Redundância e obsessão: reminiscências sobre Homem Animal de Grant Morrison

Olá pessoal. Meu nome é Lima e já colaborei com a Raio Laser em alguns textos no passado. Este agora é meu primeiro ensaio de uma nova e promissora fase de intensificada participação na Raio e que pretende ser marcada por uma fronteira bem anuviada quanto as fontes quadrinísticas. Quem já leu meus textos anteriores percebeu que tenho um pé firme no quadrinho “mainstream” e, de fato, considero urgente promover uma leitura crítica do que se passa nas bancas de revista atuais. Há os que prefiram nem passar perto da massa amorfa e sem graça que se fabrica nas grandes editoras do gênero. O que considero uma atitude razoável. Mas a força que estes quadrinhos industriais exercem no imaginário atual, e os problemas que desencadeiam, me fazem ver na Raio Laser um espaço perfeito para escarafunchar este material de maneira crítica contribuindo para que um eventual leitor das “grandes editoras” possa ter despertada uma curiosidade para com outros gêneros e matrizes de produção de HQ’s. Sendo claro, boa parte do meu objeto de discussão vai ser o quadrinho de grande tiragem, o que inclui o gênero super-herói ou o Mangá, entre outros tantos. Aqueles que não suportarem este tipo de quadrinho podem ignorar os textos com a minha benção. Findo esta breve apresentação com um bem-vindo a todos e vamos logo ao que interessa. (LN)

por Lima Neto

As histórias em quadrinhos nos capturam pelo olhar. É uma obviedade dizer isso, mas é sempre saudável lembrar que, na expressiva dança entre palavra e imagem que transcreve a leitura de uma HQ, é a imagem que toma a dianteira na sedução. É depois que o olhar engole o anzol pictórico que a narrativa encontra a abertura para desfraldar sua trama, seus dramas e acontecimentos. Mesmo que não tenha palavras, uma HQ vai ser formada de uma sequência de imagens que encenam um narrar ordenado que se desfralda da direita para a esquerda (no ocidente). Uma página de quadrinhos é, portanto, uma ou mais imagens que se submetem a uma narrativa que não é própria de seu estatuto. Ou melhor, a narrativa linear impregnada de imagens da página de quadrinhos instaura um estatuto próprio que é fruto de uma síntese entre a linearidade narrativa e a espacialidade visual.

Volto agora alguns 20 anos no passado. As bancas de revistas dos primeiros anos dos anos 90 viviam um momento de glória. O quadrinho nacional encontrava um fôlego econômico para se proliferar e as HQ’s mensais das grandes editoras, sob o monopólio da então soberana editora Abril, chegavam em fases novas e autorais graças à chegada no Brasil da conhecida invasão britânica. Alan Moore se consagrava como respeitado criador do meio. Neil Gaiman já causava frisson com a tessitura narrativa de seu Sandman e uma segunda leva de escritores aportava nas praias brasileiras. Nomes como Jamie Delano, Peter Milligan e um criativo escocês chamado Grant Morrison.

No início dos anos noventa o autor destas linhas estava na sexta série. O hábito de ler quadrinhos me permitia descobrir verdadeiros esconderijos em minha escola para ficar em paz. As HQ’s não prestigiavam deste respeito artificial que pode se ver hoje em dia, e ler um gibi no recreio só era possível longe das pessoas “normais”. Num destes esconderijos, encostado numa grade de ferro e sentado desconfortavelmente no chão de paralelepípedos que separava o pátio do recreio das quadras de educação física, minha relação com as histórias em quadrinhos, e consequentemente com o mundo das imagens, mudou completamente. Lendo uma edição do extinto mix DC 2000, especificamente uma das sempre impressionantes histórias do Homem-Animal de Grant Morrison, fui tomado por uma imagem que era ao mesmo tempo um lugar-comum e uma epifania.

Esta cena do personagem Buddy Baker o retrata no ápice de uma viagem de autoconhecimento regada a peyote ritual. Prometendo respostas para seu passado confuso e seu presente surreal, um Doutor indígena chamado Highwater oferece respostas através de um ritual shamânico. Como resultado deste procedimento, Buddy recebe três revelações, sendo que a terceira é a revelação da existência de uma outra dimensão acima dele que não apenas observa o que se passa em sua vida, como sua vida se revela como um simples entretenimento. Resumindo, naquela manhã, no intervalo da minha escola, um super-herói se tornou ciente da minha presença e do impacto que ela causa em sua vida. O mundo para mim nunca mais foi o mesmo e esta imagem tornou-se uma obsessão.

