Eu Não Preciso de Mais Nada: existencialismo de videogame ou a crisálida de Gabriel Dantas

Banner Crisalida.jpg

por Ciro I. Marcondes

“Meu primeiro contato com a morte foi no colégio”, diz o recordatório do requadro de um certo zine “Viagens Rumo ao Esquecimento”, que Gabriel Dantas publicou ainda em 2017, quando tinha (possivelmente) 17 ou 18 anos. Nesta história, seu personagem se insere num ambiente juvenil-escolar (como tantas e tantas vezes vai repetir em seu trabalho futuro, especialmente em seu Instagram @bifedeunicornio) para recordar o falecimento, no meio do bimestre, de um professor querido, algo que talvez reverbere na memória de muita gente que vá abrir esse volume impresso Eu Não Preciso de Mais Nada, em que a Ugra Press coleta aquilo que o Gabriel produziu entre 2017 e 2019.

“Meu primeiro contato com a morte foi no colégio”: o despertar.

“Meu primeiro contato com a morte foi no colégio”: o despertar.

Esse primeiro zine era bem rudimentar e primário (lembra um exercício) e eu já estava achando que a editora havia investido num material inferior ao publicado na internet quando essa história específica do professor derreteu minha retidão de crítico. Talvez isso tenha a ver com o fato de eu ser também professor, mas acho que na verdade o que ocorreu ali foi o ato de realizar uma leitura do nascedouro da dupla orientação que Gabriel Dantas iria levar para o resto dos seus quadrinhos: um conflito (explorado de maneira tresloucada e hilária) entre um jeito bobo de ser, estilo adolescente videogueimeiro, e uma dor existencial lancinante, irresistível para qualquer um que vá ler seu material. E estes dois aspectos ficam vazando um para o outro até que você não saiba exatamente se está rindo ou chorando. Uma forma meio “palhaço triste” de crescer e entender o mundo ao seu redor.

capa 2.jpg

A questão é que, na leitura de cada zine publicado sequencialmente (geralmente em feiras de quadrinhos na cidade de Natal, de onde vem o autor), vai saltando aos olhos a evolução a galope e a dominação instintiva e instantânea de um estilo e temas próprios, que vão se tornando mais preciosistas e engraçados nas histórias seguintes. Eu Não Preciso de Mais Nada funciona como uma crisálida – tema aliás que será abordado na última e mais madura história – que irrompe assim te atropelando. Na primeira delas, estamos lendo uma tentativa tímida de ser engraçadinho e abobalhado, com uma pitada desajeitada de melancolia (coisa de quem cresceu vendo Hora de Aventura repetidas vezes). Porém, quando chegamos na última, somos devastados pela densidade dramática de um mundo de fantasia que emerge completo e decidido, isso sem perder o fulgor adolescente.

dantas_02.jpg

Vale comentar cada episódio particularmente. O segundo zine, “O Garoto que Namorava Estrelas Solitárias”, é ainda pueril (melhor dizendo, bobo e mongol mesmo), mas já traceja a maneira como Gabriel Dantas vai estruturar muitas de suas histórias: um estimulante deambular non-sense do nada ao lugar-algum, misturando referências de sua vida cotidiana com coisas bestas de cultura pop (tipo Dragon Ball), viagens espaciais, namoricos, tudo numa candura que lembra um primeiro Felipe Portugal.

No terceiro, “Abandonado por Elena”, a coisa já cresce grandão, como se ali ele já soubesse o que faria até hoje (quando tem, acho, uns 22 ou 23 anos): pessoas antropomorfizadas em gatos, gatas e outros animais, dilemas adolescentes (bem menos inocentes do que os velhos imaginam), festinhas, cervejinhas, becks, um clima praiano maneiro, humor desbocado entre o millennial e a geração z. Tá bom assim? Parece meio tolo, mas a gente vai se apaixonando. E depois não consegue largar, e sofre junto com todos os lovely losers retratados na intensidade máxima de suas neuroses.

“Abandonado por Elena”: dramas antropomórficos e grids elaborados.

“Abandonado por Elena”: dramas antropomórficos e grids elaborados.

