O obscuro, sempre

 


por Ciro I. Marcondes

I just don’t see why I should even care
It’s not dark yet, but it’s getting there

            - Bob Dylan, “Not dark yet”.

É muito comum que grandes artistas ou pensadores, no final de suas vidas e carreiras, venham a olhar para um certo lado obscuro da existência. Atenhamo-nos ao básico: a faceta niilista e caótica das últimas tragédias de Shakespeare; a abissal missa de Réquiem de Mozart, composto para seu próprio enterro; o pessimismo derrotista nos últimos quatro álbuns de Bob Dylan; e até mesmo Freud demonstrou-se profundamente desiludido com a humanidade em seus últimos textos. Se conseguirmos aceitar isso como algum tipo de padrão – há que se considerar sempre as exceções. A nona de Beethoven, por exemplo, é um canto de cisne carregado de paixão e alegria – acho que ele se conforma com a resposta aparentemente mais óbvia, mas que só acreditamos quando acontece conosco: o envelhecimento é um processo muito difícil, de flagrante padecimento do corpo (e, portanto, de proximidade com a morte), e com ele confluem o acúmulo de frustrações e fracassos, de questões não-resolvidas, de inscrições cicatrizantes que vamos carregando na alma. Além disso, é evidente que o mundo não está ficando muito melhor, e daí é possível que estes artistas busquem uma última lufada de ar, carregada de pestilência fúnebre, que finalize com maturidade e severidade o próprio processo vital e artístico de cada um.

No caso que eu quero analisar aqui, é muito curioso o fato de se tratar de André Franquin, não apenas um mestre dos quadrinhos, mas também um mestre do humor nos quadrinhos. E o humor ganha particularidades insubstituíveis quando embebido de um tanto de... obscuridade. E Franquin acabou revelando-se um mestre também naquilo a que chamamos “humor negro”. Porém, antes de passar de vez a esta análise de seu humor, eu gostaria de pedir licença e analisar seu terror, a partir do mesmo sentido com que Francisco de Goya, o grande pintor do romantismo, instilou terror em sua fase terminal, já doente (circa 1820), surdo e quase cego, pintando as paredes de sua casa com cenas sombrias de rituais macabros, deuses pagãos e pessoas desfiguradas.

Esta brilhante fase de Goya, não planejada para ser exposta publicamente, acabou se tornando referência imediata aos movimentos modernos na pintura, como o expressionismo e o surrealismo, buscando revelar estados da alma a partir da figuração do monstro. Tornou-se famosa uma frase do pintor: “o sono da razão produz monstros”. É curioso pensar que Franquin, já nos anos 1970 e contando 47 anos (chegando ao auge da maturidade, portanto), dedicou boa parte de suas Ideias obscuras (Idées noires, publicadas ao longo de um par de anos na revista Fluide Glacial) a um imaginário surrealista, quase, quase sempre vinculado a ideias políticas ou éticas. Mas não há como negar que às vezes eram imagens puramente... monstruosas. Neste caso, basta citar uma história de uma página das Idées noires: dois homens passeiam por um trecho da cidade que mais se assemelha a um parque industrial, com viadutos, prédios em construção, gruas, plataformas. Um deles se queixa de que ali, antigamente, havia um bonito mercado, e que esse novo cenário destruiu o que havia de interessante na cidade. O outro, mais cético, fiz que ele está apenas cheio de nostalgias, e que o progresso é interessante, etc. A conversa avança até que o cético diz que ele está precisando mesmo é de um copo de vinho e uma boa noite de sonhos. Sem qualquer artifício para se fazer a passagem (letreiros, diálogos, mudança na moldura do quadro, etc.), Franquin então abre um gigantesco quadro panorâmico, fascinante, em que aquelas gruas, viadutos e plataformas erguem-se do chão, na forma de monstros, e começam a caminhar sobre a terra, povoando o sonho do coitado com um recalque indesejável.


