Especial Editora Mino #3: Kick out the Jams!

Desovando aqui mais quatro sensacionais quadrinhos lançados pela Mino! Let's kick some! (CIM)

por Pedro Brandt, Marcos Maciel de Almeida, Márcio Jr. e Ciro I. Marcondes

BAR – O Miolo Frito (Mino, 2017, 176 p.): Para Jürgen Habermas, a esfera pública é a dimensão onde os grandes (e pequenos) temas de interesse público seriam aberta e democraticamente debatidos. Aos meus olhos embriagados, os bares sempre pareceram uma possibilidade plausível de locus para este conceito. E quanto mais pé sujo, mais habermasiano – até porque em bar metido a besta as pessoas não vão para discutir ou conversar, mas para dar pinta e aparecer.

Falo desses botecos de quinta categoria com alguma propriedade. Passei boa parte da minha infância dormindo em suas mesas, enquanto meus pais tomavam dúzias de geladas. Mal adentrei a adolescência e já tinha a dura tarefa de buscar meu velho na madrugada amiga. Chegava lá e a corrupção ganhava corpo: uma coxinha, um picolé, um refri, um torresmo. Meu pai, que adorava bater papo, estava sempre rodeado de amigos, falando levemente sobre todo e qualquer assunto. Tudo isso para dizer que reconheço em Bar uma respeitável autoridade sobre o tema.

O livrão é obra do Miolo Frito, coletivo formado por Breno Ferreira, Benson Chin, Thiago A. M. S. e Adriano Rampazzo – e neste Bar, puxaram mais uma cadeira para Shun Izumi caber na mesa. Fazem parte dessa novíssima geração do quadrinho brasileiro que povoa as feiras invocadas para leitores adultos – e não estamos falando aqui de eventos nerds, fique bem claro. Juntos, produzem uma revista que carrega o nome do grupo, com algumas edições lançadas. Têm um pé fincado no underground e outro no design. Na Miolo Frito, lançam mão de bacanices como capas serigrafadas, uso de tinta pantone e por aí vai. Tudo isso sem descambar para o universo do fanzine gourmet. Palmas para eles.

A abordagem presente na Miolo Frito dá as caras em Bar: capa dura, lombada com costura aparente, impressão em ciano sobre papel pólen. Esse acabamento luxuoso, contudo, seria maneirismo da pior espécie se a HQ propriamente dita fosse artificial. Não é o caso. Diz o release da edição que as histórias narradas possuem como inspiração um bar do bairro Bela Vista, São Paulo. Eu acredito. Apesar de não ser uma narrativa que busque um reflexo exato do dito mundo real, o que se vê ao longo de suas 176 páginas é uma verossímil tradução da fauna que habita um típico pé sujo: Baratas, ratos, clientes assíduos, humor chulo, dramas humanos, tretas, banheiros imundos, prostitutas, policiais sebosos, gordura na parede. Em diversos momentos, doses duplas de realismo fantástico encharcam as páginas do livro.

Tal e qual o cotidiano de um boteco vagabundo é formado pelo entrelaçar das micronarrativas que ali desembocam, Bar é a tapeçaria criada a partir de pequenas HQs que têm como palco o estabelecimento comercial administrado por um certo Pedrão. Interessante notar que cada HQ possui cadência, estilo e eficácia próprias. Algumas funcionam muito bem. Outras, nem tanto. Mas não é assim a vida em um bar?

Habermas ressurge: apesar da clara distinção de traços, os autores se recusam a assinar as histórias individualmente. Nesta esfera pública não interessa qualquer tipo de hierarquização entre seus agentes. Eles, inclusive, gozaram de liberdade para dar pitaco e meter pinga um no trabalho do outro. Em determinados momentos, os desenhos são mais negligentes que bebum na sarjeta. O resultado, todavia, porta uma interessante contradição: a HQ é heterogênea, ao mesmo tempo que coesa.

Bar não é uma obra-prima. Bares nunca são lugares para obras-primas. Por outro lado, é uma história em quadrinhos visceral, honesta e cheia de alma – coisa que você não encontra naquele botequim que tenta replicar a Lapa dentro de um shopping center de qualquer capital brasileira. Se estiver em busca de um quadrinho meticulosamente elaborado, leia por sua conta e risco. Entretanto, se assim como eu você já lascou o dente comendo torresmo, vai se identificar com o gibi.

