Quadrinhos e Judaísmo se encontram em Superheroes Never Die
/por Bruno Porto
A localização e o subtítulo da exposição Superheroes Never Die: Comics and Jewish Memories - realizada no Museu Judaico da Bélgica entre 8 de novembro de 2019 e 24 de abril de 2020 - evidenciam o objetivo de destacar elementos da cultura hebraica no contexto do gênero mais popular das HQs. Isso não é exatamente difícil, visto que a nata dos quadrinistas seminais do gênero - como Jerry Siegel, Joe Shuster, Bob Kane, Bill Finger, Jerry Robinson, Stan Lee, Jack Kirby e Joe Simon - eram descendentes de famílias judaicas que emigraram da Europa para os Estados Unidos no início do século 20. Sendo assim, uma exposição composta por artes originais e publicações raras de Superman, Batman & Robin, Capitão América, Quarteto Fantástico e afins já seria, por si só, uma celebração à pujança da herança judaica. Não é à toa que as premiações mais importantes da indústria estadunidense de Quadrinhos - Kirby Awards (1985-1987), Eisner Awards e Harvey Awards (ambas criados em 1988) - foram batizadas com os nomes dos quadrinistas judeus Jack Kirby (1917-1994), Will Eisner (1917-2005) e Harvey Kurtzman (1924-1993).
A fachada externa do térreo do prédio localizado no distrito de Sablon, próximo à principal estação ferroviária da capital belga, é brilhantemente decorada com a imagem de um super-herói genérico socando um coadjuvante verde, com direito à indefectível onomatopeia POW!. A imagem chama atenção pelas cores primárias - também presentes no restante da identidade visual da mostra - e pelo contraste com a textura de pedra do prédio. Pela ilustração estar inserida no que seriam os espaços das janelas, a fachada ganha a aparência de uma página de quadrinhos com sarjetas tridimensionais. O cartaz da exposição faz uso das mesmas cores primárias e anuncia seu título usando códigos visuais dos logotipos de Super-Herói - letras extrudadas e em perspectiva - e do letreiramento de HQs.
O início da exposição é promissor. Após identificar alguns dos principais cartunistas judeus de tiras e charges publicadas em jornais em inglês e iídiche do início do século XX - como Harry Hershfield, Milt Gross e Zuni Maud - a primeira sala se abre em gigantescas reproduções do Super-Homem (destruindo um avião nazista com um soco), Quarteto Fantástico e X-Men adornando paredes e painéis que emolduram artes originais de páginas de HQs com Capitão América, Vingadores, Homem-Aranha, O Incrível Hulk e o supracitado Quarteto desenhadas por Jack Kirby, Joe Simon, John Romita, Ross Andru, Al MIlgrom e Dick Ayers.
Também estão expostas páginas das tiras dominicais de Superman, de 1941-1943, desenhadas por Joe Shuster e Wayne Boring, e de uma HQ de duas páginas do Homem de Aço produzida por Siegel e Shuster especialmente para a revista Look de 27 de fevereiro de 1940. Em How would Superman end the war, o personagem cruza a Linha Siegfried entortando canhões com as mãos, pega Adolf Hitler pelo pescoço na Baviera, arranca Josef Stalin de sua varanda em Moscou, e leva ambos a Genebra, onde são julgados pela Sociedade das Nações. Foi a repercussão desta HQ no semanário da SS Das Schwarze Korps de 25 de abril de 1940 que primeiro ressaltou a religião dos criadores do Super-Homem (Darius, 2013).
