Pinóquio das trevas

por Pedro Brandt

“A história a seguir é uma adaptação bastante livre do romance de Carlo Collodi”, avisa o roteirista e desenhista Winshluss antes da primeira pagina ilustrada de sua versão em quadrinhos para Pinóquio. Nas mãos deste artista francês (nascido Vincent Paronnaud, em 1970), a marionete que ganha vida não é de madeira e seu nariz não cresce se ele mentir. O boneco também não tem fada madrinha, um pai carinhoso preocupado com ele ou um grilo falante fazendo papel de consciência.

Se tanto a obra de Collodi quanto a animação feita a partir dela pelos estúdios Walt Disney pregavam lições visando o bom comportamento dos petizes, Winshluss apresenta em 183 páginas uma visão sombria do mundo que nada tem de conto de fadas. Uma publicação, definitivamente, não recomendado para crianças — mas indicada para quem quiser conhecer uma das mais impressionantes HQs francesas em anos recentes, vencedora do prêmio máximo no festival de Angoulême em 2009. À qualidade do conteúdo, soma-se o ótimo acabamento editorial, com capa dura, papel de alta gramatura, impressão impecável e uma adaptação muito bem-feita da tipografia original.



Com uma trajetória ainda curta nas histórias em quadrinhos, Winshluss é mais conhecido pela premiada versão em longa metragem de animação da HQ Persépolis (cuja autora, Marjane Satrapi, assina com ele a direção do filme). Essa relação com a sétima arte ajuda a entender a habilidade do francês como narrador visual. Boa parte de Pinóquio é contada com imagens, sem balões de fala — é com olhares, movimentos e expressões, acompanhados de diversos recursos gráficos, que ele comunica, com excepcional eficácia, ações, ideias e intenções. Os diálogos ficam reservados para as sequências (algumas, hilárias) estreladas por Jiminy Barata, o Grilo Falante da vez. O inseto, um escritor boêmio e em crise que mora na cabeça de Pinóquio, mais parece a cigarra preguiçosa da fábula de Jean de La Fontaine.

Autômato

Winshluss pontua a história com tramas paralelas, que vão se amarrando com o passar das páginas. O leitor é apresentado a intrigas, assassinatos, tráfico de órgãos e violência doméstica. O Pinóquio de Winshluss foi criado por um Gepeto que de bonzinho tem apenas a aparência. Feito de peças robôticas, o menino pode realizar de tarefas domésticas a ataques militares, mas é um autômato (aparentemente) sem vontade própria ou sentimento.

Solto no mundo, o protagonista é manipulado por todos que cruzam seu caminho. E são esses personagens — em geral, perversos, gananciosos ou perturbados — que vão guiando a história, caso da dupla de mendigos (um trapaceiro, outro cego e fanático religioso), do menino de rua que vira amigo de Pinóquio, do policial depressivo e alcoólatra, dos sete anões pervertidos, do monarca vaidoso e do industrial que explora trabalho infantil. Se tem uma lição que Winshluss dá com seu Pinóquio é que, no meio de tanta escuridão, só se chega à redenção com sentimentos puros.

Pinóquio
De Winshluss. 192 páginas. Editora Globo. Preço R$ 75.


Estripulias de Ba-Ba-Barbarella

por Ciro I. Marcondes

E eis que chega às minhas mãos, via Pedro Brandt, um exemplar de Barbarella chamado “A obra-prima” (de 1977), numa simpática edição portuguesa da Meriberica/Liber (original da belga Dargaud), escrita e desenhada por ninguém menos que o criador da beldade, o francês Jean-Claude Forest. Ler uma Barbarella original é uma experiência muito legal por dois motivos: primeiro, porque a heroína surgiu em 1962, antes, por exemplo, da Valentina, e desde então se tornou citação preferida das feministas, enquanto ícone da cultura pop representando a mulher que utiliza sua sexualidade em prol de uma libertação sociopolítica. Em segundo lugar, sendo fã do filme de Roger Vadim (1968), pensava se valeria a pena buscar uma comparação da musa nos quadrinhos com sua sensacional e apimentada encarnação vivida por uma jovem e exuberate Jane Fonda (fiquem aí com o sensacional strip-tease da abertura). 

A obra-prima (Le semble-Lune) é o terceiro, dentre quatro, volumes publicados por Forest, que deixou um legado enxuto, mas respeitável. A história se alterna num mundo de “tempos imovíveis”, dentro do sonho, à maneira do Andarilho dos limbos (já comentada aqui), misturando fantasia espacial, multidimensional, e uma ficção-científica tão pulp que é capaz de considerar o ano-luz uma unidade de tempo, e não de distância (para se ter uma ideia do nível das techno bubbles, basta dar uma sacada nessa fala: “meu mastacrac atirou-o para fora do U.P. 1.000 e espalhou-o pelo mundo infinito dos antimundos”). Muito curiosamente, esse ambiente maluco e inverossímil ganha tons de comédia, quase num estilo pornochanchada, quando uma sexualidade explosiva, muito mais que latente, vai se infiltrando de um jeito desavergonhado, e os personagens vão fodendo, assim, quase que naturalmente, enquanto decisões insanas são tomadas, daquelas que colocam “os multiversos” em risco.

