HQ em um quadro: o despertar de Akira, por Katsuhiro Otomo



Takashi é executado por Neru, na frente de Akira (Katsuhiro Otomo, 1982): de acordo com Jost e Gaudreault (1989), no cinema, a temporalidade é dividida entre um tempo da história, diegético, e um tempo da narrativa, que determina a ordem, a duração e a frequência com que os eventos aparecem no decorrer desta mesma diegese (sendo a diegese o mundo proposto pela ficção - a "realidade" do filme). No caso da frequência com que o evento narrativo pode ocorrer no filme, existe um tipo interessante, repetido com maestria na edição número 16 da saga de Akira (na velha edição colorida da Globo), a obra máxima do mangá escrita por Katsuhiro Otomo nos anos 80. É chamada "narrativa repetitiva", com n narrativas para uma só história. O que isso quer dizer? Takashi morre, na diegese, apenas uma vez, mas sua morte nos é mostrada nada menos que seis vezes. Qual o propósito deste recurso narrativo?

O quadro acima mostra a brutal cena de assassinato de Takashi, uma das crianças-psíquicas, fundamentais para a série, pelo nefasto Neru. Até então a presença de Takashi vinha sendo crucial para o desenvolvimento da trama, que misteriosamente vai costurando os segredos envolvendo os paranormais, que determinam uma drástica e apocalíptica mudança no mundo do séc. 21. Mais do que isso, é o elo fundamental que une todas as crianças psíquicas, via paranormalidade, que deflaga o grande impacto na rede de afetos estabelecida entre eles. A morte de Takashi traz este impacto. Como um grande estremecimento, um terremoto na teia psíquica que liga o equilíbrio frágil entre as crianças, o evento súbito provoca ondas de tormento, volumes de pânico, tempestades de tortura! Nada seria como antes.

Akira, até então sonolento e entorpecido pelo recém-despertar da câmara criogênica, sente o pavor irreconciliável da perda do elo psíquico. Rompe-se um cordão umbilical entre os paranormais. Akira, efetivamente, desperta. O evento é acompanhado pela expressão doentia, de profunda desolação e desespero, das outras crianças psíquicas, Masaru e Kiyoko. O que se segue é uma edição quase inteiramente plasmada numa grande catástrofe visual, uma das mais impressionantes representações artísticas de uma hecatombe, lembrando bastante o clássico filme de Kaneto Shindo, Os filhos de hiroshima. Akira energiza-se numa redoma côncava de poder que vai crescendo quase até dominar a cidade inteira, levando populações ao extermínio, à tomada de Neo-Tóquio por tsunamis, à queda convalescente de prédios, tudo ilustrado em uma força dinâmica dificilmente equiparável em HQ, com grandes quadros duplos, em páginas que vão virando na velocidade do próprio impacto da hecatombe. Perdemos o fôlego, e uma história em quadrinhos se transforma numa epifania de quadros colossais, verdadeira arquitetura da destruição. No final da edição, vemos o inocente Akira brincando com uma pedra no chão, enquanto acompanhamos, silenciosamente (palavras para quê?), a chegada rasteira de ninguém menos que Tetsuo, ao mesmo tempo rival e amigo da criança psíquica: um encontro que inseminará o resto da saga. Ambos voam ao céu. Um clímax se estabelece.

A cena do ataque a Takashi é tão violenta, impactante e determinante para a continuidade da saga de Akira que ela precisa ser repetida seis vezes nesta mesma edição. Entre as páginas 15 e 19, acompanhamos Takashi morrer seguidamente, em vários ângulos e pontos-de-vista diferentes, criando um efeito dramático de dilatação temporal, como se aquele instante, aprisionado, precisasse ser detido para o resto da série, congelado como Akira, paralisado na arte de observação que é a história em quadrinhos. Portanto, seis narrativas da morte de Takashi e apenas uma história. É este o efeito da narrativa potente que é Akira, em que recursos elaborados de linguagem são conjugados em uma aventura absolutamente eletrizante, que não conseguimos parar de ler, capitulada por eventos tão drásticos quanto surpreendentes, de cinético dinamismo, mudando nossa visão a respeito de sequências visuais, seja no cinema ou nos quadrinhos. Abaixo, além da página original, do quadro acima, as outras 5 "mortes" de Takashi. (CIM)