“Cactos Para o Jantar”, a próxima história, segue a linha da anterior (festinhas, paqueras, referências cult-trash), mas com mais envergadura: temas mais sérios, arrisca-se na metalinguagem, e vai sofisticando seu vocabulário visual. Isto é: linhas espessas com pontilhismo e preenchimentos rudimentares por toda parte. Parece naïve (e é), parece maravilhoso e agradável de se ver (e é), e ele mantém esse estilo até hoje, só que colorido. Ao mesmo tempo, sua abordagem da página consiste muitas vezes em dividi-la de maneira infinitesimal (4x4, 6x6, e por aí vai), com muito diálogo, verborragia sem qualquer pudor, e falas tão despeitadas e afiadas quanto a garras dos monstros interdimensionais que seus tímidos protagonistas precisam porventura enfrentar.

“Cactos para o jantar”: ilustrações mais rebuscadas, pontilhismo e paisagens potiguares.

“Cactos para o jantar”: ilustrações mais rebuscadas, pontilhismo e paisagens potiguares.

Dantas se defronta com a escuridão da vida.

Dantas se defronta com a escuridão da vida.

“Não Pedi Para Estar Aqui” fala, simultaneamente, da amizade esperta entre duas garotas (vale assinalar a extraordinária habilidade que Gabriel Dantas tem em escrever personagens femininas que te peguem desprevenido) e de uma invasão de seres tipo lovecraftianos. Engraçado pra caralho, mas não só isso. Entre uma gag sarcástica e outra, um vazio que engloba os dilemas da vida, de jovens e de velhos. O que nos leva a “Talvez Fique Tudo Bem”, em que ele meio que apresenta tema semelhante ao que aparecerá, depois, no Ugrito Uma Última Chance Para o Mundo, sobre uma menina trans que divide seu cotidiano entre as tolices da adolescência e o enfrentamento de ameaças alienígenas. Mesma linha, mesma qualidade.

“Não pedi para estar aqui”: doses de amizade, doses de “horror cósmico”.

“Não pedi para estar aqui”: doses de amizade, doses de “horror cósmico”.

Acho que o que mais impressiona nestes quadrinhos é este jogo de ocultamento (tipo como se fosse possível atravessar o apocalipse jogando Ocarina of Time), em que uma hora nos comunicamos exclusivamente por meio de sarcasmo e referências banais-porém-afetivas, dando uma impressão de que tudo está sempre ok, e em outra precisamos de fato olhar para a escuridão do mundo. Gabriel Dantas transita, nesse jogo, de um quadro a outro, de um personagem a outro, de uma história a outra. O que transparece é a necessidade de se comunicar o imperativo do amadurecimento na medida em que se publiciza sua vida, em que há a chance de transformá-la em arte.

me perdoe por te decepcionar pela décima vez.jpg

Daí o fantástico êxito da última história, “Me Perdoe Por Te Decepcionar Pela Décima Vez”, em sublimar os modelos anteriores (que são, em si mesmos, muito bons também) e arriscar uma fábula cosmogônica cheia de reentrâncias e potências míticas, espécie de dolorosa metamorfose da alma, que eu nunca vi ele fazer nem antes e nem depois. Aqui ele arrisca uma variedade maior de estilos gráficos (páginas em grid 3x3, pra respirar e dar mais brilho aos desenhos), com recordatórios em primeira pessoa que remetem ao Gênesis, ao gesto demiúrgico, ao mesmo tempo em que salpica umas sacanagens nas falas dos personagens, tipo um Neil Gaiman nascido em 1999.

Essa história, inteiramente metafórica, mas em que sentimos o rasgo de cada asa quebrada, de cada sonho demolido, de cada aceitação tácita de que as coisas não são exatamente como as desejamos, ou como possam parecer, é uma pérola maturada neste caminho-crisálida percorrido de maneira tão veloz e urgente por Gabriel Dantas no decorrer das páginas deste livro, colhidas nos últimos anos. Resta um melancólico sentimento de que as gerações passam, e há certamente muitas coisas que mudam, mas o imperativo do amadurecimento é uma constante. Independente da época, sendo sua referência literatura romântica do século XIX ou videogames, é preciso crescer, é preciso compreender o mundo ao redor, na chave que for. E Eu Não Preciso de Mais Nada é uma linda obra de formação.

“Me Perdoe Por Te Decepcionar Pela Décima Vez”: crisálida.

“Me Perdoe Por Te Decepcionar Pela Décima Vez”: crisálida.