Este imaginário onírico e certamente perturbado, que se assemelha ao de Goya justamente por não apenas dar vida, mas também por cultivar a vida dos monstros internos, é o que faz de Idées noires a obra-prima de Franquin. Uma obra-prima marcada por um tom macabro, impiedoso, quase irrefutável. E não estamos falando de qualquer autor, e sim daquele que escreveu a fase mais famosa de Spirou e criou Gaston Lagaffe (estátua dele aqui), símbolo dos quadrinhos na Bélgica.
Goya

Franquin
O pessimismo é um humanismo

Lagaffe
Se Spirou e Fantasio de Franquin é uma HQ mais infanto-juvenil mesmo, cheia de aventuras loucas e diálogos espertos, em Gaston Lagaffe já podemos reconhecer um pouco das ideias de Idées noires, porque já trazem um pouco do sabor do humor negro. Nas histórias do picareta Lagaffe, a estrutura mesma das páginas já se assemelha à das ideias obscuras: meia, uma ou no máximo duas páginas resumem tudo que precisa ser expressado, terminando geralmente numa explosão, em algum ato cômico de violência ou humilhação, e quase sempre num grande e expressivo quadro panorâmico. Da mesma forma, é em Gaston Lagaffe que Franquin vai criar a fórmula de inventar um ditado antecedendo cada história, geralmente no padrão “não se deve confundir essa coisa com essa outra coisa”, muitas vezes num trocadilho intraduzível do francês para o português (falando nisso: alô editoras – publiquem Idées noires no Brasil urgentemente!). Exemplo: “Il ne faut pas confondre pâle capitaine et peine capitale” (“Não se deve confundir ‘pálido capitão’ com ‘pena capital’”).

Mas o que é realmente fascinante em Idées noires é sua mistura curiosa de pessimismo e humanismo, numa concentração que nunca vi em nenhuma outra obra artística, o que (minha opinião) torna essa HQs quase crepuscular de Franquin tão interessante e ousada quanto as obras-primas citadas no primeiro parágrafo. Franquin era famoso por seu ativismo green e por sua defesa às causas dos direitos humanos, mas em Idées noires estes temas se tornam vinganças perversas. Vendedores acabam esquartejados por suas máquinas, militares passam a bombardear merda pelo mundo, imoladores de sangue humano em sacrifício à Terra passam a ver o planeta vomitar suas oferendas.

Franquin é particularmente virulento com a imagem da guilhotina, um tema delicado na França, que reverbera o da pena de morte. Numa das histórias, a lei é proclamada: “toda pessoa que matar uma outra voluntariamente terá sua cabeça decapitada”. Franquin vai fazer desta uma hilária imagem do infinito: burocratas passam a executar os assassinos “voluntários” na guilhotina. Então, depois disso, outro burocrata vem e decapita o burocrata (“assassino voluntário”) precedente, e assim por diante. Noutra, em três quadros (francamente inspirados em Rodolphe Töpffer) um velho reacionário olha uma passeata por direitos humanos pela janela e começa a praguejar, dizendo que sente saudades de quando ainda havia pena de morte e que, por ele, as execuções voltariam a ser públicas. No que, após ele dizer isso, no último quadro, a janela se rompe, se fecha e decapita o velhote.


                                                                         
O que mais me encanta em Idées noires, ainda assim, não são nem estas às vezes rasteiras, às vezes muito espertas, reflexões éticas, e sim o momento em que Franquin se transfigura nesse Goya doente, moribundo, pintando Cronos grotescamente devorando os próprios filhos assim que nascem. A “paleta de cores” usada pelo belga evidencia isso: preto e branco chapados, “só que ao contrário”. Assim, na maioria das ideias obscuras, o fundo é todo branco, e os desenhos todos pretos, sem muito delineamento de rostos ou detalhamentos, a não ser nas expressões, nos olhos, naquilo que basta. Quem conhece o traço de Franquin sabe que ele é mestre no estilo cômico gros nez, com fisionomias típicas da BD belga. Seus personagens são exagerados, com movimentos espalhafatosos, e geralmente descabelados, meio hippies, meio punks. Em Idées noires, isso também assume um aspecto sombrio, com um twist meio sádico, que de certa forma nos incomoda como aqueles super-heróis malvados em Crise nas infinitas terras.

 Creio que três exemplos resumem, por fim, a gratuidade genial do sadismo de Franquin nestas histórias: a de um sujeito caminhando só, na neve, morrendo de fome e desesperado, que avista as “luzes da civilização” e dá graças a deus. Porém, quando ele se aproxima mais, as “luzes da cidade” eram na verdade os olhos de mil lobos, que se revelam no último e grande quadro. Outra: a absurda história de um garotinho na praia que assusta as pessoas com uma barbatana falsa de turbarão. Ele é surpreendido no quadro final quando se atrai por uma outra garotinha que era na verdade... um boneco falso de ser humano usado por um tubarão (!!!) para atrair garotinhos... Por fim, uma das mais interessantes, e mais abstratas: um sujeito está correndo no espaço vazio quando uma grande pedra passa a descer em direção à cabeça dele, para esmagá-lo. Ele vai chegando, com pensamentos positivos, com máximas da força de vontade, quase chega, quase chega e, no último quadro, a pedra esmaga sua cabeça.