 

Solanin: crônica da juventude






















por Roberta Machado

Solanin é uma daquelas histórias que tocam nas lembranças emotivas do leitor sem apelar para o drama óbvio. Tentar resumir sua história só torna claro que a ação não é o forte dessa narrativa, que se apoia nas entrelinhas e torna o espectador parte ativa da trama. Cada decisão, reflexão ou conclusão tomada pelos personagens cria um profundo raciocínio impossível de não relacionar com fortes experiências pessoais.
Meiko é uma garota de 23 anos que mora com o namorado dos tempos de faculdade e se vê presa num trabalho enfadonho e frustrante. Ela já não depende dos pais, mas entrou no limbo em que o emprego temporário virou ocupação, e o futuro é uma incógnita que em nada lembra as aspirações da adolescência. O próprio companheiro da protagonista, Taneda, abriu mão do sonho de viver de música para ganhar o mínimo em uma posição de designer freelancer.


A menina decide então pedir demissão da empresa em que trabalha, mesmo sem contar com um plano B. A decisão de Meiko de largar o emprego estável sem nenhum plano imediato pode soar para o leitor uma atitude impensada e precipitada, mas é necessário lembrar que a história se passa no Japão, onde esse ato é ainda mais grave, praticamente um suicídio social. Mais importante do que ganhar dinheiro, a cultura asiática valoriza aqueles que contribuem com a sociedade. O país sofre hoje com toda uma geração de jovens que representam um fardo para a nação ao cederem à pressão psicológica e desistirem de participar da máquina industrial do arquipélago (eles são conhecidos como neets, not in education, employment, or training, ou como hikikomoris, os que nem mesmo têm coragem de deixar o apartamento).

A rotina de Meiko então é subtraída de sua vida, e em pouco tempo ela percebe que o fio de segurança de seu antigo emprego era o que a impedia de encarar a realidade: ela não sabe o que quer da vida, só tem certeza do que não quer. As tardes perdidas na rua ou em frente ao videogame também não ajudam, o tempo passa sem que uma solução se apresente. Logo fica óbvio que o futuro não vai se apresentar à protagonista em uma bandeja de prata, e as brigas com família e amigos são inevitáveis.

Os companheiros da jovem, aliás, constroem uma narrativa à parte, onde fica claro que todos sofrem com conflitos semelhantes. Quem herdou o negócio da família, quem continua na faculdade, quem recebeu uma promoção: todos vivem constantes questionamentos sobre seus objetivos e se perguntam constantemente sobre a própria felicidade. Sufocados pela mediocridade, eles procuram ressuscitar os sonhos do passado em busca daquela mesma sensação da juventude de que tudo é possível.

Mesmo quem não se identifica com a trama pode desfrutar de uma narrativa cotidiana bem contada, muito comum aos grandes títulos de graphic novels que lotam as prateleiras das livrarias nos últimos anos. Com a diferença de que o lugar comum da trama é justamente o que a torna especial. Em dois volumes de pouco mais de 200 páginas cada, Solanin fala numa linguagem despretensiosa, que conta uma história comum à maioria dos jovens. Sem grandes pretensões, alcança com sutileza a memória emotiva do leitor, causando uma experiência de reflexão valiosa.

Solanin

De Inio Asano. 216 páginas. 
Coleção L&PM Pocket. Duas edições. Preço: R$ 16.