Agora, me dá licença que eu preciso ir ali na esquina molhar a palavra. Ninguém é de ferro... (MJR)

Cão – Breno Ferreira (Mino, 2017): Fugindo da vertente humorística característica das tiras publicadas em Cabuloso Suco Gástrico, Breno Ferreira dedica-se a contar os causos do matador Diogo da Rocha Figueira, o Dioguinho, assassino de aluguel que barbarizou o sertão paulista no final do século 19. Baseando-se na história real de um sujeito que vivia para matar, Breno utiliza um estilo de desenho mais seco e visceral que reflete a opressão de uma época de brutalidade e violência, não exclusiva dos tempos modernos. Trata-se de traço rude e belo, quase xilográfico, que remete a clássicos antigos e recentes do quadrinho brasileiro, como Estórias Gerais, de Flávio Colin, e a Trilogia do Acidente, de Lourenço Mutarelli.

Outra escolha acertada de Breno foi a pesquisa afiada da linguagem dos sertanejos da terra da garoa. É quase uma viagem no tempo. O linguajar típico do interior paulistano é praticamente um personagem e transporta o leitor para dentro daquela realidade em que as armas de fogo ditavam as regras. Elogiável também foi a opção de retratar personagem e temas essencialmente brasileiros. Breno dá – assim – continuidade à salutar tendência de valorizar elementos nacionais, observada em quadrinhos tão interessantes e distintos como Tungstênio, de Marcello Quintanilha e Bando de Dois, de Danilo Beyruth. (MMA)

Uma Noite em L’Enfer - Davi Calil (Mino, 2016, 192 p.): A vida boêmia de grandes nomes das artes plásticas de meados do século 19/começo do século 20 inspirou quadrinhos interessantíssimos, como O Bordel das Musas, do iugoslavo Gradimir Smudja (também autor de Vincent & Van Gogh), e Salon, do americano Nick Bertozzi. Lançada em julho de 2016, Uma Noite em L’Enfer, do paulista Davi Calil, junta-se, por afinidade e méritos, a essa lista.

O autor serve-se de liberdade poética para, sob a égide de Noite na Taverna, do escritor Álvares de Azevedo, imaginar um encontro entre os pintores Vincent van Gogh, Paul Gauguin, Toulouse-Lautrec, Gustav Klimt e Francisco de Goya numa mesa de bar – o cabaré parisiense L’Enfer, famoso por sua fachada (uma assustadora boca escancarada) e por conta da decoração que remete ao subterrâneo reino do Capiroto – onde, servidos de muito absinto, se engajam numa competição de contação de histórias macabras. O vencedor leva como prêmio um crânio que, supostamente, teria sido do poeta italiano Dante Alighieri. Todos recorrem a relatos biográficos (ou quase) de amor e morte, que passam por sexo, perversões, luxúria e traição. “Nós vivemos em um arco-íris de caos”, resume, numa participação especial, o pintor Paul Cézanne.

Davi Calil é – como revelam os protagonistas na obra em questão – um habilidoso narrador. Também profissional da animação, ele imprime um ritmo de desenho animado em sua HQ. Aliás, uma das produções das quais Calil participou é justamente Historietas Assombradas (para Crianças Malcriadas), exibida pelo Cartoon Network. A série, assim como, de certa forma, também Uma Noite em L’Enfer, passa pelo humor e pelo terror (no caso do desenho animado, para crianças, algo bem light).

Livre de qualquer compromisso com o público infantil, o autor mesmo assim dosou a mão na hora de imprimir terror na HQ. Calil busca um equilíbrio entre luz e sombras e, mesmo as histórias pedindo uma aproximação muito maior com as trevas – equações exemplarmente alcançadas, por exemplo, nas obras Pinóquio, de Winshluss, e Três Sombras, de Cyril Pedrosa –, tende mais para o lado da suavidade. 