Vejamos em mais detalhes esse plot: Barbarella é convocada por dois sujeitos com aspecto de cientistas malucos para, por meio de uma máquina (sempre as máquinas – e como não lembrar do saudoso orgasmatron, que faz parte do universo da heroína), entrar nos sonhos do grande construtor Browningwell – alterego do autor –, que jaz hibernando, e descobrir o enorme segredo que ele guarda. Barbarella concorda, é claro, mas apenas se puder tirar a roupa (pois sente calor!), e desperta num mundo de fantasias (todos os sentidos). Em contato com o introspectivo e mau-humorado (ainda que irresistivelmente sedutor) Browningwell, Barbarella percebe-se vítima de uma conspiração dos cientistas malucos e opta por ficar no mundo dos sonhos. Lá, ela vai ajudar Browningwell a vencer um concurso de esculturas cósmicas (os “obras-primas” – sendo a primeira delas bem parecida com a “estrela da morte” de George Lucas), cujo construtor do primeiro colocado leva um sistema estelar inteiro de prêmio. Browningwell quer muito levar esse prêmio porque, diz ele, os milhões de inocentes do sistema solar não podem cair nas mãos do construtor-crápula inescrupuloso que é seu maior rival.

Vixen

dona de casa

A história, como se vê, é um enorme blá-blá-blá sem sentido em que observamos Barbarella, sempre semi-nua (ou completamente), sendo levada de um lado para o outro, como um estorvo ou ameaça diante de todos com quem se mete. O legal é que a ameaça é sempre sua seuxalidade. Os “companheiros” da espécie de sindicato que faz as obras-primas chegam a chamá-la “aquela mulher vinda do universo intermédio, com seus baixos instintos e maneiras suspeitas”. A delicada questão surge quando, afinal de contas, a pergunta inevitável martela a cabeça: “afinal, o que tem de feminista em uma mulher sendo manipulada, física e psicologicamente, por um monte de homens conspiratórios, de ‘gênio brilhante’, empenhados em conceber uma obra-prima, de intelecto tão masculino”? Ora, vamos considerar que estamos em 1977 e Barbarella escolhe (ao bel-prazer, exclusivamente) seus parceiros sexuais. Vamos considerar, também, o engenho, meio chanchadesco-pornô-dos-70s, do final da história. Impossível não lembrar Russ Meyer, sendo Barbarella a definitiva vixen: após manifestar interesse em construir também sua obra-prima e ser ridicularizada e rechaçada por Browningwell, a heroína decide “recolher-se” ao seu “lugar feminino” e passa apenas a trabalhar limpando a nave do construtor (chegamos a vê-la usando um aspirador de pó futurista – para depois usá-lo, de outra forma, com Browningwell). Depois, ela decide refugiar-se num planeta de beleza natural enquanto o criador completa sua obra-prima.

Machismo/Feminismo: ambiguidade

Nesta passagem, vemos Barbarella gestando um filho. Quando o construtor retorna, o filho é usado como arma pela heroína, que não esconde suas antigas “desvantagens” (a “fragilidade sexual” e a maternidade) como estratégias de conquista do poder sobre os homens e em especial sobre o homem mais poderoso de “todos os multiversos”. Interessante mesmo é a concepção de que obra-prima masculina é produto da tecnologia e do intelecto humanos, enquanto a obra-prima feminina (colocada, vamos ser justos, em patamar de igualdade na HQ) é a própria obra do instinto, do furor animal: a gestação em si, a reprodução, a continuidade da espécie. Dona da continuidade da espécie, a mulher (no caso, Barbarella) assume o destino do casal e o comando da história. Ainda que passível de crítica, esse é a ambiguidade entre machismo e feminismo que compõe o universo da heroína.

No final das contas, ler esta velocíssima pequena saga de Barbarella, a despeito de seu aspecto barato e tosco, é uma experiência divertida e até fulgurante. A arte e quadrinização de Forest não fica muito à frente da de um Zéfiro, mas é esse aspecto de coisa pra se jogar no lixo que torna seu significado social ainda mais potente. Não é todos os dias que se vê um produto tão despretensioso levantar uma questão tão contraditória, interessante e relevante de maneira tão leve e natural. A sexualidade, o sexismo, os padrões de comportamento social, os preconceitos, chistes e todo tipo de atividade saudável (ou não) da nossa intimidade no século 20 são trazidos de forma absolutamente irreverente e sagaz nesta história. Além disso, o jeito pulp da HQ até contribui para deixar tudo mais sedutor de uma forma meio perversa, meio escondida, mais sacana ainda. E a Barbarella, apesar do traço meio grosseiro, é gostosa, reconheçamos. Jane Fonda teve, em seu avatar original, curvas logisticamente engrenadas para inspirá-la para o irretocável e safadinho filme de Vadim.

A "Estrela da Morte" de Forest Vale lembrar, nesse contexto todo que envolve coisas tão díspares – humor non-sense, erotismo sacana e ficção científica –, o quanto a cultura das BDs pode ser surpreendente, seja na ambição megalítica (praticamente usandos os mesmos elementos) de um Druillet ou de um Moebius, seja na despretensão acolhedoura de um Forest. Observando ao mesmo tempo o corpus comum de temas e a variedade de histórias e abordagens realizados neles, percebemos que a BD é ainda exemplo irretocável de como culturas completas e longevas, tradicionais e de ruptura (às vezes, tudo ao mesmo tempo) podem emergir da história das histórias em quadrinhos. 

Fantasia cotidiana






















por Pedro Brandt

O prêmio de revelação dado em 2009 a Bastien Vivès no Festival de Angoulême — evento francês dentre os mais relevantes para as histórias em quadrinhos na Europa — colocou em evidência o talento do jovem autor e da obra pela qual ele foi premiado na ocasião, O gosto do cloro (Le goût du chlore). Publicada originalmente em 2008, ela acaba de chegar ao Brasil pelo selo Barba Negra (ligado à editora Leya). Independente de distinções e honrarias, o trabalho merece ser conhecido por seus méritos próprios. É, desde já, um dos melhores lançamentos do ano.


