Sobre o pessoal e o universal em Harvi

por Ciro I. Marcondes

Histórias pessoais às vezes são refrações muito pouco translúcidas do que é o interior de uma pessoa. Soma de imagens internas, memórias e do mecanismo da linguagem, é difícil pensar no nosso “eu” como algo transmissível a uma história, a uma mídia, a qualquer tipo de expressão, e esse é um dos decalques existenciais com os quais, mancos de tudo, nós precisamos viver a vida toda.

Harvi, uma empreitada interessante do selo de mesmo nome pilotado por Marcos KZ (de Liget), propõe uma seleção de histórias curtas focadas no lado pessoal dos artistas, e investindo em nomes quase exclusivamente jovens, promissores, um trabalho cuidadoso de curadoria atenta ao que acontece no cenário nacional, e que teve Aline Zouvi (de Síncope) como editora convidada. Aqui, o “pessoal” difuso do tema geral se torna veículo para transvisualizações, alegorias, sublimações e também revelações que variam de acordo com o nível autobiográfico de cada história.

A sugestiva capa de Harvi, por Aline Zouvi

Neste sentido, tudo aqui funciona mais ou menos como aquela coisa quase evidente de que “toda ficção é autobiográfica”, e “toda autobiografia é ficcional”. O nome do selo e da publicação remetem, com bastante propriedade, a Harvey Pekar, o insolente roteirista de quadrinhos oriundo de Cleveland, retratado de maneira idiossincrática no cultuado filme Anti-Herói Americano (American Splendor, Shari Springer Berman e Robert Pulcini, 2003).

Pekar é famoso por tratar, em seus quadrinhos, apenas de eventos ordinários e considerações prosaicas (ou quase) de sua vida, transformando a observação ativa do mundo numa espécie de arte maldita, porém capaz de inspirar toneladas de aspirantes a cronistas cínicos no universo indie dos quadrinhos. Quase todo mundo, naturalmente, sem sua agudeza e contradições de olhar.

Curiosamente eu havia retornado a Pekar recentemente após ler uma ótima coletânea (The New American Splendor Anthology, Four Walls Eight Windows, 1991) de suas histórias, ilustradas por diversos artistas. Eu já comentarei esta relação com Harvi, mas gostaria apenas de digredir um pouco sobre a história “Hysteria”, de 1986, desenhada (horrivelmente, por sinal) por Val Mayeryk e James Sherman.

Aqui, Pekar envia um exemplar de seu livro mais recente para uma revista “descolada” e “adulta”, pedindo para que seus quadrinhos sejam tratados como literatura séria. Porém ele se arrepende, antecipando cenários catastróficos ou inúteis, e liga para a editora da revista, originando um verborrágico bate-boca paranoico e carregado de frases de efeito e diálogos que sobem um degrau acima do realismo usualmente proposto para as suas HQs. Sentimos a loucura toda da coisa, mas também uma estranha manipulação das emoções que, vamos percebendo, usualmente ocorre nas chamadas “histórias pessoais”.

O que podemos tirar de lição desta história – para além do fato de que uma simples resenha hipotética pode gerar um ataque de nervos em certos artistas –, é a de que Harvey Pekar tem algum controle sobre como uma história pessoal pode resultar em bom material narrativo. Por outro lado, ele simplesmente age num limbo entre matéria e memória, calibrando o que se lembra da experiência real com intenção, autossabotagem e expressividade gerados pela mera transposição “inventada” daqueles eventos para a história em quadrinhos.

A infusão de delírio subjetivo no meio do realismo de Pekar

A histeria que ele identifica em si próprio se torna uma construção filtrada pelo racional, que liberta novamente a mesma histeria por meio da HQ quando lida, e assim esses sentimentos circulam nestas projeções eternas que emanam das histórias pessoais. Conforme afirma a teórico Charles Hatfield: “A relação entre quem fala [Pekar] e o leitor é tudo, pois o primeiro confronta o último em uma tentativa frustrada de autoafirmação”. Essa frustração comunicacional, pelo que entendo, é o que gera a expressão desse modelo de narrativa.

Refrações

Em Harvi, a “história pessoal” assume diversas valências. A primeira, “Espuma”, de Mayara Lista, tem grande senso de tempo, sensibilidade e propriedades sinestésicas. É um emaranhado de afetos para reviver uma memória sobre sua mãe. É pessoal em um nível muito íntimo, mas o calor (e a frieza) destes afetos traduz-se em sensações coletivas.

Mayara Lista

Mais radicalizada em direção a um devir poético dos quadrinhos, Lume oferece aqui uma das melhores manifestações da antologia, “A Pequena”, em que vemos tão-somente uma garota atravessada pelo fantasma ilustrado (pulverizado no grafite que se esboroa) de um monte de cavalos correndo. Que cavalos serão estes, que atravessam esta menina? Serão de uma fazenda? De uma corrida? De um sonho? Sabemos apenas que se trata de algo pessoal, que o poético emerge para atrair esse átimo, e que isso basta.

Lume

Helô D’Angelo pode fazer tiras sobre ansiedade moderna no Instagram (que confesso achar um tanto enfadonhas), mas eu gosto bastante quando ela se dedica a projetos mais longos e elaborados como a história “Luto”, cheia de recursos interessantes para traduzir horas e dias de angústia e dificuldade de sentir a morte da avó, entre a burocracia da vida moderna, os ritos sociais e as convulsões afetivas que emergem dos momentos mais improváveis.  

Helô D’Ângelo

Também Bruno Guma (da ótima Pile Up – olho nesse cara) não exatamente reinventa a roda com sua “Forrest Gump Nunca Soube o Seu Lugar no Mundo”, um pouco derivada demais de coisas como Seth e Tomine. Porém ele traz uma narrativa bem contada sobre exílio, episódios de ansiedade e isolamento, utilizando esse vocabulário indie para nos contaminar com uma imageria, palavras e emoções aflitivas, traduzindo com sensibilidade suas paranoias e obsessões.

Bruno Guma

É incrível, portanto, como o universo particular de cada artista dá vazão a um fenômeno de projeção-identificação diferente, tal qual havíamos visto embrionariamente no próprio Harvey Pekar. “Luz”, de Amanda Miranda, vira uma série de autorretratos em negativo cheios de vísceras, num monólogo inquietante. “Sonho Qualquer”, de Edson Bortolotti, se junta a “Reptilia”, de Paula Cruz, e “Pixin! Pixin! Pow! Pow!”, de André Ota, para fazer uso dos quadrinhos como plataformas experimentais de representação para angústias recônditas, fobias e compulsões, nem sempre em um sentido negativo, mas quase sempre com efeito terapêutico, seja no autor ou no leitor.

A diversidade de visões de Harvi, ainda que alguns com maior perícia e maturidade artística do que outros, nos ajuda a defender a ideia de que o pessoal de fato não existe. Toda expressão é a expressão do mundo, todas as conexões da realidade nos dizem respeito, e todo filtro estético cria uma refração que atinge todas as subjetividades. Grande sacada, em um lançamento que aponta para adiante algumas das possibilidades do quadrinho brasileiro, com um gesto curatorial novo, diferente e bem pensado, abrindo a clareira para a nossa nova década.