Cabe aqui uma melhor contextualização deste momento na história do personagem. Afinal, este texto não pertence à seção HQ em um quadro. Conhecido por seus roteiros “viagem”, ao trabalhar para a DC Comics, Morrison escolhe o personagem mais esquisito que estava à disposição. O Homem Animal era um personagem do quinto escalão da editora. O “homem com poderes animais” ganhou seu dom ao ser exposto a uma radiação alienígena e, sem nenhuma história memorável fora a participação em outros títulos como a participação especial do mês, terminou seus dias ao lado dos Heróis Esquecidos, um grupo de heróis de igual celebridade nula. Com a reformulação da editora, durante a saga Crise nas Infinitas Terras, Morrison recebe carta branca para fazer o que desejasse com o personagem e o transforma em um herói ecológico e pai de família que encara a luta contra o crime como um trabalho normal como outro qualquer. Suas aventuras esquisitas o colocavam contra soldados poetas e obras de arte de destruição em massa, gênios do mal suicidas, deuses africanos cancerígenos e messias coiotes que se recusavam a morrer. Era a alucinação da era de prata elevada a níveis concentrados de lisergia. É para dar conta deste cotidiano dadaísta que o Homem Animal decide embarcar no ritual que termina por lhe revelar sua natureza como ficção. Ao se defrontar com o nonsense absoluto que é a morte, o herói adentra neste labirinto da meta-linguagem até encontrar com o responsável por suas desgraças: Grant Morrison.

Retornando à imagem. Algumas páginas antes de olhar para mim, Buddy está discutindo com ele mesmo. Trata-se da versão do Homem-animal de antes de Crise, aquele dos Heróis Esquecidos. Ele revela o segundo segredo para Buddy, o de que houve outro Buddy Baker que foi apagado para que o atual vivesse. É este Homem-Animal, devidamente vestido em seu uniforme adornado com uma gigante letra “A”, que revela minha presença para Buddy. E é a partir da visão de minha presença que o personagem decide ir à busca de seu criador.

Retornando à imagem. A metalinguagem é usada nos quadrinhos desde seus primeiros anos e aparece abundantemente nos quadrinhos de humor até os dias de hoje. De fato é um recurso retórico de efeito fácil, mas, em mãos hábeis, a metalinguagem ainda consegue exercer seu assombro poético. Esta imagem é, como todo requadro de uma página de HQ, uma janela. Mas Morrison abre a janela. Escancara. O olhar de espanto de Baker, representado de maneira honesta pelo artista Chas Truoug, se eleva em direção ao leitor e o puxa para dentro. É um vórtice de identidades, de arbítrios que se querem livres sem saber que seguem um roteiro. Tornamo-nos personagem direto da revista e por uma fração de segundo somos uma criação de Grant Morrison. Muito esperto senhor Morrison. Entretanto, havia algo mais, e, na busca deste algo mais, passei a seguir o senhor Morrison aonde quer que ele fosse. Mas não foi nele que encontrei respostas. Pelo menos não encontrei respostas diretas.

Não foram os limitados componentes estéticos da imagem que repercutiram na minha alma naquele momento. Como desenhista, Truoug é bastante limitado e exerce sua função de maneira bem burocrática e direta. Sua construção pictórica do rosto espantado é pobre quando comparada à imensa miríade de desenhistas que trabalhavam na indústria naquele período pré-Vertigo e esta dobradinha “bons roteiros X arte medíocre” vai ser uma bandeira que viria a se tornar o selo de quadrinhos adultos da DC Comics. A razão de minha obsessão residia no significado daquele momento na narrativa do personagem (o que estava sendo representado nas ações e gestos dos personagens), e a maneira com que este momento é foi passado ao leitor (as escolhas linguísticas que foram tomadas ao criar a cena). Interpretando esta imagem sob a luz das pesquisas empreendidas por Gilbert Durand é possível perceber que o efeito “mágico” da cena é resultado de suas características enquanto imagem simbólica.

A palavra “símbolo” vem do grego sumbolon que, assim como o hebraico mashal e o alemão sinnbild, implica uma reunião de duas metades. No caso do símbolo, uma reunião entre significante e significado. Significante é a parte visível do símbolo e esta possui 3 dimensões concretas: uma dimensão cósmica – que reproduz o que está visível a sua volta; uma dimensão onírica – que constrói sua imagem a partir dos gestos fantásticos de nossos sonhos e fantasias e  esta intimamente ligada à nossa biografia pessoal; e uma dimensão poética – construída com a matéria prima da linguagem em seu momento de maior ímpeto. Se a arte de Truoug corresponde a dimensão cósmica, então a narrativa visual da imagem vai corresponder a dimensão onírica, e a metalinguagem corresponde à dimensão poética deste requadro simbólico. Como se pode ver, o lado significante do símbolo é infinitamente aberto em suas possibilidades figurativas. Mas é próprio do símbolo que este significante só se refira a uma “qualidade” não figurável.

Esta “qualidade” não figurável é o componente do outro lado do símbolo: o significado. Como o significante, o significado também é infinitamente aberto. Por não ser representável, o significado se espalha por todas as ordens de coisas e dimensões. A dimensão do significado é epifânica. No símbolo, significado e significante estão sempre divergindo, sua existência é uma aproximação feliz e fugaz. Esta inadequação só é superada pela redundância. A ação de sempre retornar a imagem simbólica de forma a reinterpretá-la, a corrigi-la e complementá-la. Como o fizemos em parágrafos anteriores. Da mesma forma este texto é a volta mais recente de uma redundância que minha alma executa desde os anos 90 em cima da imagem principal deste texto. Não à toa Durand descreve a redundância da imagem como com a imagem de um solenoide.