Se o leitor quiser chegar logo ao final da história, consegue passar pelas 140 páginas em 15, 20 minutos. No entanto, cada uma delas é um deleite visual, permitindo uma leitura mais demorada, atenciosa e, consequentemente, mais prazerosa. Todo os elementos apresentados ali são preciosos, desde a escolha das cores (o verde e o cinza, em diversos tons, estão em toda parte), as angulações das cenas, as expressões dos personagens e, especialmente, como o desenhista consegue causar a sensação da passagem do tempo ao longo da narrativa. Os silêncios e tempos mortos são detalhes muito bem explorados pelo autor. Isso talvez se explique pala formação de Bastien Vivès: o francês de 28 anos é graduado em artes plásticas e cinema de animação. Se ele quiser transformar O gosto de cloro em curta-metragem, já tem pronto um minucioso story board.

Amizade na água

Em nenhum momento da HQ são apresentados os nomes dos personagens e as informações sobre eles são praticamente inexistentes. Nem precisaria ser diferente, já que no desenrolar da breve história os poucos diálogos são o suficiente para causar empatia.

A HQ começa em uma sessão de fisioterapia. O protagonista é aconselhado a praticar natação para melhorar seu problema nas costas. A pouca habilidade para nadar, a solidão na piscina (e o tédio decorrente dela) fazem com que ele pense em desistir.

 A situação muda quando o personagem finalmente conhece uma nadadora. O rapaz já a observava havia algum tempo. A moça o ajuda com dicas sobre natação. Ele quer conhecer um pouco mais sobre ela, faz perguntas. Ali na piscina, nasce uma amizade. Eles brincam, nadam e conversam. A natação, antes um fardo, ganha outra dimensão na rotina do protagonista.

A partir de um determinado momento na narrativa, preencher as lacunas deixadas por Bastien Vivès fica a cargo do leitor. Um relato bastante cotidiano até então, O gosto do cloro ganha, nas últimas 21 páginas, leves ares de fantasia. A sequência final — que pode ser encarada como uma metáfora sobre o inalcançável — é de tirar o fôlego, literalmente.

O gosto do cloro
De Bastien Vivès. 144 páginas. Barba Negra/ Leya. R$ 39,90.

HQ em um quadro: Zarla, a guerreira impiedosa, de aspecto a aspecto, por Guilhem e Janssens






















O movimento ameaçador da garotinha (Jean-louis Janssens e Guilhem Bec, 2007): Zarla, guerrière impitoyable é uma BD bastante genérica publicada pela Dupuis, a mais tradicional editora belga de HQs, em 2007. Seu enredo consiste numa tentativa da editora de misturar o mundo tão específico das HQs de fantasia medieval com a tradição, própria da Dupuis, de criar personagens bastante humanos e cativantes, que se misturam a meios tradicionais da ficção fantástica. O que ela faz na narrativa detetivesca em Spirou e Fantasio, ou com o folk lore em Schtroumpfs, são exemplos. Zarla é uma garotinha, filha de caçadores (hoje mortos) de dragões, criada por um velho bruxo e uma sevente giganta. Ela herda também a arma principal dos caçadores de dragões - um cão demoníaco e enfeitiçado, chamado Hydromel, que a acompanha como um bicho preguiçoso, mas que se transforma num guerreiro assustador quando Zarla se encontra em perigo (salvando-a sem que ela perceba).  

Zarla é uma HQ muito simpática, com traço encantador (Guilhem) e doses corretas de humor e aventura. É um produto infantil. Mas, à parte a sugestão de um produto de qualidade nesta categoria, eu gostaria de salientar como, de uma hora pra outra, os quadrinhos simplesmente abrem tudo que podem, num vortex vertiginoso, do modo como é descrito naquele belo poema de Drummond "A máquina do mundo", ou aquele assombroso conto de Borges, "O Aleph": um sistema todo se abre diante de nós, num momento, num átimo, numa condensação onírica - e depois se fecha, levando-nos a esquecer aquela epifania, relegando-nos novamente à burocrática passagem do tempo, a separar as coisas umas das outras, a tentar decodificá-la a partir de tedioso sistema classificatório.

Quando, num acesso de movimentação espacial entrecortado por pouquíssima passagem de tempo - aquilo que McLoud chama "transição de aspecto-para-aspecto" - , Zarla parece apenas a indefesa garotinha que pressupõe a série, e implora ao inimigo que não a faça mal, e então, num rompante, perfeitamente inscrito na sarjeta entre um quadro e outro, a menininha loira desatina sua farsa e diz "e tome isso!", empunhando uma pequena e frágil espadinha, quando isso acontece, nós nos convencemos, neste movimento sugerido, de todo o conceito da série. Se há algo de essencial, digamos, no próprio briefing que deve ter dado origem a esta série, isso deve ser a oposição entre a candidez inocente da menininha, acreditando que todos fogem dela, e não do cão-demônio, e a postura irascível e amedrontadora que ela assume, ao se portar com absoluta certeza de ser uma guerreira completa. Se é uma dicotomia, se é uma oposição paradoxal, se uma infeliz ironia, isso tudo se submete ao poder imagético da alegoria. A alegoria que tão bem se repousa na imagem. Imagem que tão bem se debruça nos quadrinhos. Quadrinhos que são capazes de sintetizar, num movimento tão sutil, o cosmos conceitual todo do produto a que dão suporte. Nesta simples sarjeta rastreada de uma HQ absolutamente ordinária, não apenas a série se abriu toda, sem possibilidade de ser convencida do contrário, como também o sistema representacional das HQs, tão distante das palavras e letras da literatura, em tudo racionais, explicativas, que se alongam tanto, e condensam tão pouco. Difícil não pensar num Aleph esotérico: Zarla empunhando a espada me levou à Mona Lisa, às pinturas góticas, às cavernas de Lascaux, aos sonhos de toda humanidade. (CIM)

Fantasmas de Lucille


























Uma nova colaboradora desponta na Raio Laser! Trata-se de Roberta Machado, jornalista e colega do nosso querido Pedro no Correio Braziliense. Roberta tem um texto de perfil analítico e literário. Nada melhor para quem quer romper certas fronteiras, levando os quadrinhos... além. (CIM)

por Roberta Machado

Embora seja uma ficção, a natureza dos dramas narrados em Lucille mais se assemelha à série de histórias biográficas que impulsionaram a venda das graphic novels nas livrarias nos últimos anos. A vida da adolescente que dá título à obra poderia ser de qualquer garota. Assim como muitas anônimas, a estudante francesa sofre entre a rejeição que tem por si mesma e a desaprovação que imagina ter dos outros. A situação da protagonista agrava-se devido à anorexia suicida causada por um trauma de infância.