Mas não se engane: Uma Noite em L’Enfer é um quadrinho divertido e instigante, desde o argumento (com direito a surpresinha no desfecho) até – e especialmente – as ilustrações. (PB)

Sshhhh! – Jason (Mino, 2017, 128 p.): Uma linguagem silenciosa (ou “muda”) tem o mesmo poder

 de expressão do que uma com diálogos, palavras e sons? Depois de passar mais de sete anos estudando cinema silencioso, acho que posso arriscar a dizer que esse tipo de expressão, com toda sua imensa gama de variações, não processa o conhecimento da mesma forma que aquele acompanhado por palavras. Não que uma linguagem supere a outra, mas estão em pontos diferentes da curva, sintonizam em diferentes frequências. A linguagem muda, bem menos logocêntrica, alcança instâncias recônditas do entendimento que as palavras, um tanto centrípetas, perdem em sua simbologia. Para um filósofo como Henri Bergson, a imagem é a própria matéria que constitui a realidade.

Quadrinhos só com imagens nos remetem a este“despertar” ontológico.

É mais ou menos a isso que estas dez histórias mudas do inigualável quadrinista norueguês Jason remetem. Com narrativas simples numa grade 2x3 e muita economia em determinados detalhes comuns em quadrinhos (palavras são detalhes para alguém como Jason), ele nos leva à jornada sentimental de um relacionamento, ao encontro com a morte, ao encontro com o diabo, à dilacerante dor de ser rejeitado, à “dor e delícia” de ser pai e filho, à sensação de se tornar invisível socialmente, à sensação de se tornar muito visível socialmente, ao vazio da riqueza sem propósito, a um sem-número de implicações existenciais. E isso ocorre porque elas se processam em silêncio, como se fosse aquele íntimo encontro consigo próprio, um mundo onde a real é apenas você pensando e olhando as coisas.

Estes quadrinhos funcionam como alegorias em seu sentido mais restrito, adorniano: são imagens em deslocamento que traçam parábolas. Jason enxuga sua representação ao essencial em dispositivos muito simples de contar histórias, mas rigorosamente originais e resgatando o máximo do que a pura visualidade pode oferecer. Referências de quem sabe o que está fazendo (Hergé, Spiegelman, Herriman) abundam, e esta obra não deixa de ser um prisma de erudição por sua linguagem minimalista que faz parecer fácil fazer quadrinhos. Tão longe, tão perto! Uma das coisas mais brilhantes no nosso mercado atualmente. (CIM)   

Rapidinhas Raio Laser #06

Indo direto ao ponto desta vez, esta é a sexta edição das nossas Rapidinhas (I.E.: resenhas curtas de quadrinhos autorais nacionais). Ela contou com o esforço de quase toda a equipe Raio Laser. Vejam que as Rapidinhas vão ficando mais longas e menos rápidas. Não importa. São mais onze textos fresquinhos para você. (CIM)

Caso queira aparecer por aqui, envie seu material para:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070

por Márcio Jr., Pedro Brandt, Marcos Maciel de Almeida e Ciro I. Marcondes

MUNDO PARALELO Aventura e Ficção nº 1 – Vários (Independente, 2016, 152 p.): Pode parecer estranho, mas histórias em quadrinhos adultas (ou quase) já foram um meio de comunicação extremamente popular no Brasil. Majoritariamente encontradas em bancas de revista, custavam o equivalente a uma ou duas carteiras de cigarro, e suas tiragens mais baixas ultrapassavam com tranquilidade dez mil exemplares. Neste panorama, as revistas mix eram bastante comuns e tinham por característica trazer diversos autores em uma mesma edição, quase sempre em narrativas curtas e fechadas.

Animal, Circo e Heavy Metal, entre tantas outras, tiveram seu momento e deixaram saudade – saudade essa que o editor e roteirista Walter Klattu deseja matar com Mundo Paralelo: Aventura e Ficção (subtítulo saborosamente surrupiado da saudosa revista publicada pela Editora Abril).

A intenção é das melhores. Nesta primeira edição – houve um nº zero anterior, importante lembrar –, Klattu nos entrega um calhamaço com 13 histórias, em excelente impressão, por módicos R$ 8,00. A capa, belíssimo trabalho da dupla Eduardo Cardenas e Eduardo Schaal, tem envergadura para estampar qualquer Metal Hurlant da vida, e ainda traz uma crocante aplicação em prata no título. Se o miolo da revista apresenta um timaço de desenhistas, a maioria dos roteiros se debate contra o complexo labor das narrativas curtas.