Vimos que a redundância exercida sobre a imagem do HA é baseada nas dimensões poética e onírica do símbolo que engendra. Durand estipula que as redundâncias estabelecidas por meio de relações linguísticas são conformam símbolos mitológicos, enquanto que as redundâncias que emergem dos gestuais oníricos e subjetivos prescrevem os símbolos rituais. A dimensão cósmica, a representação dos fenômenos do mundo, engendra múltiplas redundâncias. Quando afirmamos que a arte de Truoug é “pobre” esteticamente é porque são poucas as redundâncias possíveis no espaço que ele encena sua representação em comparação, por exemplo, com uma página de Little Nemo. Os símbolos destas redundâncias são os símbolos iconográficos.

Mas, voltando à imagem, e voltando aos quadrinhos. A complexidade da imagem simbólica é grande. E ainda mais complexo é o simbolismo em uma página de quadrinhos. Na HQ, diferentes tipos de símbolos se revezam na construção da narrativa. O próprio quadrinho pode ser considerado uma narrativa simbólica onde dois lados de propriedades distintas se encontram ligados de maneira indissociável. Mas no que tange à imagem em questão, identifico dois simbolismos originários de redundâncias distintas que exercem seu efeito sobre mim. O símbolo poético que a metalinguagem representa e o símbolo mítico do encontro que a imagem exprime.

Como vimos, Buddy Baker se encontra na imagem no ápice de um encontro epifânico. É uma jornada dentro de sua própria psique. Neste embate ele encontra consigo mesmo em sua versão original de Homem Animal. E este o mostra a verdade de sua condição como ficção. Na obra de Morrison o mito do labirinto é uma imagem persistente. Até em sua recente passagem pelo título de Batman, concluída em 2013, encontramos referências diretas ao mito e seus componentes: 

No mito do Minotauro, o herói Teseu adentra o labirinto para salvar os atenienses mandados para ser pasto para o monstro com cabeça de touro e corpo de homem. Ao se encontrar com o vilão, Teseu usa de uma arma proscrita para matá-lo o que acaba por amaldiçoar seu destino heroico. O que Teseu encontra no fundo do labirinto é a imagem de seu próprio instinto animal reprimido para o subconsciente, mas, ao eliminá-lo, torna-se Minotauro. Seu valor heroico se inverte. O herói vira monstro e o monstro torna-se vítima. Buddy Baker se encontra com seu “eu” em um estado mais primário, original. Um homem com poderes animais. Um Minotauro encarcerado no labirinto à espera de seu libertador. Mas tudo que encontra é Buddy Baker, seu lado humano, sua identidade secreta. A imagem do homem sem sua parte animal. E, sendo vítima do mito, Buddy pouco pode fazer para salvar seu oposto animal. Mas antes de morrer, o Homem Animal clássico aponta para a saída do labirinto. No mito original há apenas duas saídas do labirinto, pelo fio de Ariadne ou por cima, pelos céus. Esta é a estratégia utilizada por Dédalo, o inventor do labirinto, e seu filho para escaparem do encarceramento ao qual foram condenados por ajudar Teseu. Olhando para trás e para cima, Buddy vê não sua liberdade, mas enxerga aqueles entes aos quais sua liberdade é submetida. Em uma indústria onde a qualidade do que é produzido fica em terceiros e quartos lugares, as possibilidades poéticas do personagem são severamente limitadas pelas intenções do público alvo. Neste vislumbre de liberdade, nós leitores nos tornamos personagens da história. Submetemos-nos às mesmas imposições às quais a vida de Buddy sofre. Como Teseu e o Minotauro, nós trocamos de lugar com Buddy Baker.

Esta troca é expressa pelo símbolo poético representado pela metalinguagem. Uma meta linguagem extrema, radical, impetuosa. A metalinguagem é a ação de abrir a cortina. De rasgar a fina película que separa a cena de seu público. É um ato de trazer o leitor para dentro do mecanismo de construção de uma escritura e fazê-lo perceber seu funcionamento. Nesta imagem que analisamos este “trazer para dentro” se torna queda. Torna-se um choque que derruba, pulveriza a fantasia e a espalha pela realidade misturando uma com a outra. E assim permanecem ligados até o final da história, quando Grant Morrison, o próprio Dédalo, entra em cena e revela para Buddy a natureza de sua existência.

A redundância da imagem simbólica, seu padrão circular, vai encontrar paralelo na noção de eterno retorno que a imagem possui. Diferente da palavra, a imagem não tem ordem de leitura. Ao se deparar com uma imagem, o olhar se fixa em um ponto que lhe seja significativo à subjetividade do observador e este passa a construir e ler a imagem a partir de visadas cíclicas que sempre retornam a este ponto determinado, muitas vezes sem razão lógica aparente.

Em uma narrativa em quadrinhos, este eterno retorno se submete à linearidade da leitura aos moldes da palavra. Mas isto não impede que seus símbolos efetuem redundâncias. E Grant Morrison é bem ciente disto. No título que vai trabalhar paralelamente ao Homem-Animal – Patrulha do Destino – Morrison recria o personagem da era de prata, Homem-negativo, na forma de Rebis. Uma entidade andrógina de corpo enfaixado que emite uma versão negativa de si mesmo para fora de seu corpo. Rebis é o nome do casamento alquímico entre dois elementos distintos, processo que é usado por Jung para descrever sua noção de símbolo e que vai ser posteriormente retomado por Durand. O personagem Rebis também é reconhecido como o Ourobouros: imagem da serpente que engole a própria cauda. Símbolo de eternidade e do fluxo circular do eterno retorno. É a imagem e sua redundância encarnados em um único personagem. Também o Ourobouros é um símbolo muito usado por Morrison. Mesmo em sua recente fase em Batman, o escritor insere o conceito de Ourobouros na forma de uma fonte de energia que nunca se esgota, como um moto-perpétuo. 