Sob o traço econômico e fluido de Ludovic Debeurme, Lucille é uma garota de baixa autoestima, que ora tenta parecer normal para obter a aprovação dos outros, ora se esconde sob um grande par de óculos e uma postura derrotista. Em vez de se enturmar com os colegas, ela opta por ignorar os apelos da mãe e usar a timidez como desculpa para escapar num mundo de fantasia. Ela vê nas amigas e na boneca Linda o estereótipo de beleza e felicidade que almeja por meio da fome.


Mas é graças ao distúrbio alimentar que Lucille conhece Arthur, garoto ainda mais perturbado que ela. Entre o alcoolismo do pai e a indiferença da mãe, o adolescente se vê obrigado a sustentar a família, apesar da imaturidade. Para ele, a magreza exagerada de Lucille é bela, e diferente de toda a instabilidade de sua vida de garoto pobre e desajustado. Assim como a protagonista tenta controlar seus problemas pulando refeições, a confusão na vida de Arthur resultou num transtorno obsessivo compulsivo. Os dois encontram conforto nas loucuras do outro.

Os cenários são suprimidos na maioria das páginas, e as linhas dos quadros que geralmente limitam as ações das graphic novels não estão presentes na história. O estilo aponta o verdadeiro objetivo de Debeurme: onde estão os personagens, o que estão fazendo, nada disso importa. A narrativa é sobre o que eles sentem e pensam. O leitor é levado a uma viagem ao subconsciente desses dois jovens, traumatizados ainda na flor da idade. Mesmo quem não se identifica com os problemas vividos pelos protagonistas nessa viagem de autoconhecimento pode tirar da história alguma reflexão sobre os próprios conflitos.

Na jornada dos dois adolescentes, o interessante é observar as mudanças sutis que eles sofrem. Lucille deixa a inocência para se tornar uma mulher bonita, pois é assim que Arthur a vê. Já o garoto transborda confiança e supera o medo da responsabilidade ao assumir naturalmente o papel protetor da amada, mesmo que agindo muitas vezes de forma impensada. Debeurme disse em entrevistas que as transformações pelas quais os personagens passam foram espontâneas: ele desenhou a história sem planejá-la, descobrindo aos poucos os rumos da trama.

Lucille é um livro que alterna o drama, entre momentos de tensão como brigas e assassinatos, com reflexão, que mostra os dilemas psicológicos dos adolescentes. A exposição dos pensamentos mais profundos dos personagens, no entanto, são mais capazes de tirar o fôlego que as cenas em que a ação de fato se desenrola. Sem necessidade de ganchos previsíveis para manter o interesse do leitor, o ritmo do romance francês flui  de forma natural, o que torna fácil devorar as mais de 500 páginas de uma só vez.

Ludovic Debeurme conquistou diversos prêmios com ajuda de Lucille. Entre eles, o destaque no Festival de Angoulème, festa icônica dos quadrinhos que acontece todos os anos na França. O sucesso internacional da obra — que o levou pela primeira vez às livrarias norte-americanas — garantiu a produção de uma sequência, lançada na França em agosto. A nova história, batizada de Renée, exibe traço muito mais rebuscado que sua antecessora, e trabalha a psique dos personagens de forma ainda mais onírica e perturbadora.

Lucille
De Ludovic Debeurme. 544 páginas. Editora Leya. R$ 54,90.

Este texto foi publicado originalmente no Correio Braziliense, no dia 06/02/12.

VIAGEM AO PAÍS DOS QUADRINHOS

por Ciro I. Marcondes
fotos por Gustavo Marcondes e Marcos Inácio Marcondes

Uma coisa que poucos sabem sobre a Bélgica (um país do tamanho do Estado de Alagoas) é que, além de ser uma terra famosa pelos chocolates, cervejas, diamantes e quadrinhos, ela é também o país com as garotas mais lindas do mundo. Sim, pode parecer surpreendente, afinal, ninguém nunca mencionou isso, mas isso é, aparentemente, o maior segredo dos belgas, guardado ao ar livre. Afinal, é difícil não se sentir encantado ao ser servido, com extrema cordialidade e simpatia, em qualquer lugar (no museu, nos cafés, no McDonald´s, ou simplesmente ao perguntar alguma informação a uma ruivinha andando de bicicleta), por uma criatura doce e feérica, de olhos verdes e cabelo naturalmente alaranjado. Você começa a sentir que entrou em um país de contos de fadas.

É por isso que não me surpreende que o belga Pierre Culliford (aka Peyo) tenha começado seu império nos quadrinhos, na animação e na cultura pop com um gibi sobre uma terra medieval encantada (Johann e Pirluit) que progressivamente se transformou num gibi sobre duendes azuis, os Schtroumpfs (aka Smurfs, dã). Estas informações também me lembram do quanto os belgas, apesar de serem uma cultura desconhecida e considerada derivativa, situada na Europa central, diferem dos europeus “canônicos” num aspecto essencial pra um turista: são simpáticos, poliglotas, gentis, parecem adorar sua presença, demonstram interesse em te conhecer.