É este, portanto, o tom do humanismo de Franquin. Não diferente do de Mário de Andrade em Macunaíma: “cada um por si e deus contra todos”! Não é à toa que, ao nos despedirmos desta HQ, no deparamos com um carinha sorridente que diz: “quem me ame, que me siga!”. E ele vai em frente, seguido apenas por um urubu com más intenções. Se nem a degenerescência e nem a idade de Franquin eram físicas e avançadas como as de Goya, vale salientar que o velho pintor tinha seus motivos também políticos para se isolar numa velha casa e pintar monstruosidades mitológicas, já que estava realmente de saco cheio de fazer pinturas oficiais para a corte espanhola. No caso de Franquin, sua revolta contra o status quo (basicamente todo e qualquer discurso edificante de “progresso”) o fizeram voltar seu humanismo para algo próximo a um niilismo, fazendo da sua arte o único espaço em que ele podia soltar os cachorros e se vingar, com lindos requintes de crueldade, de todos aqueles “masters of war”. Viva o “lado negro da força”.


Sigam-me os bons!!

VIAGEM AO PAÍS DOS QUADRINHOS

por Ciro I. Marcondes
fotos por Gustavo Marcondes e Marcos Inácio Marcondes

Uma coisa que poucos sabem sobre a Bélgica (um país do tamanho do Estado de Alagoas) é que, além de ser uma terra famosa pelos chocolates, cervejas, diamantes e quadrinhos, ela é também o país com as garotas mais lindas do mundo. Sim, pode parecer surpreendente, afinal, ninguém nunca mencionou isso, mas isso é, aparentemente, o maior segredo dos belgas, guardado ao ar livre. Afinal, é difícil não se sentir encantado ao ser servido, com extrema cordialidade e simpatia, em qualquer lugar (no museu, nos cafés, no McDonald´s, ou simplesmente ao perguntar alguma informação a uma ruivinha andando de bicicleta), por uma criatura doce e feérica, de olhos verdes e cabelo naturalmente alaranjado. Você começa a sentir que entrou em um país de contos de fadas.

É por isso que não me surpreende que o belga Pierre Culliford (aka Peyo) tenha começado seu império nos quadrinhos, na animação e na cultura pop com um gibi sobre uma terra medieval encantada (Johann e Pirluit) que progressivamente se transformou num gibi sobre duendes azuis, os Schtroumpfs (aka Smurfs, dã). Estas informações também me lembram do quanto os belgas, apesar de serem uma cultura desconhecida e considerada derivativa, situada na Europa central, diferem dos europeus “canônicos” num aspecto essencial pra um turista: são simpáticos, poliglotas, gentis, parecem adorar sua presença, demonstram interesse em te conhecer.

Este pequeno panorama, que inclui charme, simpatia, credulidade e modéstia serve para entendermos o porquê de a Bélgica possuir uma cultura tão diversa e internalizada em seu diminuto território, e o porquê de eles serem tão aficcionados por uma cultura sólida e tradicional de quadrinhos, com várias obras-primas não traduzidas sequer para o inglês, sendo sua gigante influência sobre a HQ europeia referenciada sempre de forma tão tímida.

Um pouco de arquitetura dos Flandres

Tive a sorte de passar uma pequena temporada na Bélgica e tentar equacionar esses fatores todos que a tornam um destino tão peculiar às pessoas pacatas, ao devoto incontéstil de uma vida introspectiva, e a quem verdadeiramente ama as histórias em quadrinhos, claro. A Bélgica fica na região dos flandres, que se estende até a Holanda e que se distingue por uma arquitetura de cores quentes e rurais, de tijolinhos vermelhos, e que se moderniza numa art nouveau envidraçada e rococó, com florais de bronze, coisa fina e leve, irretocável. Apesar de a parte mais internacional e vigorosa da cultura de quadrinhos belga pertencer à influência francesa, parece mais enraizada essa secular ascendência flamenga. A Bélgica é um país bilíngue, mas é somente na capital, Bruxelas, que isso é realmente praticado na região dos flandres. Em todo o resto dos flandres, fala-se holandês (ou a língua flamenga, uma variação muito próxima do holandês) e eles preferem que você se comunique com eles em inglês, porque há o cultivo de uma certa rivalidade (voltarei a isso adiante) com a região de matriz francesa.