A propriedade redundante da imagem também vai ser representada, em Patrulha do Destino, na figura de um quadro arcano que suga para dentro tudo o que está fora. No arco “A pintura que engoliu Paris”, o bizarro grupo de desajustados que compõe a Patrulha do Destino se vê sugado para dentro do quadro junto com a cidade de Paris. Dentro o quadro, o grupo pula de uma dimensão para outra, cada uma representando um círculo do intricado labirinto que é a imagem do quadro. Cada círculo é regido por uma escola estética da arte: parte do grupo vai para um mundo futurista, outra parte se vê presa em um mundo impressionista. Há até um circulo dadaísta. Difícil não ver a produção simbólica humana como uma série de redundâncias, das quais as escolas estéticas são voltas em torno deste enigmático símbolo maior: a vida. 

Guerra Civil: o irreversível ocaso dos super-heróis

Guerra Civil: o irreversível ocaso dos super-heróis

Certo dia, quando estava elaborando algumas linhas de pensamento para escrever um texto sobre a série Guerra Civil, da Marvel, que estava lendo no momento, eu adormeci. Curiosamente, estas elocubrações bem conscientes e planejadas acabaram transformando-se no mundo absurdo e sem rédeas do sonho. Não tão exótico, mas significativo: um sonho de voo. Este tipo de sonho não é novidade para mim. Desde criança sonho que possuo a habilidade de voar, seja flutuando como um astronauta, dando rasantes como um jato, ou vertendo o céu aberto, como um super-herói. A quantidade de vezes em que mergulhei na experiência do voo (que é contagiante e prazerosa) me fez ter sonhos continuados a respeito deste assunto. Se, em um sonho, eu estava desajeitadamente aprendendo a voar, no seguinte eu já tinha domínio e podia me exibir narcisicamente para as outras pessoas. Depois de centenas de sonhos deste tipo, me tornei um mestre na arte do voo, e passei a uma nova etapa: desenvolver uma ciência do voo, que é refletir, durante o sonho, sobre a habilidade técnica de voar, sua natureza e limitações, etc. A ciência do voo, por sua vez, me despertou para pensar numa ciência do super-herói.

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Spirit e a teoria do caos

Spirit e a teoria do caos

Em vários quadrinhos de Will Eisner, mas especialmente radiografado em sua obra-prima Avenida Dropsie, de 1995, há um fator de complexidade que faz emergir dois patamares de tessitura das histórias. Explico-me: em Dropsie, há um emaranhado incontável de fatores imprevisíveis – incêndios, guerras, suicídios, mortes acidentais, mercado imobiliário, etc , etc – além de outros mais facilmente calculáveis – levas de imigrantes, intolerância étnica, crescimento industrial, etc , etc – que fazem Eisner dirigir o sentido de um bairro em Nova York, de seu precoce estabelecimento no Séc. XIX até a sua ruína, afundada por crises financeiras, manipulações especulativas e invasão de sem-teto, no final do Séc. XX. O significado que o autor queria dar a isso é bastante claro num primeiro plano: as cidades, prédios e estabelecimentos em geral possuem uma história própria, uma trajetória que se assemelha de alguma forma à de um organismo vivo; um organismo formado pelos vivos. Daí sua vivificação do espaço, o uso dos quadros vazados ou sangrados (que fazem a HQ “respirar”), de sua preocupação em trazer vida também à estrutura espacial de formação da HQ como um todo, aproveitando tanto o espaço interno quanto externo dos quadrinhos

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HQ em um quadro: de volta às Tartarugas Ninja, por Peter Laird e Jim Lawson