Klattu e Cardenas abrem a picada com Obuz, uma HQ de 16 páginas – que necessitaria outras cem para desenvolver adequadamente a miríade de conceitos e personagens apresentados. Cardenas retorna com sua arte fantástica em O Sol Negro – trama vampiresca que também clama por mais espaço –, e Próto 9, onde arte-finaliza Sebastião Seabra, valorizando a qualidade do desenho do veterano. E por falar em veteranos, é sempre um prazer reencontrar o craque Mozart Couto, mestre do quadrinho nacional e nosso maior expoente no gênero Espada & Magia. Em Urian, Mozart mostra o que todos já sabemos: que ele faria um Conan à altura de John Buscema. Guerreiros também estão presentes nas duas HQs ilustradas com maestria por João Azeitona: A Caça e Zulu – o roteiro mais bem resolvido de toda a edição, autoria do macaco velho Gian Danton.

Loop é a única HQ de Mundo Paralelo em que o texto (inventivo e inusitado) é superior ao desenho. Dois feras escolados dão um gás extra aos roteiros de Klattu: Em O Velho Bunko, Rodrigo Rosa manda um storytelling impecável; e Fabio Cobiaco cria um balé de movimento impressionista em Arena. Volcânia Blues, Vór, Macarius e Muru, ainda que diferentes entre si, apresentam a mesma estrutura: desenhos no mínimo eficientes para tramas que não se concluem, dando a impressão que novos capítulos virão para desenvolver melhor os personagens apresentados. Se a ideia for mesmo essa, o hiato entre as edições cria um sério problema de continuidade para as HQs.

De qualquer forma, Mundo Paralelo é um gibizaço. A coragem (e paixão) de Klattu em reviver um formato de publicação em desuso há pelo menos duas décadas é digna de muito mais que louvor: é digna de leitura. Infelizmente, a revista segue o velho esquema de distribuição independente, em lojas específicas e internet. Gostaria muito de ver os resultados de uma Mundo Paralelo distribuída pelas bancas do país. Por apenas oito mangos e com o recheio que traz em si, tenho quase certeza que o apelo junto ao público seria surpreendente. (MJR)

BlitzkriegBruno Seelig (Independente, 2016, 14 p.): Traço fino, angulações bem pensadas, bom timing, certo tom cartunesco (pero no mucho) e uma historinha de 14 páginas. Boa impressão e sombreamento na coloração azulada, múltiplas referências, uma lição simples e singela.

Blitzkrieg, do gaúcho Bruno Seelig, é uma aposta nostálgica (“Oh ! que saudades que eu tenho / Da aurora da minha vida, / Da minha infância querida / Que os anos não trazem mais!”), tipo ressaca de Stranger Things, no imaginário “moleque” da sexta série. O acabamento é lindo, o cuidado com expressões, letreiramento e design de personagens é ótimo e as interações entre eles são bastante aceitáveis. Me incomoda apenas o tom muito “bonzinho” da HQ (tem até uma querela estilo “Luther King x Malcolm X”) e sua mensagem fofa e insípida no final, que me lembrou Garrocho e Damasceno. O texto propõe uma masculinidade na infância repensada segundo ditames contemporâneos de sensibilidade e respeito ao próximo. Ok, bons valores, e o gibi é despretensioso. Mas acho que faltou algum tempero, uma pequena dose de malícia, um princípio de desvirtuação (vejam bem, não tô pedindo pra ser escroto). Dito isso, Seelig é um talento que valerá a pena observar nos próximos tempos. (CIM)

Fim do Mundo André Ducci (Arte e Letra, 2014): André Ducci não economizou esmero durante a produção de Fim do Mundo. O gibi exala grandiosidade e elegância, ambas favorecidas pela edição caprichada e pela fineza do traço. Esta HQ sem palavras – mas jamais muda – narra a viagem de um esquimó em busca de si próprio.

Esta jornada em terrenos nevados, águas profundas e montanhas inexpugnáveis terá por companhia apenas silêncio e solidão, algozes impiedosos para Amyr Klink algum botar defeito.