É por isso, por exemplo, que os belgas fazem a melhor cerveja do mundo (é verdade mesmo. Experimentei umas 30 marcas diferentes, de dupla ou tripla fermentação, ou estilo abadia, ou cervejas trapistas, ou cervejas de 12% de concentração alcoólica; enfim, uma visão do paraíso cervejeiro), uma coisa tão associada à Europa central, quando os franceses gostam mesmo é de beber vinho. E é essa proximidade tão grande com a cultura holandesa (eles têm até um próprio bairro da luz vermelha), com quem compartilham esse passado comum, que os faz serem também tão maconheiros! Em Bruxelas, eles meio que apertam seus baseados dentro dos cafés (vale até um Giraffas local qualquer), fumam na rua, na porta de entrada dos shows, e realmente não pareciam nem ligeiramente preocupados com qualquer intervenção policial.

Pintura flamenga e quadrinhos

Brueghel, o Velho: A queda dos anjos rebeldes, no Museu de Belas Artes de Bruxelas

Uma das possíveis origens para o entusiasmo dos belgas com os quadrinhos é a forte tradição flamenga (não, nada a ver com o time vagabundo regido a mão de ferro pela popularidade carnavalesca do Ronaldinho Gaúcho) nas artes visuais, e isso é certamente algo que belgas e holandeses têm muito que se orgulhar. Afinal, essa arte historicamente ocupa um epicentro de transformação entre a pintura gótico-medieval e o Renascimento italiano. Figuras como Brueghel, o velho, Jan Van Eyck, Rogier Van Der Weyden e, é claro, o estupor horrorizante de Bosch (quem não ficou pasmo ao observar os detalhes do Jardim das delícias?) foram responsáveis não apenas por desenvolver a tinta a óleo com que os italianos (Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael, enfim, todos que você ficou sabendo através das Tartarugas Ninja) revolucionaram a cultura ocidental, mas também por abordar pioneiramente a pintura da paisagem, os hábitos da vida do campesinato, e por introduzir, de maneira bem consciente, a ideia de que o feio e o grotesco poderiam ser um forte tipo de expressão com que a as artes poderiam se identificar. Escrevi, entre outras coisas, uma análise do quadro O triunfo da morte, de Brueghel, neste livro aqui, na página 294, caso haja interesse.

Guadglíneos?

Pra quem não sabe, a cultura de quadrinhos belga é tão antiga quanto os quadrinhos modernos em si, e as escolas desenvolvidas entre os anos 20-50 pelas revistas mix Tintim e Spirou não só geraram a influente escola francesa, como praticamente toda a cultura europeia de quadrinhos. Influência pouca não é bobagem, e não é à toa que uma cidade como Bruxelas tem estátuas de seus personagens espalhados pelas ruas, assim como paredes inteiras dos prédios pintadas com cenas de seus gibis. Além disso, os cafés das cidades belgas possuem pilhas de gibis para você pegar e ler distraidamente enquanto toma um chocolate quente ou uma cerveja.

Na época dos pintores flamengos, era comum que a cultura gótico-medieval já abordasse a narrativa visual seriada, e um pintor como Van Der Weyden é reconhecidamente um dos mestres da pintura em retábulos, em que cenas diferentes da paixão de Cristo ou outros motivos bíblicos eram pintados em diferentes quadros, alguns que se abriam como um livro, e que podiam ser entendidos como uma sequência interligada. Assim como os quadrinhos, os belgas amam sua tradição em pintura medieval, e em cada cidadezinha de 10 mil habitantes podem-se encontrar museus e obras destes mestres pioneiros. Isso sem falar na continuidade barroca e pós-renascentista trazida pelo antuérpio Peter Paul Rubens, um dos pintores mais influentes de todos os tempos.