Leonardo anuncia a morte de Mestre Splinter (Peter Laird, Jim Lawson, 2003): as HQs das Tartarugas Ninja fizeram grande sucesso ao tentar parodiar o estilo e índole violentas de Frank Miller em meados dos anos 80, e até hoje são algum objeto de culto (especialmente as primeiras), com muita gente considerando-as algo "sombrias", "violentas", "underground", "sérias", etc. Mesmo assim, o jeitão pop de coisa inocente e feita pra crianças que as criações de Peter Laird e Kevin Eastman atingiram com a super popularidade do desenho animado clássico (dos anos 90) e dos filmes fez com que muita gente jamais se interessasse por estas obscuras HQs. Incluindo eu mesmo. Até agora. Não que eu tenha efetivamente corrido atrás dos gibis originais, supostamente itens de colecionador nos dias de hoje, mas o acaso e a sensacional arte do ilustrador Jim Lawson acabaram fazendo com que as TMNT topassem com os olhos daqui da Raio Laser num sebo bastante maltrapilho ("Beco"?) de Porto Alegre. A estante de quadrinho era extensa, mas a grande maioria das coisas eram HQs em formato americano de todos os tipos, coisas lançadas no Brasil, X-Men, super-heróis, coisas assim. Já quase em estado de desistência diante de tanto material inócuo e sem graça, eis que vem aos meus olhos um primeiro plano chapadão de uma tartaruga ninja ostentando terrível expressão de constrangimento, com as placas do peitoral arranhadas - excelente ilustração - e o logotipo diretaço escrito logo acima: "TMNT". Achei tudo aquilo muito cool e, devido ao estado zero bala da revista, gastei uns 4 contos nela e em mais duas outras edições para sacar de qual era. Tratava-se (informei-me depois) de uma edição da quarta fase da revista, que tem publicações irregulares, com o cânone bastante interrompido (chateando os fãs), quase sempre publicado pela editora criada pelos autores originais, a Mirage Publishing (há uma fase, hoje apócrifa, publicada pela Image). O mais legal é que, a despeito de ser uma edição americana de 2003, o texto da HQ é de ninguém menos que um dos criadores dos mutantes, o gente boa Peter Laird. Laird, surpreendentemente, mesmo décadas depois, ainda leva jeito com a coisa, foi o que percebi. De leitura rápida, cheia de imagens silenciosas e quadrinização voraz que nos faz atravessar as páginas com volúpia de coisa pop bem feita, a inconclusa história desta edição número 10 traz dois plots que começavam em edições anteriores e terminam em posteriores, à tradicional maneira americana (criada pela Marvel, especificamente). O quadro que ilustra este post é o último da história, mas ele é precedido por sinais premonitórios, com algumas sequências inteligentes, sensíveis e bem-feitas do cotidiano do Mestre Splinter: o velho rato alimenta seu gato, passarinhos, toma chá, etc, no que parece uma casa de campo onde ele pode dedicar-se aos afazeres da idade avançada. 

Há uma certa beleza de um senso-comum-zen nestas sequências, de quadrinização delicada, efeitos de câmera lenta, zoom-out, grandes primeiros-planos e recursos que, por básicos que sejam, muitos iniciantes e até quadrinistas experientes simplesmente não dominam. Splinter passa a sofrer de algum mal interno (um ataque cardíaco? Um AVC?), e lentamente vamos sendo informados de que o sensei das tartarugas está a perecer. Eu não cheguei a ler a edição número 11, então não sei se Splinter efetivamente morre. Eu sei que poderia descobrir isso baixando a próxima edição na Internet, mas, de alguma maneira, prefiro ficar com o tom de epitáfio que se carrega nesta história, e com a trajetória peculiar do volume que eu adquiri no sebo. Sei que estes quadrinhos seriados tendem inevitavelmente a se estragarem, vítimas de seu próprio modelo de novela, e prefiro, neste caso, criar algum tipo de mitologia pessoal.  Esta edição não traz apenas este plot de Splinter, mas também outros que parecem traduzir bem o estilo contemporâneo de Laird: são coisas que misturam aliens com ficção científica, nanorrobótica, terrorismo digital, coisas da cultura contemporânea, firmada de maneira madura, específica, detalhada, geeky, para adolescentes inteligentes. Claro que, coroando a pequena sorte de ter topado inadvertidamente com esta edição, fica o que me chamou a atenção originalmente: a arte de Lawson é de um detalhismo esplêndido, toda angulosa, aproveitando ao máximo os requadros dinâmicos, elegantemente plasmados nas páginas, num preto-e-branco cheio de expressões caricatas, personagens com ótimo design e um apurado senso sobre como se fazer quadrinhos de aventura sem que eles sejam simplesmente horrendos ou ridículos. As tartarugas em si, vale lembrar, pouco aparecem na história, porque passam a diegese toda sedadas, mas despertam justamente nas últimas páginas para trazer um teor dramático, espécie de falha trágica, ao final da edição. O anúncio consternado de Leonardo, porta-voz do grupo, é o suficiente para mim: não tenho intenção de ler mais coisas das TMNT, já que esta experiência basta por esta vida. (CIM)

Contos sobre a decomposição: conheça Al Feldstein

por Ciro I. Marcondes

Al Feldstein é mais um daqueles nomes que hoje pairam sob obscura sombra na história das HQs. Seu trabalho como editor, ilustrador e, principalmente, de roteirista nas clássicas publicações da EC Comics nos anos 50 (e posteriormente em MAD) hoje parece, especialmente no Brasil, relegado a um vão ostracismo, quando quadrinhos de horror, crime e ficção científica, tão populares naquela segunda aurora para o comic book, vão se tornando não apenas obsoletos, mas verdadeiras peças de arqueologia. Um pulo na banca de jornal hoje e tudo o que se vê são dezenas de publicações com os mesmos super-heróis de sempre, apenas remodelados para um design contemporâneo (de traço realista e fino, pouco estilizado, geralmente colorido em computação gráfica), com a diferença de sua ética e estética serem estrategicamente adaptados ao gosto contemporâneo. Um nojo, em geral. Quadrinhos de péssimo gosto, sem imaginação ou variabilidade de gênero.