Durante sua jornada incessante, o esquimó nasce e renasce em diferentes identidades, como que para demonstrar a perenidade de sua obsessão, que se tornou maior que a vida. Bem, pelo menos foi isto que consegui entender. Posso estar totalmente errado em minha interpretação. Mas de uma coisa, eu não tenho dúvidas: o gibi de André Ducci é poesia pura esculpida em formato de arte sequencial. (MMA)

Catacumba - Kiko Garcia (Kikocomics, 2015, 40 p.): Idealizada, escrita, ilustrada, editada e publicada pelo paulistano Kiko Garcia, a revista Catacumba apresenta quadrinhos de terror à moda antiga, ao estilo das clássicas Eerie, Creepy e, especialmente, de publicações nacionais como Kripta, Spektro e Calafrio.

Cada história é sarcasticamente (“Boa noite meus tenebrosos amigos! Então tiveram coragem de descer à sinistra catacumba?”) apresentada por uma criatura, espécie de morto-vivo, que contextualiza aos leitores parte do que virá a seguir. As três edições (a mais recente é de setembro de 2016), com três histórias cada, são temáticas, respectivamente: “Pavor da escada”, “Loiras macabras” e “Antiquários dos horrores”

A narrativa de terror para ser eficiente depende muito da criação de climas, de como as informações visuais e textuais são construídas no sentido de impressionar o leitor, tirar seu fôlego, surpreendê-lo. Aqui – como, em geral, também nos quadrinhos que inspiraram Catacumba – a narrativa é bastante crua, dependendo muito dos textos dos recordatórios e menos das sequências de ilustrações. É um terror que, se não assusta necessariamente pelo que é “falado”, instiga o olhar e, em segundo lugar, alguma curiosidade para saber o desfecho de cada trama – que bebem de causos, lendas urbanas e “histórias que o povo conta”. Destaque para “Revelação maldita”, da edição 2, com uma história digna de Mojica Marins.

Catacumba funciona bem porque Kiko Garcia conhece o território (maldito) onde pisa e, mais do que uma homenagem à antigas HQs de terror, seus quadrinhos transpiram paixão por essa matriz. Seu traço tem algo da carpintaria em preto e branco de alto contraste dos mestres Flávio Colin e Júlio Shimamoto. A maneira como ele junta os painéis dentro da página – com requadros de diferentes tamanhos e cortes – dá uma fluidez onírica ao conjunto. Quem curte essa vibe não pode deixar de conhecer. (PB)

O Intestino EloquenteAndrício de Souza (Editora Espirro, 2015, 154 p.): Bem, fazer uma resenha dos “quadrinhos” de Andrício de Souza é uma tarefa um tanto quanto paradoxal. Afinal, este camarada está no campo do pastiche de tudo e todos, absolutamente. Pastiche dos quadrinhos, quando na verdade ele apenas desenha pessoas reais (com caneta Bic!) recitando “poesia” chula de quinta categoria. Pastiche da própria poesia quando, bem, recitar umas tolices no esquema “batatinha quando nasce” (o famoso ABAB) com conteúdo ultrajante só pode atingir a própria suposta “nobreza” da arte poética, tão ignorada também por tudo e todos hoje em dia. Até mesmo o nome do maluco é um pastiche – de Maurício de Sousa, “patrono”, “godfather”, “tirano monopolizador” do quadrinho nacional. O que sobra disso tudo? Ora, veja bem: alguém que escreve “Se eu te chamar de vagabundo / Será para elogiar / Não há nada mais idiota / Que gostar de trabalhar”, para mim, certamente tem grande valor.