Este pequeno panorama, que inclui charme, simpatia, credulidade e modéstia serve para entendermos o porquê de a Bélgica possuir uma cultura tão diversa e internalizada em seu diminuto território, e o porquê de eles serem tão aficcionados por uma cultura sólida e tradicional de quadrinhos, com várias obras-primas não traduzidas sequer para o inglês, sendo sua gigante influência sobre a HQ europeia referenciada sempre de forma tão tímida.

Um pouco de arquitetura dos Flandres

Tive a sorte de passar uma pequena temporada na Bélgica e tentar equacionar esses fatores todos que a tornam um destino tão peculiar às pessoas pacatas, ao devoto incontéstil de uma vida introspectiva, e a quem verdadeiramente ama as histórias em quadrinhos, claro. A Bélgica fica na região dos flandres, que se estende até a Holanda e que se distingue por uma arquitetura de cores quentes e rurais, de tijolinhos vermelhos, e que se moderniza numa art nouveau envidraçada e rococó, com florais de bronze, coisa fina e leve, irretocável. Apesar de a parte mais internacional e vigorosa da cultura de quadrinhos belga pertencer à influência francesa, parece mais enraizada essa secular ascendência flamenga. A Bélgica é um país bilíngue, mas é somente na capital, Bruxelas, que isso é realmente praticado na região dos flandres. Em todo o resto dos flandres, fala-se holandês (ou a língua flamenga, uma variação muito próxima do holandês) e eles preferem que você se comunique com eles em inglês, porque há o cultivo de uma certa rivalidade (voltarei a isso adiante) com a região de matriz francesa.

É por isso, por exemplo, que os belgas fazem a melhor cerveja do mundo (é verdade mesmo. Experimentei umas 30 marcas diferentes, de dupla ou tripla fermentação, ou estilo abadia, ou cervejas trapistas, ou cervejas de 12% de concentração alcoólica; enfim, uma visão do paraíso cervejeiro), uma coisa tão associada à Europa central, quando os franceses gostam mesmo é de beber vinho. E é essa proximidade tão grande com a cultura holandesa (eles têm até um próprio bairro da luz vermelha), com quem compartilham esse passado comum, que os faz serem também tão maconheiros! Em Bruxelas, eles meio que apertam seus baseados dentro dos cafés (vale até um Giraffas local qualquer), fumam na rua, na porta de entrada dos shows, e realmente não pareciam nem ligeiramente preocupados com qualquer intervenção policial.

Pintura flamenga e quadrinhos

Brueghel, o Velho: A queda dos anjos rebeldes, no Museu de Belas Artes de Bruxelas

Uma das possíveis origens para o entusiasmo dos belgas com os quadrinhos é a forte tradição flamenga (não, nada a ver com o time vagabundo regido a mão de ferro pela popularidade carnavalesca do Ronaldinho Gaúcho) nas artes visuais, e isso é certamente algo que belgas e holandeses têm muito que se orgulhar. Afinal, essa arte historicamente ocupa um epicentro de transformação entre a pintura gótico-medieval e o Renascimento italiano. Figuras como Brueghel, o velho, Jan Van Eyck, Rogier Van Der Weyden e, é claro, o estupor horrorizante de Bosch (quem não ficou pasmo ao observar os detalhes do Jardim das delícias?) foram responsáveis não apenas por desenvolver a tinta a óleo com que os italianos (Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael, enfim, todos que você ficou sabendo através das Tartarugas Ninja) revolucionaram a cultura ocidental, mas também por abordar pioneiramente a pintura da paisagem, os hábitos da vida do campesinato, e por introduzir, de maneira bem consciente, a ideia de que o feio e o grotesco poderiam ser um forte tipo de expressão com que a as artes poderiam se identificar. Escrevi, entre outras coisas, uma análise do quadro O triunfo da morte, de Brueghel, neste livro aqui, na página 294, caso haja interesse.

Guadglíneos?

Pra quem não sabe, a cultura de quadrinhos belga é tão antiga quanto os quadrinhos modernos em si, e as escolas desenvolvidas entre os anos 20-50 pelas revistas mix Tintim e Spirou não só geraram a influente escola francesa, como praticamente toda a cultura europeia de quadrinhos. Influência pouca não é bobagem, e não é à toa que uma cidade como Bruxelas tem estátuas de seus personagens espalhados pelas ruas, assim como paredes inteiras dos prédios pintadas com cenas de seus gibis. Além disso, os cafés das cidades belgas possuem pilhas de gibis para você pegar e ler distraidamente enquanto toma um chocolate quente ou uma cerveja.

Na época dos pintores flamengos, era comum que a cultura gótico-medieval já abordasse a narrativa visual seriada, e um pintor como Van Der Weyden é reconhecidamente um dos mestres da pintura em retábulos, em que cenas diferentes da paixão de Cristo ou outros motivos bíblicos eram pintados em diferentes quadros, alguns que se abriam como um livro, e que podiam ser entendidos como uma sequência interligada. Assim como os quadrinhos, os belgas amam sua tradição em pintura medieval, e em cada cidadezinha de 10 mil habitantes podem-se encontrar museus e obras destes mestres pioneiros. Isso sem falar na continuidade barroca e pós-renascentista trazida pelo antuérpio Peter Paul Rubens, um dos pintores mais influentes de todos os tempos.