Street Fighter Mirim: meu primeiro mangá

Street Fighter Mirim: meu primeiro mangá

Quer dizer que, depois da “polêmica” do texto anterior, você voltou à Raio Laser cheio de esperança de ler outra iluminada crítica do Ciro Marcondes?! Pois você se deu mal! As linhas a seguir falam de lembranças afetivas, de um mangá semi-pirata e de videogame. Se você também leu esse gibi lá nos idos de 1993, deixe seu depoimento na caixa de comentários.

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HQ em um quadro: a indizível morte de Assad, por Ozamu Tezuka





















Sidarta presencia a morte violenta do asceta Assad, que entrega o corpo para ser devorado pelos lobos (Ozamu Tezuka, 1972): a série Buda, publicada por Ozamu Tezuka ao longo dos anos 1970, é tão magnanimamente constituída em todas as suas estruturas de quadrinhos que não valeria a pena escrever um texto longo sobre ela. Caberia um sobre cada um dos 14 insuperáveis volumes. Ou seja, um livro (hmm... pensar a respeito). Portanto, para não deixar em branco este que é um dos meus quadrinhos favoritos e certamente um dos melhores de todos os tempos (seria uma espécie de Em busca do tempo perdido das HQs), resolvi comentar um único momento, dentre literalmente dezenas e dezenas de ações sublimes na história, para prestar tributo. A título de curiosidade, Buda é a obra mais ambiciosa deste gênio das HQs, e aquela em que o deus do mangá mais se dedicou de corpo e alma, elaborando todos seus elementos estilísticos (humor, drama, ação, personagens-atores, metalinguagem, narrativas cruzadas, etc.) num profundo grau de resolução filosófica e existencial, sem jamais perder a pegada de aventura e a leveza de seu humor. Além disso, é um dos momentos em que seu grafismo espacial chega à máxima exponencialidade, com páginas inteiras de paisagens impressionistas e percepções narrativas espalhadas num único quadro, em nada deixando a dever a um Patinir ou a um Debret.

Estes três quadros estão no sétimo volume da saga, quando Sidarta inicia sua jornada espiritual ao buscar um caminho tortuoso de ascese hindu na floresta de Uruvella, onde homens passam os dias sendo comidos por formigas, queimados pelo sol e furados por pregos, além de outros tipos de autoflagelo. Após questionar estes pricípios e ser rejeitado pelos ascetas, Sidarta vê-se só em sua jornada, acompanhado apenas pelo pequeno Assad, um monge melequento que, em primeira instância, não passa de um estorvo inútil e que, depois de passar por uma transcendental experiência de quase-morte, recebe o dom de previsão exata do futuro. Desde o princípio, Assad prevê o exato dia de sua própria morte, seis anos no futuro, devorado por bestas selvagens. A brutalidade da previsão e a serenidade do pequeno monge impressionam o jovem príncipe, que faz tudo para protegê-lo. A preocupação do leitor acompanha a de Sidarta, já que Assad é o tipo de personagem que angaria simpatia progressivamente e, como suas previsões nunca falham, a cada volume alimenta-se a expectativa sobre sua morte vaticinada.

A beleza da história desse personagem se equipara à força que com ela impressiona o futuro Buda. Cada um dos reis, soldados ou camponeses que vão se consultar com Assad recebem de volta uma resposta plácida, técnica e frustrante: seus futuros nunca serão o que esperam, e geralmente resultam em mágoa, frustração ou insuficiência, que precisam ser comunicados com ascetismo pelo pequeno monge. Admira-nos, portanto, o olhar incompassivo e resignado com que Assad realiza sua leitura do mundo, anunciando a importância do desapego budista em níveis absolutamente extremos. Na véspera de sua própria morte, Assad comporta-se de maneira idêntica aos outros dias de sua vida, consciente da inutilidade de cultivar paixões contra aquilo que está além de sua capacidade de resolução. Sidarta amarra-o numa árvore para impedir que as bestas selvagens o ataquem, mas um castor, na calada da noite, rói as cordas e Assad vai parar perto de uma ninhada faminta de lobos, que chora, sem alimento. Resolutamente, sem paixões ou afetos, Assad oferece seu próprio corpo para os pais dos lobos, que o dilaceram diante dos olhos de Sidarta que, atrasado, nada pode fazer. O desprendimento total em relação a qualquer tipo de posse, apego ou adesão acha um apogeu neste generoso ato de martírio ("não me pertence nem minha própria vida") onde Assad entende, como um dever inquestionável, que a vida daqueles lobos necessita mais dele do que ele próprio. Foi este o verdadeiro prego cravado no coração daquele que se tornará o Buda. (CIM)