Andrício se refestela na tosquêra. Seu estilo lacônico de escrever (há textos explicativos antes dos “capítulos”, de uma ironia besta, ao mesmo tempo modesta e retardada), encantador de tão prosaico e autista, é de uma simpatia meio que injustificável. Parece algo como um André Dahmer com a cabeça cheia de Zoloft. Nessa linha, avesso do avesso, Andrício vai moendo temas tradicionais da poesia (o amor, o trabalho, a filosofia, a família, Deus) e outros nem tanto (como o cocô e o xixi). É um festival de besteirol inteligente, e chegamos a vislumbrar que, em algum lugar do multiverso, exista um Andrício que é realmente um bom poeta, outro que é realmente um bom quadrinista, e até mesmo um que ocupe

o lugar de Maurício de Sousa no “iron throne” dos quadrinhos nacionais. Dito isso, vale ressaltar a habilidade (uma coisa meio “escola técnica” mesmo) de Andrício em reproduzir fisionomias, gestos e cacoetes de seus personagens, sejam os modelos pessoas famosas ou não. Parte da graça está em observar expressões, detalhes das roupas e estilos destes poetas anônimos. Mas a graça mesmo está em versos inesquecíveis como: “Tive um pesadelo horroroso / De que meus pais estavam transando / Acordei e fiquei bastante aliviado, / Era apenas o mundo acabando.” Jênio! (CIM)

Cabuloso Suco Gástrico – Breno Ferreira (Elefante em Quadrinhos, 2015): CSG foi separado no nascimento de seu irmão, o gibi Quadrinhos Perturbados, resenhado nas Rapidinhas Raio Laser número 5. Assim como na revista de João Rabello, reinam aqui as tiras baseadas em temas aleatórios e com altas doses de ironia. A grande diferença é que, em CSG, temos um desenhista mais pronto, capaz de segurar a onda para retratar suas ideias insanas. O surrealismo dá as cartas aqui, seja por meio dos enquadramentos escolhidos ou pela seleção de temas insólitos, tais como o monstro que sai das profundezas para fazer sua declaração de imposto de renda ou o homem que tem o vaso sanitário como terapeuta. Um dos méritos de Breno é sua habilidade em trabalhar com temas como amor, opressão dos tempos modernos e desesperança com um olhar humorístico que não é nem clichê nem piegas. O que mais me chamou a atenção foram as tiras intituladas “Paródias da Vida da Morte”, nas quais Breno narra o cotidiano da Senhora de capuz e foice que, veterana na arte de testemunhar os momentos finais dos seres humanos, destila a quintessência do sarcasmo. Estas paródias são bem boladas e acho que poderiam segurar um gibi inteiro. Embora peque pela irregularidade na qualidade das piadas,

CSG é uma boa pedida para filosofar e refletir, de forma divertida, sobre os rumos atuais da nossa boa e velha humanidade. (MMA)

Mikrokosmos – Thiago Souto (Independente, 2014, 24 p.): Mikrokosmos tem uma qualidade inegável: a ousadia de se pensar o grid da uma história em quadrinhos como de alguma forma análoga à partitura musical. Segunda publicação de Thiago Souto e lançada na forma de zine, esta HQ tem tratamento refinado no acabamento e coloração (a música, os delírios e o abstrato em geral aparecem em púrpura; o resto, em carregados tons de cinza), além de uma aproximação conceitual interessante. Souto vai misturando a sensibilidade emocional e musical de seu protagonista (ele é um astronauta que um dia foi um grande músico) à resolução pragmática de um problema com sua nave no espaço. Acaba-se ressaltando aquela sensação que temos quando estamos fazendo um trabalho MUITO perrengue e começamos a lembrar da nossa infância, de toda nossa trajetória e sofrimentos.

A presença da música é inegavelmente bela e bem construída, com a mãe do personagem – exímia concertista do “Concerto para piano Nº 2”, de Rachmaninoff. Um dos mais belos do gênero, por sinal – servindo como superego de um protagonista torturado e traumatizado. Um dos melhores momentos é quando Souto equipara a mão que toca piano com aquela que aperta botões da cabine de comando da nave. Mikrokosmos é feita assim, de belas analogias, boa quadrinização e referências eruditas. Fica no meio do caminho entre Astronauta – Magnetar, de Danilo Beyruth, e Aama de Frederick Peeters, ainda que guardadas as proporções de uma produção modesta e zinesca como esta e o status editorial das outras. É certo que Mikrokosmos carrega certa frieza “espacial” na maneira desajeitada de lidar com tantas ambições (é ainda difícil de se deixar levar pelas emoções sugeridas), e a arte poderia ter um detalhamento mais elaborado. Lembra um rascunho, em forma e conteúdo, mas está de bom tamanho para uma produção independente e levemente experimental. (CIM)