Não deixa de ser irônico, portanto, que os quadrinhos da EC, tão vilipendiados nos anos 50 devido a uma vultosa caça às bruxas promovida tanto por setores moralistas da sociedade, quanto por intelectuais, quanto pelo próprio governo americano, sejam hoje lidos por aficcionados e colecionadores como trabalhos de qualidade estética, laboratório para grandes desenhistas (como Wally Wood, Bill Elder e John Severin) e como inventário de incríveis histórias, escabrosas, delirantes, anormais, detestáveis. O “mau gosto” e o tom altamente politicamente incorreto dos quadrinhos de horror e crime da EC, passados mais de 60 anos de suas publicações originais, se tornaram quadrinhos de culto, ousados, fora dos padrões de qualquer época para as HQs, verdadeiros tesouros elaborados por mentes delirantes que viam este salto politicamente incorreto como um passo além dos quadrinhos de aventuras, super-heróis e family strips que vinham sendo publicados nos Estados Unidos desde os anos 1930.

Al Feldstein foi um dos nomes principais desta geração e formava, juntamente com o editor-chefe Bill Gaines e o multi-talentoso roteirista e desenhista Harvey Kurtzman, a tríade que tornou a EC uma editora lendária. Caçada pela censura durante os anos de chumbo do macartismo, a EC não durou muito tempo, mas os três títulos de horror da editora, Tales from the Crypt (anteriormente Crypt of Terror), The Vault of Horror e The Haunt of Fear marcaram época ao apostar em temas-tabu como canibalismo, esquartejamento, putrefação, além de todo tipo de horror psicológico. Feldstein acreditava que era hora de a EC deixar de copiar histórias de crime que faziam sucesso em outras editoras (títulos como Crime does not Pay) e criar um gênero autêntico que os fizesse ser, por sua vez, copiados pelas outras editoras. Daí o insight de debater com Gaines a criação de revistas de horror escatológico, quase explícito, beirando o exploitation e o gore, tão populares hoje em dia, inspirado em aterradoras novelas de horror para o rádio dos anos 30.

A despeito da contribuição de Bill Gaines na hora de elaborar os argumentos, ou do resto do espetacular time da EC nos títulos de ficção-científica, guerra e crime, é o trabalho de Feldstein em Tales from the Crypt e nos outros títulos de horror que vai catapultar a EC a tornar-se o maior sucesso comercial dos quadrinhos americanos dos anos 50. Suas histórias possuíam certo senso de ironia e humor escarninho, bastante perversos, traduzidos especialmente no final com um twist grotesco de horror que nos leva, por exemplo, a imaginar situações que podem ser resumidas nas seguintes storylines: “um sujeito apaixonado por sua falecida amada que se tranca por acidente em seu mausoléu e é obrigado a se alimentar dela para sobreviver”; “um caçador e colecionar de troféus de caça que se vê caçado por um homem insano que transforma sua própria cabeça em um troféu humano”; “um homem que conduz uma carroça escondendo por dentro dela, atrás de seu corpo, um gêmeo siamês morto e apodrecido”, dentre centenas de atrocidades, enterramentos de pessoas vivas, mortes hediondas, monstros e criaturas pútridas que retornam para saciar quaisquer sedes de vingança que possuam. Para melhor pensar o estilo de Feldstein e seus quadrinhos, selecionei, para fazer um pequeno comentário, três histórias que compartilham, de alguma forma, um tema comum: a incapacidade de morrer ou os efeitos da postergação da morte.

Três níveis de postergação da morte

Na primeira delas, que vem a ser a melhor dentre as três, Feldstein cria um exótico efeito de suspense médico, deixando o leitor à deriva por quase todas as 7 tradicionais páginas das histórias da EC. The living death foi publicada em Tales from the crypt número 24, em 1951, e foi ilustrada com o traço tortuoso e deformativo de Graham Ingels, deixando os personagens da história com aspecto agressivo e grosseiro, o que não era novidade para os padrões da EC. Ao longo de uma narrativa sisuda, pontuada por muitos letreiros (este aspecto literário também era comum nos textos de Feldstein, que era mais uma mente criadora de histórias escabrosas do que propriamente um narrador habilidoso), somos apresentados a um conflito digno do final do século XIX: dois médicos, amigos de faculdade, anteveem futuros diferentes para a medicina, ao mesmo tempo em que amam a mesma mulher, Laurie. Enquanto Lester Jerome acredita que a maioria das doenças ocorre através de processos da mente (flertando com a pré-psicanálise de Charcot e Breuer, mesmo que mais de 50 anos depois que estas questões tomaram outros rumos na neurologia e na psicologia), Arnold Manning torna-se um halopata mais tradicionalista, sucesso em sua área. Jerome acaba se casando com Laurie, mas seus métodos (que incluem a hipnose) o levam ao obscurantismo, enquanto Manning alcança a glória como médico de renome. A ironia do destino leva a esposa de Jerome a desenvolver um câncer com pouquíssima probabilidade de cura. Tratada no hospital de Manning, a junta médica decide que o tratamento do médico famoso seria melhor do que os métodos pouco testados do marido dela. Laurie é tratada por Manning e morre, para o desespero de Jerome, que vocifera com olhar de desespero e vingança: “eu poderia ter salvado ela!”

