Do registro indestrutível da memória: sobre Marjane Satrapi
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Após um pequeno hiato para que nosso time de redatores possa respirar, voltamos à ativa na Raio Laser com a estreia de mais uma querida colaboradora. A bola da vez é de Gabriela Sobral (blog dela aqui), jornalista, analista de comunicação e fã de quadrinhos. Gabi tem talento e sensibilidade para as narrativas eternamente (e ternamente) afetivas, e resolveu se debruçar um pouquinho sobre a obra da querida (em vários meios) quadrinista iraniana Marjane Satrapi. Esperamos, logo, mais colaborações da Gabi. Seja bem-vinda! (CIM)
por Gabriela Sobral
Por
causa de meu hobby mofado, assim que tive contato com a obra de Satrapi, senti
uma identificação imediata com a abordagem da quadrinista que mistura história,
histórias de vida e um resgate de suas experiências, pois a narrativa nada mais
é do que contar memórias, reais ou criadas.
Talvez a obra de Marjane comunique tanto por trabalhar com sentimentos
presentes nas consciências coletivas de muitas pessoas. Apesar de trabalhar mais propriamente a
realidade iraniana, conflitos sociais, repressão, retratos de governos
autoritários, conflitos familiares, imigração e questões existenciais são
temas que estão presentes na vida de várias nações. Além disso, em toda a sua obra
essas questões ‘macro’ são mostradas pela perspectiva privada, da convivência
familiar. Podemos perceber e entender o comportamento daquela realidade pelas
conversas das mulheres, enquanto tomam seus chás, pelas relações amorosas, pela
necessidade de liberdade, pela relação entre pais e filhos, pelo papel da
mulher naquela sociedade, etc.
Em Persépolis
encontramos uma obra mais profunda, com elementos que nos passam tanta verdade
que é difícil não se sentir sensibilizado com aquilo, em algumas passagens.
Contudo, em outras histórias, com um recorte mais específico, como Frango com
Ameixas e Bordados, encontramos situações mais esmiuçadas. Essas relações
entre quatro paredes fazem o leitor criar todo um imaginário emocional, capaz
de catalisar uma identificação com todas as experiências de Marjane, fazendo
com que o leitor se encontre, muitas vezes, com suas próprias memórias
familiares (pelo menos no meu caso).
Em Bordados vi isso quando encontrava
pontos de semelhança com aquela muralha de mulheres, que sempre me rodeou, falando
sobre sexo, virgindade, aflições e política, e eu sentia que estava ‘ventilando o
coração’ junto com as tias, avó e as amigas das avós de Marjane. Talvez essa ligação entre leitor e narrativa aconteça em cima de espaços e tempos que
não conseguimos definir ou localizar, uma vez que nossas memórias são
construídas entre emaranhados de lembranças e vivências de terceiros. De acordo
com Halbwachs, “sempre levamos em nós um certo número de pessoas inconfundíveis” e de histórias inconfundíveis, e isso
acaba, de alguma maneira, ficando inscrito em nós. Por mais que essas lembranças
pertençam à autora, são construídas e apoiadas pela coletividade, ou seja,
dentro de nossas cabecinhas. Dessa maneira, cada quadradinho se eterniza não só
no registro material – livro – mas no registro indestrutível – a memória.