Incoerente Coletivo Nº 2; Metrô – Guilherme de Lacerda, Dino Motta, Filipe Henz, Eduardo Calazans, Marmota, Lucas Bonacho (Incoerente Coletivo, 2016, 56 p. e 18 p.): Direto de Taguatinga vem esse coletivo de quadrinhos que só tem a somar à prolífica cena do DF. Assim como outras publicações independentes com participações de brasilienses, como Aerolito e Mandíbula, as publicações do Incoerente Coletivo são irregulares, e há um natural desnível entre os artistas (sem querer criar tretas!), mas o projeto em si é estimulante e interessante. Há força de vontade, boas ideias e a disposição para realizar coisas. Meio caminho andado. O que pintou na minha mão foi a edição número 2 da revista mix do coletivo. Seis artistas dividem suas influências num volume gordinho cheio de histórias cuja bela capa ostenta um Mustang laranja num posto de gasolina perto do crepúsculo. Uma coisa assim “Hopper encontra Tarantino num quadrinho de rua”. Trata-se de cinco histórias, todas bem ajambradas, coerentes narrativamente, trabalhando gêneros diversos (da aventura especial, à aventura marítima, ao cyberpunk, ao drama familiar). Minhas favoritas foram “Sonda 7/9”, por Filipe Henz, com corretos questionamentos sobre nosso lugar no universo, uma arte dinâmica e personalizada, e a eficiente manutenção de um mistério; e “Augusto, o arauto da destruição”, por Marmota e Lucas Bonacho, típico quadrinho de fanboy de RPG, mas com muito carisma nos desenhos meio mangá e humor na dose certa. Lembra as coisas antigas (digo anos 90) de Marcelo Cassaro e aquele Bear, da Bianca Pinheiro. Os outros são um pouco mais amadores, seja na arte ou nas ideias. É preciso o coletivo crescer na robustez da proposta, e fazer algo menos descartável. Mas um passo de cada vez.

O outro gibi, um formatinho adorável chamado Metrô, reúne o mesmo time desta vez para elaborar uma visão coletiva em histórias sobre o metrô no DF. São loucos, crianças, bullys, motoristas. Enfim, gente normal e amalhoada pela vida, sempre de passagem, sendo o transporte público metáfora para certa efemeridade. Não é o tema mais original, mas quem se importa? Sempre funciona. A edição é bastante caprichada, gostosa de se ler, e a qualidade dos sketches (formando uma totalidade conceitual) é maior do que nas histórias individuais da edição 2 de Incoerente Coletivo. Ficamos no aguardo do futuro desses caras. (CIM)

Nanquim Descartável # 4 – Daniel Esteves e vários (HQ em Foco, 2010): As desventuras amorosas de Ju, Sandra e Tuba são o tema principal deste gibi, que se passa na capital paulista. Os personagens, bem construídos, são bastante verossímeis e poderiam, tranquilamente, fazer parte de qualquer turma de amigos no Brasil. Deles, o que mais gostei foi Tuba, uma espécie de Rolo (Turma da Mônica) da Geração Z. Tudo muito bom, tudo muito bem, mas o autor poderia ter dado melhor destino para suas criações. A HQ peca pelo clima de novelão que permeia todas as histórias, especialmente as de Ju. Esta última precisa urgentemente de sessões de terapia para resolver seus problemas sentimentais de modo mais rápido. Talvez a obrigação de ter de pagar pela consulta faça com que ela seja mais objetiva em suas reflexões, já que ela fala mais que qualquer personagem do Chris Claremont. Outra coisa que prejudica o andamento do gibi é a alta quantidade de frases do tipo autoajuda, que só servem para adornar a história com uma suposta profundidade. Em suma, se estiver em busca de diversão do gênero romance juvenil despretensioso, dê uma chance. Se estiver querendo ler algo impactante, fuja. (MMA)