Centre Belge da la Bande Dessinée

Art Nouveau

É por isso que, além de museus de arte flamenga e de instrumentos musicais (muito maneiros), há também um Centre Belge de la Bande Dessinée, ou o Museu Belga das Histórias em Quadrinhos, em Bruxelas. Logo na entrada do museu – um prédio envidraçado projetado pelo mestre da art nouveau Victor Horta – uma estátua de Gaston Lagaffe, o pai de todos os picaretas belgas, criado pelo genial André Franquin, nos lembra que aquele é um lugar amigável para o fã de quadrinhos. Já no hall de entrada, antes mesmo de pagar, nos deparamos com uma série de estátuas legais de personagens tradicionais da BD francobelga: os Schtroumpfs, várias coisas de Tintim (o foguete lunar, os personagens vestidos de astronautas, um busto em bronze), Lucky Luke, etc, além do carro vermelho vintage de Spirou todo pichado e desenhado pela nata histórica destes quadrinhos: Morris, Goscinny, Uderzo, Peyo, etc. Depois disso, o museu se divide em uma didática sessão sobre como as BDs são confeccionadas tradicionalmente, com rico material original, desde a concepção, os roteiros, o letreiramento, a coloração, a impressão, o marketing, enfim, todas as etapas da industrialização dos quadrinhos. Há dois salões de exposições temporárias (em um dos quais estava instalado um interessante panorama das HQs romenas) e, é claro, o andar principal, onde, entre escadarias e vãos de leveza art nouveau, podemos acompanhar, cronologicamente, entre estátuas, réplicas, brinquedos e instalações muito divertidas, toda a trajetória da BD belga (somente belga; nenhum artista francês é relacionado ali).

Neste andar principal, três tipos de subdivisão interessam. Em primeiro lugar, uma vasta e interativa sala toda dedicada ao personagem Tintim e ao seu criador, Hergé, com, além de ilustrações originais e modelos em escala humana, instrumentos de trabalho e painéis informativos ilustrados sobre o refinamento artístico, narrativo e humanístico do personagem, deslindando sua grande importância para a cultura das BDs. Com o lançamento do filme de Spielberg, os belgas, é claro, estavam em alvoroço, e o Tintim estava em toda parte.

Passando por esta sala de abertura, começamos a entender a concepção de curadoria do museu. A divisão das salas é mais ou menos cronológica e separada por autores (o primeiro deles é o pioneiro Jijé, criador do Spirou nos anos 30, tão importante, digamos, que também tinha um museu só pra ele em Bruxelas), mas estas salas (na verdade, elas funcionam como grandes divisórias de um labirinto de quadrinhos) são divididas em duas grandes estruturas pelo andar, separada por uma charmosa banca de jornal no modelo dos anos 40: de um lado, toda a história do semanário Spirou, com centenas de capas clássicas, e a trajetória ano a ano de seus editores. Do outro, a trajetória do jornal ou revista Tintim (ambas são revistas de variedades em quadrinhos e publicavam dezenas de personagens e autores diferentes), com as capas dispostas da mesma maneira.

Saindo, então, das salas que contam as histórias das revistas que, cultivando saudável rivalidade, permitiram o desenvolvimento da HQ belga, fica mais fácil e claro entender as salas dos próprios autores, dezenas deles, com várias páginas originais de cada, rascunhos, objetos pessoais, além de textos bastante ricos informando-nos a trajetória editorial do autor, suas influências, o método de criação, a concepção de seus personagens, sua popularidade, etc. Vale mencionar que as salas dos autores são personalizadas de acordo com suas criações. A sala de Franquin, por exemplo, é disposta como se fosse o escritório zoneado de Gaston Lagaffe, além de um corredor escuro que homenageia sua obra-prima tardia, as Idées noires. A de Morris se parece com um saloon que homenageia Lucky Luke, e assim por diante.

Acabei demorando-me um bocado de tempo nestas salas, procurando conhecer os muitos autores ali dos quais eu nunca ouvira falar, e foi uma pesquisa muito fértil. Foi possível entrar em contato, por exemplo, com Raymond Macherot e seu Sibylline, uma popular HQ de animais falantes, na melhor tradição Disney ou Pogo, que constrói inteligente comentário social a respeito da Europa nos anos 50-70. A sala de Macherot era decorada com modelos das árvores onde seus personagens vivem, com diminutas famílias arranjadas dentro dos troncos. Pude também dar uma olhada melhor no autor Maurice Tillieux e sua BD detetivesca Gil Jourdan. Por sorte, pude comprar versões compiladas, extremamente bem editadas, de todas as BDs que me interessaram. Coisas dos anos 40, 50 e 60, reeditadas em obras completas, mostrando o profundo respeito que os belgas devotam à sua tradição quadrinística.

Vale também mencionar a sala de Peyo. Além de originais e coisas de praxe, encontramos um mini-museu só dos Schtroumpfs, com modelos dos “edifícios” e construções dos Schtroumpfs.... em escala Schtroumpf. Há também uma grande tela de tinta a óleo com toda a vila dos Schtroumpfs pintada pelo próprio Peyo. Outras coisas de interesse estão na grande sala dedicada à BD Boule e Bill, de Jean Roba, uma história infantil muito simpática e popular, calvinesca, sobre um garotinho e seu cachorro, além de muitos outros personagens que já foram publicados até em português, como Alix (Jacques Martin), ou Le chat (Phillipe Gerluck).