Centre Belge da la Bande Dessinée

Art Nouveau

É por isso que, além de museus de arte flamenga e de instrumentos musicais (muito maneiros), há também um Centre Belge de la Bande Dessinée, ou o Museu Belga das Histórias em Quadrinhos, em Bruxelas. Logo na entrada do museu – um prédio envidraçado projetado pelo mestre da art nouveau Victor Horta – uma estátua de Gaston Lagaffe, o pai de todos os picaretas belgas, criado pelo genial André Franquin, nos lembra que aquele é um lugar amigável para o fã de quadrinhos. Já no hall de entrada, antes mesmo de pagar, nos deparamos com uma série de estátuas legais de personagens tradicionais da BD francobelga: os Schtroumpfs, várias coisas de Tintim (o foguete lunar, os personagens vestidos de astronautas, um busto em bronze), Lucky Luke, etc, além do carro vermelho vintage de Spirou todo pichado e desenhado pela nata histórica destes quadrinhos: Morris, Goscinny, Uderzo, Peyo, etc. Depois disso, o museu se divide em uma didática sessão sobre como as BDs são confeccionadas tradicionalmente, com rico material original, desde a concepção, os roteiros, o letreiramento, a coloração, a impressão, o marketing, enfim, todas as etapas da industrialização dos quadrinhos. Há dois salões de exposições temporárias (em um dos quais estava instalado um interessante panorama das HQs romenas) e, é claro, o andar principal, onde, entre escadarias e vãos de leveza art nouveau, podemos acompanhar, cronologicamente, entre estátuas, réplicas, brinquedos e instalações muito divertidas, toda a trajetória da BD belga (somente belga; nenhum artista francês é relacionado ali).

Neste andar principal, três tipos de subdivisão interessam. Em primeiro lugar, uma vasta e interativa sala toda dedicada ao personagem Tintim e ao seu criador, Hergé, com, além de ilustrações originais e modelos em escala humana, instrumentos de trabalho e painéis informativos ilustrados sobre o refinamento artístico, narrativo e humanístico do personagem, deslindando sua grande importância para a cultura das BDs. Com o lançamento do filme de Spielberg, os belgas, é claro, estavam em alvoroço, e o Tintim estava em toda parte.

Passando por esta sala de abertura, começamos a entender a concepção de curadoria do museu. A divisão das salas é mais ou menos cronológica e separada por autores (o primeiro deles é o pioneiro Jijé, criador do Spirou nos anos 30, tão importante, digamos, que também tinha um museu só pra ele em Bruxelas), mas estas salas (na verdade, elas funcionam como grandes divisórias de um labirinto de quadrinhos) são divididas em duas grandes estruturas pelo andar, separada por uma charmosa banca de jornal no modelo dos anos 40: de um lado, toda a história do semanário Spirou, com centenas de capas clássicas, e a trajetória ano a ano de seus editores. Do outro, a trajetória do jornal ou revista Tintim (ambas são revistas de variedades em quadrinhos e publicavam dezenas de personagens e autores diferentes), com as capas dispostas da mesma maneira.

Saindo, então, das salas que contam as histórias das revistas que, cultivando saudável rivalidade, permitiram o desenvolvimento da HQ belga, fica mais fácil e claro entender as salas dos próprios autores, dezenas deles, com várias páginas originais de cada, rascunhos, objetos pessoais, além de textos bastante ricos informando-nos a trajetória editorial do autor, suas influências, o método de criação, a concepção de seus personagens, sua popularidade, etc. Vale mencionar que as salas dos autores são personalizadas de acordo com suas criações. A sala de Franquin, por exemplo, é disposta como se fosse o escritório zoneado de Gaston Lagaffe, além de um corredor escuro que homenageia sua obra-prima tardia, as Idées noires. A de Morris se parece com um saloon que homenageia Lucky Luke, e assim por diante.

Acabei demorando-me um bocado de tempo nestas salas, procurando conhecer os muitos autores ali dos quais eu nunca ouvira falar, e foi uma pesquisa muito fértil. Foi possível entrar em contato, por exemplo, com Raymond Macherot e seu Sibylline, uma popular HQ de animais falantes, na melhor tradição Disney ou Pogo, que constrói inteligente comentário social a respeito da Europa nos anos 50-70. A sala de Macherot era decorada com modelos das árvores onde seus personagens vivem, com diminutas famílias arranjadas dentro dos troncos. Pude também dar uma olhada melhor no autor Maurice Tillieux e sua BD detetivesca Gil Jourdan. Por sorte, pude comprar versões compiladas, extremamente bem editadas, de todas as BDs que me interessaram. Coisas dos anos 40, 50 e 60, reeditadas em obras completas, mostrando o profundo respeito que os belgas devotam à sua tradição quadrinística.

Vale também mencionar a sala de Peyo. Além de originais e coisas de praxe, encontramos um mini-museu só dos Schtroumpfs, com modelos dos “edifícios” e construções dos Schtroumpfs.... em escala Schtroumpf. Há também uma grande tela de tinta a óleo com toda a vila dos Schtroumpfs pintada pelo próprio Peyo. Outras coisas de interesse estão na grande sala dedicada à BD Boule e Bill, de Jean Roba, uma história infantil muito simpática e popular, calvinesca, sobre um garotinho e seu cachorro, além de muitos outros personagens que já foram publicados até em português, como Alix (Jacques Martin), ou Le chat (Phillipe Gerluck).

Módulo Lunar (modelo) do Smurf Astronauta

Módulo Lunar de Tintim

Por fim, uma curiosidade substancial é a maneira como os autores que se originam da cultura dos flandres (e, portanto, são publicados em holandês) possuem um tratamento diferenciado no museu. Segundo o que o curador de um pequeno museu de música informou ao meu irmão na cidade da Antuérpia, basicamente a maioria dos belgas nos flandres se identifica com essa cultura, e a capital só fala francês graças a uma imposição de Napoleão após ter conquistado o país. A cultura francesa (obviamente também orgulhosa) na Bélgica, situada na região da Valônia, é bem mais pobre a marginalizada do que os ricos belgas de origem flamenga. Talvez isso explique por quê, no museu, os influentes autores flamengos ostentem os textos de curadoria em holandês acima dos textos em francês, ao contrário de todo o resto. Os principais nomes desses quadrinhos – Willy Vandersteen, chamado “verdadeiro criador da linha clara” e sua imensamente popular BD familiar Bob e Bobette; e Marc Sleen, criador de As aventuras de Nero – ocupavam espaço de grande destaque no salão central do museu. Depois, ao tentar comprar a HQ Nero e não encontrar nenhuma edição em francês (e carregando somente uma tradução em inglês nas mãos), perguntei pra velhinha que atendia na loja: “Nero em francês está em falta”? No que ela respondeu: “Não, isso nunca foi publicado em francês”. Oh, I guess I struck a nerve.

