Solanin: crônica da juventude






















por Roberta Machado

Solanin é uma daquelas histórias que tocam nas lembranças emotivas do leitor sem apelar para o drama óbvio. Tentar resumir sua história só torna claro que a ação não é o forte dessa narrativa, que se apoia nas entrelinhas e torna o espectador parte ativa da trama. Cada decisão, reflexão ou conclusão tomada pelos personagens cria um profundo raciocínio impossível de não relacionar com fortes experiências pessoais.
Meiko é uma garota de 23 anos que mora com o namorado dos tempos de faculdade e se vê presa num trabalho enfadonho e frustrante. Ela já não depende dos pais, mas entrou no limbo em que o emprego temporário virou ocupação, e o futuro é uma incógnita que em nada lembra as aspirações da adolescência. O próprio companheiro da protagonista, Taneda, abriu mão do sonho de viver de música para ganhar o mínimo em uma posição de designer freelancer.


A menina decide então pedir demissão da empresa em que trabalha, mesmo sem contar com um plano B. A decisão de Meiko de largar o emprego estável sem nenhum plano imediato pode soar para o leitor uma atitude impensada e precipitada, mas é necessário lembrar que a história se passa no Japão, onde esse ato é ainda mais grave, praticamente um suicídio social. Mais importante do que ganhar dinheiro, a cultura asiática valoriza aqueles que contribuem com a sociedade. O país sofre hoje com toda uma geração de jovens que representam um fardo para a nação ao cederem à pressão psicológica e desistirem de participar da máquina industrial do arquipélago (eles são conhecidos como neets, not in education, employment, or training, ou como hikikomoris, os que nem mesmo têm coragem de deixar o apartamento).

A rotina de Meiko então é subtraída de sua vida, e em pouco tempo ela percebe que o fio de segurança de seu antigo emprego era o que a impedia de encarar a realidade: ela não sabe o que quer da vida, só tem certeza do que não quer. As tardes perdidas na rua ou em frente ao videogame também não ajudam, o tempo passa sem que uma solução se apresente. Logo fica óbvio que o futuro não vai se apresentar à protagonista em uma bandeja de prata, e as brigas com família e amigos são inevitáveis.

Os companheiros da jovem, aliás, constroem uma narrativa à parte, onde fica claro que todos sofrem com conflitos semelhantes. Quem herdou o negócio da família, quem continua na faculdade, quem recebeu uma promoção: todos vivem constantes questionamentos sobre seus objetivos e se perguntam constantemente sobre a própria felicidade. Sufocados pela mediocridade, eles procuram ressuscitar os sonhos do passado em busca daquela mesma sensação da juventude de que tudo é possível.

Mesmo quem não se identifica com a trama pode desfrutar de uma narrativa cotidiana bem contada, muito comum aos grandes títulos de graphic novels que lotam as prateleiras das livrarias nos últimos anos. Com a diferença de que o lugar comum da trama é justamente o que a torna especial. Em dois volumes de pouco mais de 200 páginas cada, Solanin fala numa linguagem despretensiosa, que conta uma história comum à maioria dos jovens. Sem grandes pretensões, alcança com sutileza a memória emotiva do leitor, causando uma experiência de reflexão valiosa.

Solanin

De Inio Asano. 216 páginas. 
Coleção L&PM Pocket. Duas edições. Preço: R$ 16.











A pia suja de Patrice Killoffer

Por Pedro Brandt

Patrice Killoffer não tem a consciência tranquila. Quando deixou Paris para viver em Montreal, a pia de seu apartamento ficou lotada de louça para lavar. “Em minha desculpa, posso dizer que se tratava de uma quantidade abissal, louça de um jeito que pede imersão total, trabalho de especialista, totalmente longe do meu alcance; eu não passo de um ocioso de baixo nível”, justifica. A sujeira era tanta que criou vida e o atacou. O resultado foi assombroso. Tais quais monstrinhos gremlins, o francês — autor e protagonista de sua história em quadrinhos — se multiplicou. Ao longo das páginas, o leitor entenderá o porquê do título 676 aparições de Killoffer.

Envolvido diretamente com o novo quadrinho francês, Killoffer era um autor pouco conhecido no Brasil quando foi convidado para participar da primeira edição da Rio Comicom (encontro internacional realizado em novembro com fãs e profissionais da área). Em seu país, o quadrinhista foi um dos fundadores da L’Association, editora responsável por títulos como Persépolis, de Marjane Satrapi, e Epilético, de David B., trabalhos bem-sucedidos e que injetaram novo ânimo no quadrinho francês. O convite para o evento brasileiro rendeu a publicação nacional de duas de suas obras: Quando tem que ser, pela editora Marca de Fantasia, e 676 aparições, pela Leya.

Persépolis e Epilético são obras biográficas nas quais os autores contam dramas da infância e da adolescência. 676 aparições (publicada originalmente em 2002) pode ou não ser considerada uma obra biográfica. Isso fica para o leitor decidir. Se, por um lado, o protagonista é o próprio Killoffer e parte do que é narrado realmente aconteceu com ele (o desenhista recebeu uma bolsa para viver um tempo em Montreal e escrever um livro sobre a experiência), por outro, não fica muito claro o que são episódios da vida do francês e o que são delírios. Os acontecimentos se confundem.

Mente febril

E no fim das contas, tanto faz o que é inspirado na realidade e o que é fruto da imaginação de Killoffer. O autor oferece ao leitor uma viagem às entranhas de uma mente febril, inquieta, incomodada. Quando o personagem adentra o apartamento, ele entra em sua cabeça, seu inconsciente. A sujeira na pia funciona como uma analogia para o que ele deixou para trás quando embarcou para o Canadá: o cotidiano, as paranoias e os problemas.

Com detalhados e personalíssimos desenhos em preto e branco, o artista explora o formato das páginas (de 25cm de largura por 37cm de comprimento) criando painéis inteiros, nos quais o olhar serpenteia pelas imagens. Quebrando a convenção de narrar em quadros, ele apresenta imagens simultâneas e passeios por diferentes ângulos ao mesmo tempo.

Essa construção permite múltiplas interpretações: seriam acontecimentos passados em momentos diferentes, mas no mesmo cenário? Seria a personalidade fragmentada de Killoffer a causadora de conflitos entre o id, o ego e o superego?

Uma coisa é certa: 676 aparições de Killoffer é uma HQ impressionante, de fôlego, visual e psicologicamente instigante. De longe, um dos melhores quadrinhos disponíveis nas livrarias.

Publicado originalmente no Correio Braziliense de 13/12/2011