maneira pela qual os americanos em particular e a comunidade internacional em geral trataram os japoneses vencidos. A crítica às medidas empurradas goela abaixo, como a reforma agrária, mostram que foi preciso paciência oriental para suportar a política do General MacArthur, militar norte-americano que derrotou e, em seguida, comandou o Japão. Outro fato que não passou foi despercebido foram os tribunais internacionais que julgaram os crimes cometidos pelo Japão durante o segundo conflito mundial. Para Tezuka, nessas cortes de exceção ocorreram flagrantes arbitrariedades, evidenciadas pelo fato de que os argumentos dos advogados de defesa foram solenemente ignorados. 

A história do gibi começa com o retorno ao Japão do prisioneiro de guerra Jiro Tenge, um dos filhos do patriarca Sakuemon, após o término das hostilidades. Refeito o vínculo familiar, Jiro rapidamente se dá conta que a volta para casa nem sempre é uma benção. Seu pai é um devasso, seu irmão não é flor que se cheire e ninguém consegue explicar a origem de Ayako, sua irmã mais nova. E o próprio Jiro traz consigo um segredo que mudará os rumos da trama. Desde as primeiras páginas o clima de mistério é quase tangível. Somos apresentados a uma gama de personagens e situações tão inusitados quanto imprevisíveis. Tudo isso pontuado por incríveis cenas de contemplação da natureza, que servem como momentos de respiro para a trama frenética, teimosa em descansar. 

Protótipo da família feliz. #sqn

Já virou clichê falar sobre protagonistas anti-heróis, mas Jiro é um caso à parte. Ele pega bem mais pesado que os costumeiros personagens desse tipo, chegando a um novo patamar de mau-caratismo, característica presente em boa parte do elenco desta HQ. Como consequência, o gibi é profícuo em situações repugnantes que atentam contra o bom gosto da tradicional família brasileira. Por isso, para mim, Ayako representa uma espécie de maioridade de Tezuka, que se permitiu publicar perversões e cenas indigestas que incluem violência contra a mulher, incesto e maus-tratos contra crianças.

Temas que, certamente, não serão vistos na próxima edição do Cebolinha.  A crueldade e a crueza de algumas partes do gibi remetem a uma linha de pensamento sobre a qual passei a refletir depois de perceber alguns traços comuns em obras de autores japoneses, tanto no cinema (Ringu), como na literatura (1Q84). Cheguei à conclusão que, na ficção nipônica, o sadismo do agressor é potencializado pela crença de que o sofrimento da vítima é determinado pelo destino, não podendo ser, portanto, evitado. Isso faz com que as cenas de tortura e violência sejam muito mais intensas que aquelas presentes nos similares ocidentais, chegando a níveis quase insuportáveis. E Ayako não foge à regra. É Made in Japan, com muito orgulho.  

Cena presente no mangá e que ainda acontece na vida real.

Ayako traz uma pungente reflexão sobre os impactos da ocupação norte-americana no Japão pós II Guerra, sem medo de expor feridas ainda não completamente cicatrizadas na sociedade japonesa contemporânea. E o clã Tenge, que nunca foi sinônimo de estabilidade, é rapidamente tragado pelo inexorável vendaval de mudança anunciado pelos novos tempos. Os membros da família, contagiados pelo clima de “salve-se quem puder” tomam decisões egoístas cujos resultados recairão sobre Ayako, a pessoa mais indefesa daquele núcleo. Em Ayako, Tezuka tece uma teia de relações conflituosas habitada por pessoas sedentas por poder e dinheiro, que passarão por cima de qualquer escrúpulo ou sentimento de compaixão para atingir seus objetivos sórdidos. E é esse ambiente de devassidão e amoralidade que servirá como o playground para a disseminação de perversões e fantasias latentes. Em Ayako, Tezuka mostrou que os quadrinhos também poderiam alcançar a maioridade e se mudar da casa dos pais, indo para bem longe do Bairro do Limoeiro.  

A edição nacional de Ayako é extremamente bem cuidada, com inúmeras notas de rodapé. Traz, pela primeira vez no Ocidente, os dois desfechos para a saga imaginados por Tezuka. Coisa fina. 

Silêncio dos inocentes

TABLOIDE: quadrinho clássico e potência na medida exata

por Ciro I. Marcondes

Em certo momento de Tabloide, a esbaforida e casca-grossa jornalista Samantha Castello, metida numa encrenca de vida ou morte, solta, no recordatório e em meio a um turbilhão de ações, um “sinto vontade de mijar”. Isso não interfere diretamente na trama. Apenas compõe o universo psíquico da personagem. Apenas ajuda a compreendermos a complexidade com que ela é elaborada em ínfimos detalhes. Afinal, em que quadrinho temos consciência da vontade de mijar de um personagem? E que personagem pensa “preciso mijar” numa situação de vida ou morte?