BD World

Acho que tudo que me esforcei para escrever com clareza acima dá uma ideia da complexidade cultural de um país com 30 mil km² e apenas 10 milhões de habitantes. Especialmente para os fãs de quadrinhos, é um tour que vale a pena. Tanto quanto chocolaterias (esqueci de dar algum destaque a isso, porque, ao contrário de 99% da população mundial, não gosto muito de chocolate), há um universo de lojas de quadrinhos na Bélgica, especialmente em Bruxelas. Cheguei a visitar umas 4 ou 5, afinal, o tempo era curto e tinha muita cerveja pra beber. Faço questão de destacar a BD World, uma loja labiríntica, com milhares de quadrinhos, atendida por duas preciosidades a quem eu não recusaria um pedido instantâneo de casamento; a Multi-BD, cujos atendentes são tão atenciosos que escrevem suas próprias mini-resenhas e colam junto às capas dos quadrinhos, classificando-as como “premiadas”, “favoritas da casa”, etc; e a própria loja instalada no museu, a Slumberland, franquia de uma megastore de quadrinhos que tem outras 5 ou 6 lojas espalhadas por Bélgica e França. A Slumberland é quase como uma Fnac só de quadrinhos, e praticamente somente quadrinhos francobelgas. Os comics americanos, aliás, parecem bastante desprezados pelo país. Pouco se vê deles pela Bélgica. Vou me abster apenas de falar no bizarro hábito de comer batatas fritas com maionese como se fosse cachorro-quente, e de dar mais detalhamento sobre a qualidade da mulher belga, primeiro para não entediar nossas leitoras, e segundo porque esta é uma qualidade que deixo à imaginação, e àqueles que se aventurarem para uma visita in loco.

Bruges, na Bélgica: você senta-se no café, pede um chocolate quente e pega um gibi pra ler.

Agradecimentos ao meu irmão Guga (verdadeira fanático por pintura flamenga, prestou ótima assessoria), meu irmão Quilk (que tirou a maioria das fotos) e ao colega Pedro Brandt (que morou na Bélgica e me informou alguns detalhes essenciais sobre o país).

O que são BDs? Um segundo corte - parte 2: Ulysses

por

Ciro I. Marcondes

Para quem está perdido no nosso guia idiossincrático da estética e cultura das HQs francobelgas, pode ler a introdução ao segundo corte e o primeiro texto (

Andarilho dos limbos

)

aqui

, além dos textos do primeiro corte (

aqui

). Li

Ulysses

numa reedição americana,

Heavy Metal Classics

, de 2006, que reúne os dois volumes da obra. É uma leitura leve, deliciosa e estimulante.

Polifemo

2: Ulysses (Georges Pichard e Jacques Lob)

Zeus e os deuses do Olimpo: Legião dos Super-Heróis?

Concorda-se hoje que dia que a

Odisseia

seja uma coletânea de mitos das tribos gregas arcaicas reunidas em textos tradicionais cuja disseminação se dava, primeiro, apenas oralmente, e que depois foram organizadas por dois ou três aedos

que acabaram sendo convencionalmente reunidos sobre a alcunha “Homero”

, no Séc. 8 a.C. À

Odisseia

junta-se a outra epopeia clássica, a

Ilíada

, além de outros textos épicos que se perderam, muitos deles ainda na época da antiguidade. Estes textos sobreviventes fazem parte de nossa fundamentação filosófica, histórica e religiosa, e deveriam ser lidos cuidadosamente por qualquer cidadão que se interesse minimamente por cultura ou história. Estas estruturas míticas, que englobam a criação de arquétipos definidores, preceitos morais e toda uma substância linguística herdada pelo ocidente, se manifestam em grande escala em nossos conceitos filosóficos, literários, psicanalíticos, sociológicos e políticos. Obviamente, a

Odisseia

é um dos textos mais apropriados, parodiados, reprocessados e adaptados da nossa história.

Enquanto outras mídias procuraram sempre reinventar o sentido da tenebrosa viagem de retorno de Ulisses

(ou Odisseu, para os gregos) após vencer a guerra de Tróia, os quadrinhos realizaram apenas leituras tímidas, quase todas adaptações infantis.

A arte safadinha de Pichard

O que torna essa versão realizada pela incrível dupla Pichard/Lob diferente de tudo que foi feito em relação ao peso histórico deste texto é sua alucinante adequação ao

esprit d'époque

no qual os autores estavam mergulhados. O já falecido Georges Pichard foi um dos mais talentosos e inquietos mestres do erotismo francês, e a maior parte da sua obra em quadrinhos foi dedicada ao aperfeiçoamento desta arte, tão cultivada pelos gênios setentistas da

Métal Hurlant

. Pichard detém um traço ao mesmo tempo expressivo e delicado, de alta personalização e identificação. Seus cenários e figurinos são floreados de elegante

art-nouveau

, inundando as páginas com cores suaves e curvas sinuosas, deixando seus personagens com forte carga sensual, inequivocadamente sensual, impterivelmente sensual. Suas mulheres, com olhos grandes e vibrantes, sardas salientes e curvas difíceis de se ignorar, chegam quase a exalar perfume róseo saído de dentro das páginas da HQ. Toda essa imersão em um ideal grego de beleza fez com que ele encontrasse, na

Odisseia

, um foco muitas vezes ignorado nas transposições habituais da obra, que é essa urgente sensualidade e a presença constante de volúpia e desejo nas ações que norteiam os heróis.