Módulo Lunar (modelo) do Smurf Astronauta

Módulo Lunar de Tintim

Por fim, uma curiosidade substancial é a maneira como os autores que se originam da cultura dos flandres (e, portanto, são publicados em holandês) possuem um tratamento diferenciado no museu. Segundo o que o curador de um pequeno museu de música informou ao meu irmão na cidade da Antuérpia, basicamente a maioria dos belgas nos flandres se identifica com essa cultura, e a capital só fala francês graças a uma imposição de Napoleão após ter conquistado o país. A cultura francesa (obviamente também orgulhosa) na Bélgica, situada na região da Valônia, é bem mais pobre a marginalizada do que os ricos belgas de origem flamenga. Talvez isso explique por quê, no museu, os influentes autores flamengos ostentem os textos de curadoria em holandês acima dos textos em francês, ao contrário de todo o resto. Os principais nomes desses quadrinhos – Willy Vandersteen, chamado “verdadeiro criador da linha clara” e sua imensamente popular BD familiar Bob e Bobette; e Marc Sleen, criador de As aventuras de Nero – ocupavam espaço de grande destaque no salão central do museu. Depois, ao tentar comprar a HQ Nero e não encontrar nenhuma edição em francês (e carregando somente uma tradução em inglês nas mãos), perguntei pra velhinha que atendia na loja: “Nero em francês está em falta”? No que ela respondeu: “Não, isso nunca foi publicado em francês”. Oh, I guess I struck a nerve.

BD World

Acho que tudo que me esforcei para escrever com clareza acima dá uma ideia da complexidade cultural de um país com 30 mil km² e apenas 10 milhões de habitantes. Especialmente para os fãs de quadrinhos, é um tour que vale a pena. Tanto quanto chocolaterias (esqueci de dar algum destaque a isso, porque, ao contrário de 99% da população mundial, não gosto muito de chocolate), há um universo de lojas de quadrinhos na Bélgica, especialmente em Bruxelas. Cheguei a visitar umas 4 ou 5, afinal, o tempo era curto e tinha muita cerveja pra beber. Faço questão de destacar a BD World, uma loja labiríntica, com milhares de quadrinhos, atendida por duas preciosidades a quem eu não recusaria um pedido instantâneo de casamento; a Multi-BD, cujos atendentes são tão atenciosos que escrevem suas próprias mini-resenhas e colam junto às capas dos quadrinhos, classificando-as como “premiadas”, “favoritas da casa”, etc; e a própria loja instalada no museu, a Slumberland, franquia de uma megastore de quadrinhos que tem outras 5 ou 6 lojas espalhadas por Bélgica e França. A Slumberland é quase como uma Fnac só de quadrinhos, e praticamente somente quadrinhos francobelgas. Os comics americanos, aliás, parecem bastante desprezados pelo país. Pouco se vê deles pela Bélgica. Vou me abster apenas de falar no bizarro hábito de comer batatas fritas com maionese como se fosse cachorro-quente, e de dar mais detalhamento sobre a qualidade da mulher belga, primeiro para não entediar nossas leitoras, e segundo porque esta é uma qualidade que deixo à imaginação, e àqueles que se aventurarem para uma visita in loco.

Bruges, na Bélgica: você senta-se no café, pede um chocolate quente e pega um gibi pra ler.

Agradecimentos ao meu irmão Guga (verdadeira fanático por pintura flamenga, prestou ótima assessoria), meu irmão Quilk (que tirou a maioria das fotos) e ao colega Pedro Brandt (que morou na Bélgica e me informou alguns detalhes essenciais sobre o país).

O que são BDs? Pt.2


por Ciro I. Marcondes

Conforme vimos no primeiro post sobre a cultura da BD clássica, as revistas que coletavam jovens autores dos anos 40-60 na França e na Bélgica – Tintim e Spirou – foram responsáveis por uma verdadeira diáspora na europeização (especialmente francófona) das histórias em quadrinhos. E antes que a BD atingisse sua faceta adulta, erótica e delirante (herdeiros da Metal Hurlant), esses quadrinhos supostamente infantis foram responsáveis por construir um imaginário estilístico e temático: paródico, grotesco, cartunesco e especialmente denso em termos de humanidade para os personagens. Aqui, mais algumas BDs que se destacaram nesta trajetória.