Este post é dedicado à KK, que dividiu comigo, por um ano todo, a entusiasmente experiência de ler a série completa do Buda.













História de um sobrevivente






















por Pedro Brandt

Quando Gen — Pés descalços foi publicado no Brasil pela primeira vez, em 1999, o boom dos quadrinhos japoneses ainda não tinha chagado às bancas do país. Passados 12 anos, a obra de Keiji Nakazawa continua como um dos melhores mangás já lançados por aqui. Sucesso no Japão, onde foi transformado em desenho animado, três filmes e série de tevê, a obra criada por Nakazawa é um clássico que continua a encantar leitores. Os quatro volumes nacionais da série estão fora de catálogo há algum tempo. Mas o primeiro deles acaba de ser republicado pela Conrad Editora, com nova capa e, desta vez, no sentido oriental de leitura.

Lançado em capítulos entre 1972 e 1973, na revista Shonen Jump (cujo público alvo são adolescentes do sexo masculino), Gen é inspirada na biografia do autor. Natural de Hiroshima, Nakazawa (hoje com 72 anos) é sobrevivente do ataque americano que jogou a bomba atômica sobre a cidade. Neste primeiro volume em especial, boa parte da trama se passa antes do fatídico 6 de agosto de 1945 (dia do bombardeio).

Gen é o quarto dos seis filhos de uma família humilde, os Nakaoka. Seu pai é contra a Segunda Guerra Mundial por acreditar que o conflito não levará a nada e que os mais pobres são os que sofrem com ele. Além do perigo iminente dos ataques aéreos, a população vive sob racionamento de comida. Para piorar, o Sr. Nakaoka é vítima de preconceito por se opor à guerra. É tachado de antinacionalista por quase todos que o cercam. Isso faz com que até uma tigela de arroz lhe seja negada. Os meninos são constantemente apedrejados na rua. O filho mais velho sofre humilhações na fábrica onde trabalha. E a filha, no colégio. Tudo isso é fruto do sentimento incutido pelo império japonês na nação com uma maciça propaganda militarista.

Nasce um herói

Diante de todas as dificuldades, Gen é uma criança feliz. O pai molda seu caráter para se tornar um homem honesto, justo, que não se dobra diante das intempéries. Não à toa, o subtítulo do volume um é O nascimento de Gen/ O trigo verde, ambos fazendo alusão à formação do protagonista como herói. “O trigo pisoteado produz raízes fortes, que se encravam na terra e permitem que ele cresça alto e resistente, capaz de suportar geadas, vento, neve…” é a primeira fala da HQ.

Mais do que os grandes dramas e as pequenas alegrias de Gen e sua família, o mangá também apresenta uma série de críticas que não perderam a validade. A maior delas é a respeito do combate bélico. Uma mensagem humanista e pacifista permeia a história. Além disso, Keiji Nakazawa não deixa de comentar a maneira cega como os japoneses abraçaram o ideário do governo do país naquela época, que colocava o imperador como uma entidade divina a ser obedecida e venerada a todo custo — com o sacrifício da vida se fosse necessário. Isso causou nas pessoas um sentimento que misturava impotência diante da guerra com um arreigado preconceito contra quem não compactuasse com as imposições.