O autor deste romance gráfico – talvez fosse adequado chamar aqui de “álbum”, tamanho é o parentesco e a influência da HQ europeia – L. M. Melite, é desses que compõem uma história com este tipo de minúcia para que, não se enganem, a história seja a minúcia. Lendo estas páginas de Tabloide percebemos que Melite representa hoje, no quadrinho brasileiro, aquilo de que talvez nem sentíssemos falta. Porém, quando nos deparamos com isso é que vemos o tamanho do rombo: trata-se, é claro, da figura do roteirista de quadrinhos.

Roteirista mesmo, que planeja seus personagens até eles se tornarem efetivamente humanos. Que preenche os vácuos na história até você estar com a mente completamente tomada por uma névoa de ideias, ganchos, plots. Que não se abstém de usar recursos clássicos de quadrinhos (como recordatórios em primeira pessoa, coisa do quadrinho argentino, do quadrinho italiano), mesmo fazendo um quadrinho moderno. Que não foge da raia quando o assunto é a difícil arte de contar uma boa história com bons personagens.

Eu já notara este diferencial de Melite – o de já surgir como um quadrinista completo – ao ler Dupin, um romance gráfico de investigação policial psicologizada na mente infantil e no sobrenatural, um dos grandes quadrinhos brasileiros da década. Agora, com este novo lançamento, ele se mantém dentro das mesmas premissas e, ainda que a originalidade tenha sido largada para trás (e é isso que o quadrinista mais apegado ao clássico faz: abdica de suposta originalidade em prol do apuro meticuloso na constituição da história), consegue rearranjar os elementos de Dupin em um produto todo novo. Ninguém reclama, por exemplo, que John Ford tenha feito filmes meio parecidos, por exemplo, como “Paixão dos Fortes” e “Sangue de Heróis”.

Mudar apenas 10%

“Tabloide” é o nome do jornal editado por Samantha Castello. Um panfleto sensacionalista daqueles de espremer sangue. Desde o começo, quando a vemos, gorda e maciça, treinando boxe e descarregando uma atitude voluntariosa (e ao mesmo tempo ressentida) em editores e críticos, percebemos se tratar ela de uma personagem cheia de nuances, tiques, cacoetes de linguagem, traumas. Enfim, alguém calejado pelas circunstâncias duras da vida e que sobrevive aos trancos e barrancos às custas de vícios e pessimismo. Ela narra a história e ficamos conhecendo músicas que aprecia ou odeia, que chiclete bizarro consome, que sabor de pizza de vitrine de padaria come, que gosta de tirar onda de falar um latim tosco. Ficamos sabendo quando tem vontade de mijar.

A história de Melite em si é bastante interessante e engaja o leitor: uma travesti é encontrada morta, num vestido de noiva, nas margens de uma represa em São Paulo. O que se segue é o modelo de um bom romance noir: investigação, jornalistas e policiais “figura”, mergulho num tipo de submundo do crime, ação e crise existencial.

Ora, se, em Dupin, Melite se inspirou em Edgar Allan Poe para criar uma motivação macabra e excêntrica em seus personagens, aqui a base é ainda o policial, mas de matriz mais pulp ainda. Diria Raymond Chandler: pelo olho fotográfico em mapear a cidade de São Paulo (magnificamente bem inserida como cenário que faz toda diferença para que a história faça sentido); pela preocupação com que a trama não seja o único recurso da HQ, mas também o esquadrinhamento de hábitos e posturas dos personagens; e, obviamente, pela narração cínica, decadentista, grosseira como uma faca no estômago, de Samantha nos recordatórios.

Mudar de autor um policial de referência para outro pode parecer uma bobagem para a “genialidade” do quadrinista pós-moderno que “inventa” algo novo a cada produto. Para alguém de pretensão mais clássica como Melite, no entanto, mudar apenas 10% é o maior mérito que ele pode ter. Trabalhar apenas a nuance pode ser mais arte que repensar o todo a cada obra nova.