Ainda nesta primeira sala, um gigantesco painel e duas das revistas em quadrinhos expostas apresentam o Golem, personagem criado em 1974 por Len Wein and John Buscema com base em uma lenda associada ao Misticismo Judaico: o Golem é uma criatura monstruosa feita de barro e trazida à vida na Praga do século XVI pelo rabino e filósofo Judá Loew ben Betzalel. Na capa da Marvel Two-in-One, o Golem enfrenta o Coisa, o membro mais destacado do Quarteto Fantástico, criação de Jack Kirby e Stan Lee. Por sua aparência rochosa e por ser um dos poucos super-heróis que assumidamente possuem uma pertença religiosa - exato, o Judaísmo - Benjamin Jacob Grimm seria uma alusão ao golem mítico. Essa semelhança é inclusive mencionada diretamente na HQ Remembrance of Things Past, publicada na edição de Agosto de 2002 de Fantastic Four.
Mas o que veio em seguida atiçou meu sentido de aranha: após o painel do Quarteto Fantástico que divide a sala ao meio, todo o restante daquele espaço é generosamente dedicado ao Spirit de Will Eisner… que, bem, não é um super-herói. Apesar de contemporâneo de Super-Homem, Capitão América e companhia, este paladino da justiça não satisfaz duas das três convenções do gênero - Missão, Poder, Identidade - estabelecidas por Peter Coogan (2006, 30-39). Além da ausência de super habilidades, o Spirit não faz uso de características que fundamentam a identidade de um super-herói, como um uniforme ou alcunha que expressem sua personalidade ou poderes. Ele traja um simples terno e uma pequena máscara sobre os olhos - para esconder que foi o policial Denny Colt, dado como morto - e não é nem possui os poderes de uma entidade sobrenatural. Lidando com tramas policiais no melhor estilo noir, ele é, assim como o Zorro, o Sombra e o Fantasma nas pulps e tiras de jornais que precederam o Super-Herói, um “mystery man”.
No contexto da mostra, teria sido mais legítimo expor o Wonder Man, super-herói criado por Eisner em 1939 para a Fox Comics. Bem menos conhecido que o Spirit, o personagem entrou para a História dos Quadrinhos por ter feito apenas uma aparição - em Wonder Comics #1 - antes que a editora fosse processada por plágio pelos detentores dos direitos do Super-Homem. No entanto, além das (belíssimas) artes originais de páginas e capas do Spirit, a exposição incluiu originais de duas (importantes) graphic novels de Eisner, Contrato com Deus (1978) e A Força da Vida (1988), mas que tampouco são de Super-Herói: ambas as HQs giram em torno de histórias vividas pelos imigrantes judeus nos cortiços da Nova York dos anos 1930. Eisner ainda abordaria diferentes aspectos da história e da cultura hebraica em outras obras, destacando-se Fagin, o Judeu (2003), que dá o protagonismo ao vilão de Oliver Twist, de Charles Dickens, buscando reverter estereótipos anti-semitas observados em clássicos da literatura.
Com alguma reticência, é aceitável esse desvio temático considerando que se trata de um autor de extrema importância para os Quadrinhos - e em especial naqueles que abordam a cultura hebraica - e que, afinal, criou um “memorável” super-herói - além de ter dado um empurrãozinho providencial para o surgimento do Homem-Borracha, criado por Jack Cole em 1941 (Porto, 2001; Schumacher, 2013). Tudo bem, sigamos em frente. A exposição continuava no segundo andar. Na escada que conecta os dois andares do museu, uma impactante colagem de imagens de super-heróis leva o visitante a uma parede com vinte reproduções de capas da… revista de humor MAD?!?
Co-fundada por William Gaines e Harvey Kurtzman em 1952, a MAD é conhecida por satirizar uma ampla gama de comportamentos e aspectos sócio-culturais e político-econômicos estadunidenses. Kurtzman atuou como editor da revista em seus cinco primeiros anos, sendo substituído por Al Feldstein, que ficou à frente da publicação entre 1956-1984. Os três são judeus - assim como os cartunistas Al Jaffee, Don Martin e Dave Berg, colaboradores da publicação por muitas décadas - e a revista era abarrotada de expressões em iídiche… mas a curadoria da exposição não apresenta nenhuma ligação com o gênero Super-Herói que justificasse sua presença ali. Me chamou a atenção que nenhuma das vinte capas expostas sequer continha uma das muitas paródias que a revista produziu sobre Quadrinhos, ou seus derivados em outras mídias. Somente no final do segundo lance de escada isso toma forma, tardiamente: um painel que reproduz a capa de publicação de setembro de 1966 com a sátira do seriado televisivo Batman serve de fundo para selfies. Até disponibilizam uma máscara do personagem - e, claro, hashtags para redes sociais - limitando o histórico do gênero na revista a uma reles função de ação promocional.