1 – GASTON LAGAFFE – Franquin

André Franquin foi um dos mais geniosos artistas belgas a saírem do jornal/revista Spirou durante seu apogeu nos anos 50, e muito disso graças a uma transfiguração de si mesmo em seu personagem mais famoso, o gaffeur patético e picareta Gaston Lagaffe. Este personagem, que já nesta época transpirava o espírito de contradição entre o desejo de liberdade moderno e o andamento aborrecido e rotineiro no capitalismo avançado, tem interessante reverberação nas adoráveis comédias italianas de Mário Monicelli e Dino Risi. Franquin em princípio se destacou em história de jornal, de um página, conforme era costume nas HQs mundiais da primeira metade do século. Gaston ainda carregava a bandeira de ser um trabalho metalinguístico para as edições da revista Spirou, pois ele trabalha numa ficctícia redação da própria revista, não raro cruzando com outros personagens importantes da publicação, como o próprio Spirou e Fantasio.

De certa maneira, o humor aloprado e politicamente incorreto de Gaston, junto com a habilidade minuciosa de Franquin para desenhar expressões faciais e detalhes caricaturescos para seus personagens é que popularizou esta HQ como uma das mais avançadas de sua época. Gaston é uma espécie de “orêia-seca” da redação, folgado e preguiçoso, cuja importância resume-se basicamente em enviar a correspondência e consertar coisas. A intenção de mostrar um escritório como um ambiente insuportável e altamente procrastinável antecipam alguns dos produtos de humor contemporâneos mais refinados sobre o cotidiano do trabalho, como a série The office e o Vida de estagiário, do Alan Sieber. Tudo isso somado a um conjunto carismático de coadjuvantes e belas garotas (vela ressaltar a habilidade preciosa dos autores da BD clássica em desenhar adoráveis caricaturas da beleza feminina), além das aspirações desastrosas de Lagaffe em sair do detestável ambiente da redação tornando-se inventor (ainda não tão longe das aspirações dos jovens contemporâneos que trabalham em escritório), que geram ótimos plots. Acho que é motivo suficiente para considerar essa HQ um item obrigatório, especialmente se buscamos algo capaz de te conquistar em uma só página.


2 – SPIROU E FANTASIO – fase Janry e Tome

O personagem Spirou é uma criação tão antiga quanto o Super-Homem e foi um dos pilares tanto para a consolidação da editora Dupuis (fundada pelo visionário Charles Dupuis), quanto pela sobrevivência da Revista Spirou, quanto pelo crescimento da HQ franco-belga. Spirou é um simpático grumete (ajudante) de hotel, virtuoso e bem-intencionado, à maneira de Tintim, com o adicional de sua timidez ser um ingrediente irresistível a belas garotas. O coadjuvante Fantasio, um fotógrafo mais descolado e de arquétipo mais politicamente incorreto e malandro, foi criado já nos 40, e a série passou pelas mãos de vários mestres da BD belga, como Rob-Vel, Jijé e teve fase áurea nas mãos de Franquin. No nosso caso, vale destacar a fase mais contemporânea, desenvolvida ao longo de 20 anos pelo desenhista Janry (Jean-Richard Geurts) e pelo roteirista Tome (Phillipe Vandevelde). Nas mãos destes autores os personagens ganharam tom bem mais aventuresco e de espionagem, com interessantes doses de romance e erotismo. Considerando que Spirou e Fantasio é tradicionalmente uma HQ infantil, é admirável as fronteiras entre o mundo das crianças, dos adolescentes e dos adultos que a série quebra com elegância e precisão narrativa, sem insultar ou superestimar a inteligência infantil, tudo isso ajudado pelo fantástico e carismático talento gráfico de Janry. Os textos completos de Tome, cheios de referências interessantes e aprofundamentos narrativos à Will Eisner, conferem o selo de qualidade definitivo para esta fase da série. Como se já não bastasse, a dupla ainda é responsável pela série Le petit Spirou (“O pequeno Spirou”), uma acertada e lasciva versão infantil dos personagens, capaz de fazer os roteiristas de Turma da Mônica Jovem desejarem abandonar suas carreiras para prestar concurso público.