E não é apenas na literatura pulp que Tabloide se destaca. Como eu já disse, o álbum é uma história fechada (até melhor encerrada do que Dupin), pensado em uma estrutura de roteiro autônoma, sem muitas lacunas, que compõe várias camadas de entendimento dos personagens e das mazelas de São Paulo. Tangencialmente, Melite aborda sexualidade, trabalho escravo, ditadura, solidão, etc., mas a essência está no prazer de narrar, na beleza do texto. Parece aquela satisfação que sentimos quando lemos um bom fumetti bonelliano, ou um álbum bem resolvido do Tintim. Samantha, aliás, não deixa de parecer espécie de Tintim cuja vida deu errado, se fudeu e virou um investigador chauvinista, bruto e cínico, num Brasil que não nos dá orgulho de absolutamente nada. Que seja uma protagonista feminina com esse perfil, desbloqueando tanto clichês, é ainda mais um dos méritos desta HQ.

O tabloide, aliás, como se sabe, é a origem dos quadrinhos. Hearst e Pulitzer os publicaram nas primeiras décadas do século XX, produzindo uma competitividade saudável pela qualidade das tiras em meio a jornalismo de quinta e histeria de massa. Melite não está alheio a isso. Seu quadrinho é cheio de referências e easter eggs interessantes, que não são esfregados na cara do leitor e, fundamental, são incorporadas à organicidade da história. Uma das coisas que mais impressiona, aliás, é a capacidade de mesclar erudição (mesmo que seja de boteco) com o aspecto fuleiro de repartições e delegacias. O quadrinho fala inclusive de cheiros, gostos, uma certa fisiologia e sinestesia pobre que nos transporta diretamente para a cidade de São Paulo.

Em meio a essa erudição de cachaceiro, que faz emergir, de um Tietê de bosta, citações como “os olhos são a pior parte da morte” e “a verdade é um cão morto a céu aberto”, brilha a arte simples (inclusive de empaginação bastante regular, sem muita variação e pretensões formais), colorida por computador à maneira de um quadrinho dos anos 60, de Melite. Gestos e pontos-de-vista interessantes em meio à ação são privilegiados e, kirbyanamente, ele ilustra bons socos e porradas.

A porrada final, no entanto, é a desta São Paulo desgastada, desgraçada, mutilada e humilhada, que tem muito da inspiração no mundo fétido de Lourenço Mutarelli, mas se atualiza com esta proposta nova, porém com acertada deferência ao passado. Porrada e potência, duas palavras que substanciam bem estes quadrinhos de L.M. Melite. Agora vou sair de fininho porque estou com vontade de mijar. 

Verdadeira lição de anatomia: “Estudante de Medicina”, de Cynthia Bonacossa

por Ciro I. Marcondes

Sabem aquela clássica história de Alan Moore do Monstro do Pântano, “Lição de Anatomia”? Sim, aquela em que descobrimos que um sujeito chamado Alec Holland não era um homem que virou uma planta, e sim uma planta que se transformou num homem? Pois bem: eu gostaria de me utilizar desta tosca analogia com um quadrinho de super-herói para começar a falar deste absolutamente surpreendente quadrinho autoral brasileiro que fala basicamente sobre as constantes transformações e re-transformações de uma menina em uma pessoa adulta (além de ressacas, abcessos nojentos e sobre como abandonar uma carreira que supostamente todos desejam).

Na verdade nem tão surpreendente assim.

Eu sempre achei histericamente hilárias as histórias curtas de Cynthia Bonacossa, com sua predileção pelo desastre calculado pela neurose e referências legais (legais mesmo: não vazias, tira-onda e gratuitas) de filmes e músicas. Até aqui, seus quadrinhos tinham uma pegada mais indie, com narrativas de traço cartum “redondinho” cheias de inferências, digressões e interrupções nos recordatórios. Além de escatologias doidas, obsessões eróticas e uma maneira de autoironizar como poucos (ou ninguém) fazem no quadrinho brasileiro contemporâneo. 

Ela ainda foi responsável (j’accuse!) pela editoração das duas edições (hoje já “clássicas”) da revista de humor, zoeira da pesada e putaria Golden Shower. Mérito o suficiente? Nada comparado ao seu primeiro romance gráfico, que está sendo lançado pela Editora Veneta, Estudante de medicina. Aqui, a porra fica séria. Opa. Não me entendam mal. Continua histericamente hilário, mas é um upgrade (naquilo que uma HQ pode dizer) de levar lágrimas aos olhos.