Eu sou um Pastor Alemão; Eu era um Pastor Alemão – Murilo Mendes (Pólen, 2014 e 2015): Esta HQ de agradável visual narra o cotidiano de Cão, um dedicado pastor alemão designado protetor de um rebanho de ovelhas em uma fazenda qualquer. Cão, um profissional verdadeiramente caxias, costuma sofrer bastante nas mãos de uma certa ovelha negra do grupo dos ruminantes,  que parece ter como prazer único azucriná-lo. Esta interação entre o animal certinho e o descolado é bacana, mas poderia ser melhor aproveitada. E esse não é o único senão do gibi. No primeiro volume há utilização da técnica de repetição de cenas com variação dos diálogos, para representar a passagem do tempo. O problema é que o recurso é usado de forma excessiva, e há momentos em que a imobilidade dos cenários e personagens chega a cansar. Embora o recurso tenha seus méritos, não se pode esquecer que a arte sequencial não tem esse nome por acaso e exige, ao menos, pequenas variações no andamento para afugentar a ideia de estar diante de um desenho animado estacionado no mesmo frame. Apesar disso, a repetição intensa dos quadros tem seus méritos, especialmente quando serve de contraste para a aparição repentina de novos enquadramentos. Acostumados com a rotina, os leitores são profundamente impactados pela mudança de ritmo e de escala na narrativa. É bacana escapar da prisão da repetição e desembocar numa cena inteiramente nova, cheia de grandiosidade. É um verdadeiro sonho de liberdade.

Há uma diferença significativa entre os dois volumes. O primeiro tem um final bem bolado, que poderia ter servido como desfecho para a saga de Cão. O segundo tem menos cenas repetitivas, mas peca por não apresentar evolução suficientemente interessante em relação ao que havia sido mostrado antes. A sensação é de estar diante de um suflê requentado. (MMA)

665: The Neighbor of the Beast - A Vizinha da Besta – Tiago Holsi (Céleblo Comics, 2016, 80 p.): Goiânia não possui tradição no campo das HQs. As poucas experiências concretizadas foram pontuais e não tiveram a devida continuidade. Os últimos três anos, entretanto, têm assistido a uma consistente tentativa de superar este estágio embrionário. Novos quadrinistas como Cátia Ana (O Diário de Virgínia), Francisco Costa (A Última Fábula), Ronaldo Zaharijs e Rodrigo Spiga (137) têm dado a cara a tapa em publicações que, mesmo sem atingir a maturidade, apresentam um desejo explícito de profissionalização. Dessa turma, o maior destaque é Tiago Holsi.

Holsi ganha a vida como ilustrador, mas definitivamente seu lance são os quadrinhos. Antes do Juscelino Neco, no auge da constrangedora febre dos livros para colorir, lançou com sucesso – e por conta própria – Zumbi pra Colorir. Na sequência veio a primeira HQ longa, Entardecer dos Mortos, que fez um belo barulho no último FIQ. E em 2016 foi a vez deste 665: A Vizinha da Besta.

O desenho de Thiago Holsi tem os pés fincados no cartum. Sempre acreditei que seu estilo pudesse se prestar a algo mais sujo, ácido, underground. Seu traço traz essa possibilidade. Mas a verdade é que Tiago navega com grande desenvoltura por águas infanto-juvenis, como atesta 665. E aqui ele faz isso com qualidade, perspicácia e um certo grau de experimentalismo.

665 começa com estrutura de livro infantil. Texto nas páginas da esquerda e ilustração nas da direita.

 Dona Graça é uma velhota cegueta que não se dá conta que seu vizinho é o capeta. O enredo segue por aí, mesclando humor leve, design caprichado, desenhos divertidos e ótima colorização. Então é Natal e o Diabo presenteia Dona Graça com um par de óculos que permitem à viúva enxergar a verdadeira natureza do morador do Edifício Babilônia, 666. A velha estica as canelas e, a partir daí, a narrativa toma outro rumo, assumindo-se como uma HQ propriamente dita.

O final é fofo. Mas o que vale é o perfeito timing de Tiago Holsi em estabelecer um preciso ponto de inflexão para sua história e explorar essa virada atrelando forma e conteúdo. A variações da linguagem quadrinística, longe de meros maneirismos, servem àquilo que quer contar. Como roteirista, falta capinar uns lotes. Ele mesmo reconhece isso. E ainda assim é, no momento, o autor mais consistente e preparado do Estado de Goiás. Aposto um frango caipira que, num futuro próximo, ouviremos falar muito desse comedor de pequi. (MJR)