Para dar uma amenizada em assuntos tão pesados, Nakazawa insere elementos cômicos que dão alguma leveza à narrativa. Um bom exemplo é o pequeno Shinji, o levado irmão mais novo de Gen. Ainda que tenha sido publicado numa revista voltada para o público jovem, Gen — Pés descalços é uma história em quadrinhos forte, que pode chocar muitos leitores. As cenas de pessoas derretendo sob efeito da bomba atômica são violentas. Até porque os desenhos do autor têm uma certa fofura que torna as cenas ainda mais impactantes. O primeiro volume da série termina justamente no 6 de agosto de 1945. Gen, que achava que levava uma vida dura, mal sabe o que lhe espera a partir do dia seguinte.



GEN - PÉS DESCALÇOS
De Keiji Nakazawa. 280 páginas. Conrad Editora. R$ 24,90.

Lobo solitário

por Ciro Inácio Marcondes  

É comum que se considere Spirit, publicação dos anos 40 e 50 de Will Eisner (especialmente a fase do pós-guerra) como um modelo de transvisualização do mapeamento visual e espacial e dos raccords propriamente cinematográficos para a linguagem dos quadrinhos. Não há como negar que Spirit, mais antigo e mais evidentemente vinculado a uma cultura pulp do que o gekigá Lobo Solitário, de Kojima e Koike, abre passagem para uma abordagem propriamente moderna nos quadrinhos. Porém, uma leitura cada vez mais progressiva da saga do ronin Itto Ogami e seu “filhote” Daigoro provocam uma impressão muito forte de espanto e paralisia; descoberta e incredulidade; regozijo e até mesmo horror diante de obra tão naturalmente requintada.

Lobo Solitário é uma longa série desenvolvida ao longo dos anos 70, e são muitos os fatores que a tornam objeto canônico indiscutível para a HQ mundial. Se Spirit investia em uma narrativa detalhista centrada na obliquidade da estilística noir, contrapondo planos tortos com hiper-closes e transformando os painéis das páginas em microlentes maleáveis de retardamento/aceleração do tempo e investigação do espaço, os roteiros de Koike, de maneira igualmente brilhante, partem para uma detalhadíssima segmentação do espaço em uma ordem não-narrativa, projetando-se para uma aclimatação de timing perfeito, traduzindo o tom de cada cena através do tamanho e investimento nos painéis. Isso nos deixa conscientes do sentimento do personagem, da movimentação dos ambientes, da temperatura em que estão situados, sem precisar o tempo, mas sem nos confundir, transformando o espaço da HQ em uma profusão de sentidos.

Esta abordagem, que se aproxima do cinema minimalista de Yasujiro Ozu, produz a indescritível sensação de conhecermos os sentimentos dos personagens sem que eles jamais tenham de verbalizar a respeito disso. Não é preciso dizer que este método sofisticado de representação tem implicações muito mais profundas do que a rasa técnica de simplesmente botar o personagem para dizer “eu te amo”, “me sinto mal”, “me sinto triste”, etc. Koike acaba produzindo, portanto, uma obra monumental de ação, mas de dimensão profundamente íntima. Duas histórias situadas no volume 7 lançado pela editora Panini são cabais para compreendermos este efeito simples e intenso de projeção/identificação.

Criança sem infância


Como Spirit, Lobo Solitário tem o (não pequeno) mérito de problematizar fortemente os personagens coadjuvantes, tornando seus dramas, inúmeras vezes, mais interessantes do que os dos protagonistas. A trama principal, como um leitmotiv que gosta de se ocultar e submergir sem que nos apercebamos, circunda uma história de vingança lentamente desenvolvida nos mais de 30 volumes da série. Entretanto, como na maioria das parábolas zen, é elaboração do caminho que produz a significação da obra. Itto Ogami em muitos momentos serve apenas como testemunho para o desenrolar dos mais diversos dramas humanos, e sua humanidade por vezes heróica pode ceder para a nobreza de outros que perecem antes/diante ou nas mãos dele. As histórias que voltam a perspectiva narrativa para o filho Daigoro potencializam em muito esta relação.