Cynthia faz atualmente residência (uma segunda residência para ela, diga-se) para quadrinistas na cidade francesa de Angoulême. Acho que isso explica alguma coisa. O que parecia vir de Crumb, Peter Bagge, etc., ganha certos contornos mais franceses. Os desenhos ficam mais rabiscados e caóticos, expressões no olhar mais perturbadoras e francamente cômicas, detalhes rascunhados da cidade do Rio de Janeiro têm aquele ar incompleto que cabe bem tanto a um Henfil quanto a um Cabu ou Wolinski (povo politicamente incorreto da Charlie Hebdo. RIP). Além, é claro, de um quê de seu mestre Allan Sieber

Estudante de Medicina tem esse primeiro mérito: o de encaixar o traço, de acertar 100% na identidade visual e retratar genuinamente uma cidade. Afinal, esta HQ é também sobre o Rio de Janeiro, que sobe vivo em cada paisagenzinha em quadrinhos pequeninos, em cada gíria pé inchada, em cada letra de funk que escapa (Zona Sul se autozoando, mas foda-se né?).

O romance gráfico de Cynthia foi lançado na França com o título de “Carabin et Caipirinha” (o que ressalta bastante o seu teor etílico), mas creio que, tirando esse humor bufo, essa quadrinização descompromissada (só de mentirinha), e o preto-e-branco farelento que é tendência na HQ francesa autoral contemporânea (vide Trondheim), a coisa é muito, muito brasileira e fiquei curioso pra ver como certas situações carioquíssimas se resolvem em outras línguas. Sobretudo, porque se trata da vida universitária brasileira, esse festival de baixaria e pegadinhas cuja sem-noçãozice ultrapassa um “pouquinho” os limites do aceitável e da civilidade. Cursos tradicionais como medicina produzem experts nessa arte brasileira da fuleiragem sem fronteiras. 

Na HQ, Cynthia se autorrepresenta como uma jovem ingressante em um curso desses. Sem pregar ou necessariamente julgar (mas fazendo observações interessantes nas entrelinhas), ela vai contando a história de alguém (neste meio) que vai tensionando as dificuldades de apenas se dar mal (seja afetivamente, seja academicamente, seja socialmente, seja sexualmente) e ao mesmo tempo não conseguir (diga-se: não por falta de inteligência, mas sim por falta de controle da própria vida) levar a faculdade de medicina com o altíssimo nível de seriedade que a “cátedra” exige. Ela tinha talento para desenhar, enfim.

Daí

Estudante de Medicina tratar tão bem da própria vida de sua autora, com fortíssima carga de sarcasmo que se espraia por diálogos safados, referências nem tão eruditas, desenhos histriônicos e a absoluta capacidade de olhar para tudo e todos com a devida profundidade, sem criar estereótipos ou cair em arapucas reducionistas. Professores e colegas “comédia” são relembrados, assim como machos escrotos, eventos tipo calourada e churrascos bagaceira, tudo dentro de um contexto mais sério da própria atividade do médico. 

Cynthia relembra casos bizarros (como o de um cara que ficou com o p*u de um cachorro atracado no c*) e experiências tristes (em todos sentidos) examinando pacientes com sarnas, tumores, gosmas, além de cadáveres em formol, autópsia de ratos e pacientes psiquiátricos. Mais ainda: a natureza hardcore e ao mesmo tempo engraçada de aulas de medicina é lembrada em trechos de livros que elucidam algo sobre a vida, com incríveis desenhos de biologia celular. 

Porém, assim como a "Lição de Anatomia" de Moore não é sobre super-heróis e sim sobre a transmigração da consciência para diferentes tipos de configuração da matéria, a "Lição de Anatomia" de Cynthia Bonacossa não é exatamente sobre os perrengues de se fazer medicina no Rio de Janeiro nos anos 00 (até o Orkut tem sua aparição), e sim sobre os percalços de se transmutar de uma pessoa inocente, insegura e inconsequente em uma capaz de lidar com os terríveis fantasmas que vão consumindo a vida dos jovens adultos. O caso dos temas de “amor e sexo” é particularmente relevante para esta graphic. A dificuldade em se livrar de um namorado bonzinho, a culpa castradora e uma até natural compulsão pelo sexo são levados como transtornos terríveis, como se o ego da personagem/autora fossem totalmente espremido por um superego e um ID realmente insaciáveis.

Na medida exata em que traduz sua experiência em humor e drama, seria possível comparar Cynthia a Woody Allen (se ele não estivesse fazendo filmes tão ruins). Prefiro dizer que ela possui luz própria, com discurso inteligente e robusto, sem lamúrias vitimistas ou pena de si própria, inclusive com excelente capacidade de ilustrar devaneios, jogos mentais e abstrações. Lição primorosa pra qualquer macho vagabundo fazendo quadrinho ruim Brasil afora. E eu que achava que Mensur do Coutinho não teria desafiantes à altura em 2017. Um mês depois e: “não, péra”...