3 – LUCKY LUKE -  Morris e Goscinny

Antes do monstruoso e avassalador sucesso de Astérix, Goscinny – um dos grandes escritores de HQ da história – trabalhou com o não menos lendário desenhista Morris, da primeira leva de grandes autores belgas. O resultado, durante mais de dez anos, foram as incrivelmente famosas histórias do cowboy monossilábico Lucky Luke, que traziam o estilo errante e dramaticamente preciso de Goscinny ao traço mais fino e artístico de Morris. O resultado, mesmo que seja mais antiquado e menos arrojado que o posterior Asterix, é uma HQ histórica e fenomenal que se junta à vasta produção dos fumetti italianos e aos filmes de bangue-bangue spaghetti nos anos 70 como uma tentativa de a cultura europeia construir sua própria reflexão – dentro do pop, claro – de um universo e uma categoria artística exclusivamente americanos. A aproximação das culturas europeias com o distante mundo do velho-oeste curiosamente começa com um embargo de importação de gibis (anos 40) americanos durante e após a segunda guerra, obrigando os europeus a escreverem historia de bangue-bangue se quisessem ter contato com isso. Lucky Luke talvez seja um dos produtos mais bem-acabados dessa cultura, sendo ambiguamente entusiastas e críticos do passado norteamericano. Tantas as paisagens de Morris quanto os personagens de Goscinny são devedores e dignos renovadores do western clássico americano, amplificado porém por um senso de humor e um olhar cético típico da cultura francófona.

4 – UMPA-PÁ – Goscinny e Uderzo

Umpa-pá (Oumpah-pah) é de certa maneira um complementador de Lucky Luke e também um outro lado da inteligência quadrinística mostrada em Asterix por Goscinny. Mesmo que não tenha sido um grande sucesso como os anteriores, esta HQ parece subestimada mais por aspectos fortuitos do mercado e do timing do seu lançamento do que pela qualidade artística. Vamos falar sério: Umpa-pá foi criado na mesma época de Asterix, pelo mesmo escritor e mesmo desenhista. O apego imediato que o público francês e logo mundial teve pelo inigualável subtexto político de Asterix certamente ajudou não apenas a ignorar as histórias da América colonial de Umpa-pá como para fazer seus autores desistirem da publicação após 5 álbuns. O tempo, porém, sempre dá abertura às obras-primas, e hoje podemos ler a incrível alegoria colonial das histórias do guerreiro indígena Umpa-pá (um tipo escoteiro, que tem dificuldade em processar não só a cultura do homem branco, mas especialmente os entrecruzamentos sociais entre as culturas) como uma das visões mais antecipadoras (estamos falando dos anos 50) do debate humanista do multiculturalismo e do pós-colonialismo a partir dos anos 70. Muito antes que o cinema sonhasse em reverter as relações de poder cultural no passado colonial das américas, os quadrinhos investiam neste tema de maneira lúdica e ousada.

ESPANHA

O universo das HQs espanholas não é necessariamente tão próximo às BDs e ainda falta alguém aqui neste blog para fazer uma examinação mais completa deste vasto e desconhecido continente que são los cómics (mas estamos cuidando disso!). No entanto, com um acento mais mediterrâneo e traço mais grosseiro e rústico, é lógico que a mistura entre as fronteiras do cômico, do dramática, do realismo e do cartunesco, assim como a permuta entre mundos infantis, adolescente e adultos também influenciou HQs populares da Espanha, e cabe um pequeno comentário sobre uma delas:

5 – MORTADELO E SALAMINHO- Francisco Ibáñez

O temperamento ibérico e mediterrâneo dos espanhóis produz ótimos efeitos quando o modelo plural das BDs francófonas se adapta ao talento de Ibáñez, um dos grandes “magos del humor” das HQs de língua espanhola. Mortadelo e Salaminho (Mortadelo y Filemón) surgiram (1958) um pouco depois do esplendor da escola belga, mas pode-se dizer que está alinhado em um profundo movimento de renovação da HQs de línguas latinas. Os quadrinhos de Ibáñez, sobre dois agentes secretos insuperavelmente estúpidos, são recheados de chistes grosseiros e escatologia, além de piadas mais diretas e um vínculo bem direto com acontecimentos midiáticos, políticos e éticos que atravessam os anos junto com a série. Este apelo mais rústico de Mortadelo e Salaminho torna esta HQ menos poética e elegante que as BDs francófonas, mas Ibañez tem sua maneira de compensar com uma quadrinização hiper-meticulosa com belo trabalho em onomatopeias, linhas de movimento, hipérboles hilárias e insistente repetição de gags e cenas, apostando numa narrativa propositadamente irritante e neurótica.