No entanto, o gênero esteve presente no momento que a MAD descobriu sua voz. Robert Petersen (2010, p.206) e Schelly (2013, p.84) afirmam que a fórmula de sátiras que transformou a revista em um grande sucesso teve início na MAD #4, de Abril de 1953, com a HQ Superduperman!, uma paródia ao Super-Homem escrita por Kurtzman e desenhada por Wally Wood. Para William Gaines, a revista era um fracasso até a publicação de Superduperman!: “Os três primeiros números [da MAD] perderam dinheiro, mas o quarto aconteceu, e a partir de então decolou” (Schelly, 2015, p.260). Schelly reitera que Superduperman! não apenas é creditada por levar a MAD à lucratividade, mas é o arquétipo das HQs da publicação, além de uma das mais conhecidas e conceituadas (2015, p.259-260). Mas isso não é mencionado em momento algum.
Após mais esta escorregada na dualidade temática da mostra, chega-se a sua parte final, no segundo andar, em que um corredor leva a quatro salas. Nele, ampliações de páginas de HQs dos X-Men dos anos 1980 - como a graphic novel Deus Ama, o Homem Mata - propõem paralelos entre o preconceito contra os mutantes da ficção e o racismo, homofobia e perseguição religiosa da vida real, se amparando sobretudo no vilão Magneto como um judeu sobrevivente do Holocausto. Embora a analogia com o preconceito sofrido por diferentes minorias sociais exista desde o surgimento do grupo - que é liderado por um cadeirante - nos anos 1960, foi somente na década seguinte que a diversidade étnica se instaurou mais plenamente na equipe - até então praticamente toda WASP - e passou a contar com personagens assumidamente católicos, judeus e hindus, imigrantes de países da Ásia, África e Europa.
Neste momento, entretanto, a divisão entre Super-Herói e Judaísmo se acentua, e perdemos este atraente fio condutor. Distanciando-se completamente do gênero Super-Herói, as duas primeiras salas tratam exclusivamente da produção de quadrinistas judeus no âmbito de sua cultura e experiências específicas. Estão lá em reproduções, originais e vídeos, por exemplo, relatos da vida dos judeus na década de 1830 (The Jew in New York, de Ben Katchor), durante a Grande Depressão (The Golem’s Mighty Swing, de James Sturm), frente aos horrores da Segunda Guerra (We are on our own, de Miriam Katin, I was a child of Holocaust survivors, de Bernice Eisenstein, e MAUS, de Art Spiegelman) e no contexto da contracultura (American Splendor, de Harvey Pekar, DiDi Glitz, de Diane Noomin, e The Bunch’s Power Pak, de Aline Kominsky-Crumb).
As salas finais, por outro lado, desvinculam-se da temática judaica e se limitam a exemplificar títulos e personagens de HQs de Super-Herói que abordam questões supostamente análogas às dos trabalhos criados pelos quadrinistas judeus como um reflexo de suas vivências em decorrência da fé que professam. Aqui não há artes originais ou edições raras, apenas reproduções. O texto da curadoria se limita a declarar que “as causas pelas quais [os super-heróis] lutam mudaram e se expandiram para incluir questões de gênero, étnicas e de desigualdade sexual”, identificando como marcos da diversidade no gênero a Mulher-Maravilha (1941); o Pantera Negra (1966); as jovens super-heroínas muçulmanas Pó (2002), mutante afegã que veste um nicabe (o véu que só revela os olhos), e a atual Ms Marvel (2014), de ascendência paquistanesa; a equipe LGBTQ+ The Pride (2011); e o casamento homoafetivo de Estrela Polar (2012), mutante canadense membro da Tropa Alfa e dos X-Men que havia saído do armário em 1992. A mostra fecha, sem muito concluir, com exemplos de HQs que questionam o legado do gênero, como Watchmen (1986), Brat Pack (1990) e The Boys (2006).