Neste volume 7 temos uma primeira história (“O caso do assassino”) em que Ogami está fora para uma missão e Daigoro, uma criança de 4 anos, está solto em uma pequena cidade que vive de extração madeireira. O aprendizado de Daigoro, conforme conferimos com admiração e espanto durante toda a série, é um lento caminho de resignado regime de autocontrole, uma ascese. O garoto precisa encontrar a maturidade no auge de sua incompreensão infantil, levado a decodificar um mundo hostil logo no alvorecer de sua vida. Em seu breve caminho, Daigoro testemunha massacres, aproxima-se da morte e chega a cometer assassinatos. Nesta história, presenciamos a criança num treinamento em perigosas toras de madeira flutuantes, contrastando com cenas de sua profunda solidão, expressada com poder sublime pelo lápis riscado e impressionista de Goseki Kojima. Daigoro fala muito pouco, e sua imagem solitária, sem amigos ou interlocutores, torna-se código na profunda relação do personagem com a própria condição, ao mesmo tempo intuitivamente sábia e naïve.

Tudo isso converte-se nas espantosas decisões morais da criança, que parece sempre nostálgica, porém ascética, quanto à sua condição de criança sem infância. Assim, sem temor, mas consciente de sua frágil existência, Daigoro testemunha o assassinato brutal de uma jovem nobre, revelando a verdade somente após intuitiva e segura ponderação. Esta relação, porém, intensifica-se na história “Código penal, artigo 79”, em que Daigoro, novamente só e aguardando o pai retornar de uma missão, acaba por acidente sendo acusado de furto. Neste caso, a ascese aproxima-se de uma forma animalesca e brutal, tipo de frieza aracnídea, derivada do contato com a absoluta rigidez disciplinar e moral no comportamento do pai. Presenciamos, em primeira instância, a tristeza profunda do menino para o qual o inofensivo universo da feira representa uma barreira intransponível. Kojima inteligentemente alterna letreiros, diálogos e as mais diversas disposições entre os quadros para trazer um Daigoro ao mesmo tempo disciplinado e melancólico. Porém, vítima da armação de uma simpática ladra, uma carteira roubada cai-lhe em mãos, e ele promete cumprir a missão. A partir daí, impressiona a resignação com que ele insiste em não denunciar a ladra e falhar em sua missão. “Era isso que a criança havia aprendido vendo seu pai trabalhar... mesmo sem saber diferenciar o bem do mal... Quando alguém lhe solicita um serviço, o verdadeiro matador cumpre sua missão até o fim...”.

Choca-nos observar repetidamente, exaustivamente, o semblante da criança ensimesmada, profundamente melancólica e resignada, negando-se insistentemente a delatar a ladra, mesmo após ela mesma declarar-se culpada. Vemos a criança ser humilhada e açoitada em praça pública pelas autoridades até que o espanto dos próprios algozes provoca a necessidade urgente de libertar o garoto e livrar-se daquele espírito antípoda e assustador justamente porque tão profundamente enraizado em suas solitárias convicções. Apenas entendemos esta ascese de Daigoro porque Kojima e Koike não poupam páginas em desdobrar a linguagem dos quadrinhos para nos revelar, quase sem diálogos, uma estranha essência humana que captamos pela ordem narrativa sensitiva das páginas de Lobo Solitário. Se Will Eisner usa a HQ como dínamo de múltiplas narrativas sobre a cidade, inaugurando um olhar complexo, a série japonesa fragmenta a perspectiva não tanto no sentido de aprimorar o ato de contar histórias, mas sim de olhar tanto e sob tantas medidas para um personagem, que ele será obrigado a olhar de volta para você. Assim, num passe mágica e encanto, o estado de contemplação da história se torna o nosso próprio,e os quadrinhos se tornam um tipo de mantra.