A história poderia se encerrar neste caso por si só, já que estamos lendo um texto com um drama humano bastante razoável, com interessante insight sobre visões da medicina, ilustrado por uma arte simples, mas suficientemente brutal, seca e aterradora. Porém, Feldstein nos leva a um novo plot twist quando o próprio Manning é acometido por um câncer quase incurável, o que o leva a abandonar seus próprios métodos e a procurar, anos depois, o velho colega e rival pouco ortodoxo para tentar salvar sua vida. Amargurado e rancoroso, Jerome acaba aceitando realizar o tratamento por hipnose, infligindo-lhe a sugestão de “jamais morrer”, “independente de quaisquer circunstâncias”, “até que ele diga a palavra ‘Laurie’”. O que se sucede é bizarro. Manning efetivamente morre, quando seu coração sofre uma parada cardíaca, mas seu cadáver continua a emitir sons e grunhidos, mexendo-se grosseiramente, em algum centro motor, indefinidamente. E, por indefinidamente, considere-se meses. Manning treme e grunhe gemidos de dor até que a junta médica decide chamar o médico que o havia tratado: Jerome. É neste momento que emerge o único aspecto mais gore da história, justamente no último quadro, quando, em meio a resmungos, Jerome pronuncia a palavra “Laurie” e quebra a hipnose depois de meses. Instantaneamente, o corpo de Manning passa a putrefazer-se até virar uma massa disforme.

Apesar do final grosseiro (bem ao sabor da EC) e com um quê meio “WTF?”, a história de Jerome e Manning não deixa de ser uma das mais excepcionais de Feldstein, não apenas por não trazer monstros e elementos sobrenaturais, mas também por envolver sentimentos complexos como a vingança e a redenção, o amor e a competitividade profissional, além de um debate estranho a respeito do real alcance da hipnose, de um verdadeiro conceito de morte, alma, e do decaimento do corpo humano. Neste caso, o prolongamento da vida se dá por meio da sugestão sobre a mente, o que sugere uma separação em relação ao corpo, que insiste em morrer.

É um caso semelhante do que ocorre em Judy, you’re not yourself today, que Feldstein escreveu para Tales from the crypt  N° 25, ilustrada por ninguém menos que um precoce Wally Wood. Nesta curiosa história, uma formosa e loira dona de casa chamada Judy abre sua porta para uma velha mendiga que acaba por se revelar uma espécie de bruxa após praticar temível feitiço: à procura de um corpo jovem com o qual possa trocar de almas, ela encontra na beleza de Judy a saída perfeita, e executa a bruxaria. Aterradora, essa história se foca no choque com que a moça percebe a troca de corpos, tendo se tornado agora uma figura decrépita, frágil e horrenda. O marido de Judy, Donald, consegue, através de plano mirabolante, reverter o processo e assassinar a velha bruxa. O plot twist, neste caso, se dá quando, meses depois, mesmo com a velha enterrada no porão, a alma da bruxa consegue novamente fazer o feitiço se reverter, e Judy, de repente, se vê incorporada novamente no que restou, putrefato, do corpo morto. Judy se reergue, agora um monstro em decomposição, resistente à morte. 

Neste caso, a vida é prolongada por algum tipo de recurso sobrenatural, não tão sofisticado quanto a sugestão que rompe o equilíbrio entre morte e vida da história anterior, mas amparado por uma espécie de vontade recorrente e interminável de continuar vivendo, representado na alma demoníaca da bruxa. O que é mais exótico e perturbador é imaginar que, de alguma forma, e por algum mecanismo que desafia todo tipo de resolução que inclua o assassinato, o tempo, o enterro e a decomposição, os demônios sempre encontram alguma maneira de retornar e possuir os vivos.

Nossa última fábula de morte e decomposição foi retirada do imaginário do grande autor de ficção-científica Ray Bradbury, que transitava entre o pulp e a especulação filosófica, e cujas histórias foram em grande parte adaptadas por Feldstein (um grande fã do autor, que também reconhecia a qualidade da EC e firmou parceria) para os quadrinhos. The Black ferris foi publicada em Haunt of Fear N° 18, em 1953, e também apareceu por aqui na saudosa edição número 1 de Cripta do Terror, da editora Record, que saiu em 1991. Aqui, uma dupla de garotos vai a um parque de diversões velho durante uma noite sombria e presencia um acontecimento extraordinário: um homem adulto sobe na roda-gigante e, após algumas voltas controladas por um operador corcunda e cego, retorna... como um criança! O princípio todo da história é fabuloso e imaginativo, e parte da ideia de que esta roda gigante, com algum tipo de propriedade mágica sobre o tempo, acelera ou reduz (dependendo do sentido para o qual a roda está girando) o envelhecimento de quem está dentro dela. A trama se desdobra sobre um golpe praticado por este homem misterioso, que ora aparece como menino, ora aparece como adulto. O clímax ocorre justamente no final, quando as crianças procuram sabotar o plano maléfico deste homem-menino e abatem o operador cego, enquanto a roda gira para o futuro. O resultado, com a roda girando sem parar e o homem gritando freneticamente “parem a roda!”, não poderia ser menos assombroso: quando a polícia efetivamente consegue parar a roda, jaz apenas um esqueleto do homem, envelhecido “demais” pelo mecanismo de tal exótica máquina do tempo.