As sereias

Por outro lado, o tradicional roteirista de Pichard, Jacques Lob (também falecido), encontra uma segunda maneira (à parte a sensualidade) de manifestar este estilo setentista a uma história tão distante no tempo. Sem perder completamente o embasamento no original de Homero (a época e os personagens se mantêm) e influenciado por uma leitura bem-humorada, sacana e

cool

dos padrões e personalidades dos deuses gregos – que mistura Stanley Kubrick,

Erick von Daniken

,

Stan Lee

e um tanto de outras coisas –  Lob vê na trajetória do rei de Ítaca uma grande afinidade com o estilo sci-fi descolado da

Métal Hurlant

. Assim, transforma os deuses não em criaturas mágicas, mas em sujeitos avançados tecnologicamente e de mentalidade moderna, com visual

chic

e arrojado, comportamentos liberais e pós-modernos; figuras hedonistas, cínicas, junkies, devassas, dândis.

Netuno

Esta combinação robusta de talento e

timing

para se perceber como contar um clássico à luz de sua própria época (a HQ foi publicada originalmente em dois volumes, em 1974 e 75) faz do

Ulysses

de Pichard e Lob uma obra leve e deliciosamente rica, cercada de conceitos ousados para o design de personagens e para invenções retrofuturistas. Espertamente, Lob também limita a adaptação a apenas quatro cantos da

Odisseia

, tornando a jornada de retorno do herói grego menos cansativa (quem leu Homero sabe o quanto) que o original. Assim, a adaptação resume-se aos episódios com o ciclope Polifemo (aqui vertido num robô de Netuno), à perseguição empreedida pelo deus dos ventos Éolo (um sujeito gordo que voa numa poltrona metálica estilo Charles Xavier – em forma de bunda), à estadia de Ulisses e seus marinheiros na ilha da feiticeira Circe (aqui, além de feiticeira, uma diva lisérgica, experimentadora de radicais modalidades sexuais e psicotrópicas) e ao do chamado das sereias em alto mar.

Atena: belezinha

Cada um destes episódios é contado com encanto próprio, em quadros grandes e dinâmicos, quase como numa HQ de Jack Kirby ou John Buscema, mas ao mesmo tempo privilegiando ângulos pouco convencionais dos personagens, transbordando volúpia, olhares desejosos, pequenas sacanagens. O que também salta aos olhos é a criação de um conceito visual muito próprio e bem-sucedido para cada um dos deuses. Zeus, por exemplo, veste uma espécie de colant que poderia pertencer à Legião dos Super-Heróis, com olhos compenetrados e barba escura, jovial. A deusa Atena, aliada de Ulisses, mistura sua forte presença com irresistível ingenuidade, o que a tornam a personagem mais sensual da HQ, usando um enlouquecedor “tomara-que-caia” às avessas (!). O deus Netuno é uma criatura reptiliana, paranoica e mau-humorada, com ares de cientista, sempre coberto totalmente por um escafandro grosseirão. Já Hermes, o mensageiro do Olimpo, parece um astronauta da era de ouro, não deixando de se lembrar os super-heróis (Flash e Mercúrio) inspirados nele próprio.

Trips

Para finalizar, vale um comentário sobre o episódio de Circe, que achei o mais interessante e perturbador. No texto homérico, Circe é uma semideusa frívola e voluntariosa que vive cercada de ninfas em uma ilha, aonde Ulisses e os marinheiros vão parar após um naufrágio. Lá, ela os seduz e os transforma em escravos (e porcos!) usando poderes mágicos, seduzindo o rei grego e provocando nele o ímpeto para realizar sua primeira traição a Penélope, a rainha que o aguarda há 10 anos em Ítaca. Pichard e Lob se aproveitam do óbvio potencial erótico e moral deste episódio para trazer cenas fortes de erotismo e repulsa (os marinheiros pensando que são porcos, comendo a própria merda, por exemplo). Circe e as ninfas são vertidas em devassas de índole libertária e quase sádica, valorizando um jogo S&M, lembrando muito os quadrinhos de Crepax. É excepcional a entrada de Ulisses no quarto dos prazeres de Circe (aqui, uma morena, sempre seminua, de olhar gótico e lábios carnudos), uma instalação meio

Mary Shelley

com

Russ Meyer

dedicada à experimentação com todo tipo de entorpecentes. Convencido a se drogar indefinidamente e alojado em outro

momentum

do tempo e do espaço, Ulisses fica no quarto pelo período de um ano, em intermináveis

trips

e orgias com Circe, até que desperta, resolve fugir e encontra seus marinheiros prontos para partir sem seu rei. O que se segue é um brutal

cold turkey

para o rei de Ítaca, em cenas macabras e psicopáticas que revelam o grau da abstinência que desaba sobre o herói.

Cold turkey

A graça deste episódio é que, por assustador que seja – Pichard desenha os quadros à maneira dos “

Fillmore Posters

” de Rick Griffin –, ele faz essa conexão bem sacada e maliciosa entre os ideais absolutamente não-puritanos dos gregos antigos e a ascensão da uma contracultura nos anos 60/70, da qual a

Métal Hurlant

acabou se tornando parte importante. Dispensando a obrigação de fazer

uma leitura muito densa e simbólica da obra de Homero

,

Ulysses

retrata o lado leviano e sarcástico, de ironia cruel, escondido sob as tradições de

pathos

e tragédia associadas aos gregos antigos. Esta operação, divertida e primorosa, de transformação do clássico em

cool

, fará com que a obra de Pichard e Loeb seja sempre revisitada, já que seus temas históricos e seus futurismos não têm lugar preciso na nossa realidade. Nem sempre é tão simples quanto parece criar um mito moderno a partir de um mito clássico, e essa obra tem o mérito de sintetizar, deliciosamente, duas épocas em uma só força narrativa .

Circe: encaras?