É uma exposição ruim? De jeito algum. A seleção de artes originais e publicações raras - dos acervos de colecionadores e dos Museus da Arte e História do Judaísmo de Paris, de História Judaica de Amsterdam, e do próprio Museu Judaico da Bélgica - é magnífica. Na cenografia envolvente de Christophe Gaeta e Sandrine Malchair, os painéis flexíveis emulam gigantescas páginas nas quais se constroem visualmente imagens à medida que percorremos as salas, tornando a visita imersiva e bastante agradável.
No entanto, o leve incômodo causado pela inclusão do Spirit e da MAD em uma mostra que supostamente se propõe a discutir as relações entre Super-Herói e Judaísmo, verteu-se em decepção quando os assuntos separaram-se em definitivo. Da mesma maneira como as presenças da revista e de Will Eisner não são ilegítimas - o que uma abordagem menos superficial, que incluísse Wonder Man e Superduperman, revelaria - a segunda parte da exposição possui muitas qualidades. E este talvez seja parte do problema: tanto os relatos de MAUS e cia. como questões de inclusão refletidas e promovidas nos Quadrinhos são de grande relevância, mas não foram tratados desse jeito em uma exposição a qual não pertenciam, ao menos não plenamente.
Acredito que essa frustração seria evitada se houvessem optado por apenas Heroes, ao invés de Superheroes, tanto no título como nos códigos visuais da exposição. Seja por terem duvidado da capacidade de fascinação por heróis sem superlativos, seja uma consequência do onipresente MCU, o discurso de que justiceiros, pioneiros, sobreviventes, oprimidos, desbravadores, minorias ou militantes são capazes de feitos heróicos sem precisar de capas ou um símbolo no peito foi frustrado por uma saída fácil. É o tipo de confusão ou estratégia preguiçosa e rasa que um shopping center faria em uma ação de marketing na sua praça central, mas não é o que se espera encontrar em uma prestigiosa instituição cultural na cidade conhecida como a capital européia dos Histórias em Quadrinhos.
Referências
Coogan, Paul. Superhero: The Secret Origin of a Genre. Monkeybrain, 2006.
Darius, Julian. (2013 Junho 13). On “How Superman Would Win the War”. Sequart Organization.
Perpetua, Matthew. (2012 Maio 22). Marvel Comics Hosts First Gay Wedding in ‘Astonishing X-Men’. Rolling Stone.
Petersen, Robert. Comics, Manga, and Graphic Novels: A History of Graphic Narratives. Praeger, 2010.
Pessoa, Breno (2016 Maio 18). De X-Men a Superman: o que há de religioso nos super-heróis modernos. Diário de Pernambuco.
Porto, Bruno. O Espírito do Homem Borracha. In: Designe #3. Centro Universitário da Cidade, 2001. p.18-19.
Royal, Derek Parker (editor). Visualizing Jewish Narrative: Jewish Comics and Graphic Novels. Bloomsbury Academic, 2016.
Russo, Guilherme. (2005 Maio 13). O judaísmo nas HQs. ÉPOCA.
Schelly, Bill. American Comic Book Chronicles: The 1950s. TwoMorrows Publishing, 2013.
Schelly, Bill. Harvey Kurtzman: The man who created MAD and revolutionized humor in America. Fantagraphics Books, 2015.
Schumacher, Michael. Will Eisner: Um sonhador em quadrinhos. Tradução de Érico Assis. Globo, 2013.