Se no primeiro caso temos um rompimento das relações normais entre mente e corpo através do procedimento meio mecânico e meio espiritual que é a hipnose, provocando o prolongamento de uma vida através de morte, e no segundo temos a insistência de um ser de pura vontade inefável de continuar existindo e se perpetuando (um espírito demoníaco), neste terceiro caso temos uma guinada completamente mecânica, quando o decaimento ou não do corpo e o prolongamento da vida é realizado por algo inteiramente externo: uma máquina, e, mais interessante ainda, uma máquina do tempo. Aqui, Feldstein encerra essa forçosa “trilogia” ao colocar cada um dos potenciais de ressurgimento ou apodrecimento do corpo e da alma em um limiar que inclui o mundo mecânico, da matéria, ou o mundo espiritual, da mente. Não que estas histórias, ingênuas e fabulosas apenas, em suas origens, se proponham a que sejam lidas em tal lente “metafísica”, mas não deixa de soar interessante imaginarmos que tais arquétipos como o da hipnose, dos demônios ou das máquinas do tempo possam ressoar uma significação comum, enredada: a do horror. Horror do prolongamento da vida. Horror do medo da morte.  

Popeye e os demônios

por Ciro I. Marcondes

Sabe-se que Elzie Crisler Segar escreveu e desenhou a tira diária Popeye até o ano de sua morte, em 1938. Desde as origens, com a tira Thimble Theater, que estrelava especialmente Olive Oil (Olívia Palito), Segar primou por um humor cotidiano, mas ao mesmo tempo escarninho e exótico, beirando o surrealismo. Sendo conhecedor da fama da qualidade destas tiras, demorei-me buscando alguma coisa que contivesse a produção original da Segar. Bati na trave em Buenos Aires, quando deixei de comprar o volume Popeye da imperdível coleção Biblioteca Clarín de La historieta, que continha material de seu criador. Recentemente, num sebo, consegui um volume de 1972 publicado em português pela Editora Paladino. Trata-se de uma revistinha velha, pregada com durex e feita de papel jornal, com anúncios de outros gibis como Pinduca, Mutt e Jeff, Mandrake e Zé, o soldado raso (hoje Recruta Zero), com suas capas redesenhadas à mão juntamente com biografias de gente como Vicente Celestino, Agnaldo Timóteo e Roberto Carlos. Custou-me quatro mangos e este texto.

O que me chamou a atenção neste gibi foi, é claro, a preciosa assinatura de Segar logo na primeira página, num layout simples: “Popeye” (em letras garrafais, como na logo tradicional do herói) por: Segar (em letras grandes). A questão é: se Segar morreu em 1938 e o “World rights reserved. Copr. 1938. King Features Syndicate. Inc” de todas as tiras nos confirma a publicação no ano de sua morte, como saber se o arco de histórias contido neste volume 4 de Popeye foi mesmo produzido pelo criador do comedor de espinafre? Bem, caso eu faça uma pesquisa mais profunda ou me depare novamente com esta história republicada, terei a delicadeza de corrigir-me aqui. Por hora, fico com a possibilidade de estar lendo um original do grande criador de Popeye, e possivelmente uma de suas últimas histórias.

Rei Zezinho: monarca hedonista? :)

O arco de tiras contido neste volume 4 de Popeye não possui um título, como é de praxe nas publicações da King Features, o sindicato/editora criado pelo famoso magnata William Randolph Hearst (que inspirou Cidadão Kane, e o mais importante mecenas dos primeiros quadrinhos), que lançou tanto Thimble Theater como Popeye. Como era também de praxe nas histórias de Popeye, assim como de Mandrake, Fantasma ou Rip Kirby, por exemplo, as tiras de cinco ou seis quadros eram sequenciais entre elas, continuando sempre longas histórias que os leitores acompanhavam afoitos, fosse semanalmente ou mesmo diariamente. Portanto, no material que me chegou em mãos, três assuntos predominam em uma série de situações malucas, muitas vezes non-sense, sem qualquer relação com o que estávamos acostumados a ver, por exemplo, na série animada do Popeye, por onde a maioria de nós primeiro travou contato com o marinheiro. São eles, os temas: os súditos de um inepto (rei Zezinho); o espírito belicoso das monarquias (rei Cabooso); e uma ameaça invisível (os demônios). O que isso tem a ver com o marinheiro Popeye? É uma pergunta que também até agora me aflige.

Dudu e Olívia

Popeye é um tipo clássico, e uma série de características importantes de um imaginário ligado a ele aparecem nesse arco de histórias: primeiro, o próprio marinheiro, aqui no papel de primeiro ministro para Zezinho (conhecido também por Zezé ou Gugu), coroado rei de um exótico país chamado Demônia. Como isso ocorreu, eu não faço ideia, já que não tive acesso ao arco anterior de histórias. Popeye é rabugento, viril, meio sacana. Sua participação na história é bastante coadjuvante, já que, ainda herdeiro de Thimble Theater, sua tira é na verdade uma ciranda de personagens malucos que vão entrando e saindo de cena, realmente como num pequeno teatro, cada um tentando resolver a situação à sua própria maneira, delineando o perfil caricato de cada. Temos, por exemplo, a manhosa Olívia Palito; o mesquinho Dudu, comedor de sanduíches, de índole meio imoral; o teimoso Poopdeck Paps, pai de Popeye, de 99 anos, um velho estranho, obcecado por exercício e tolo como qualquer outro dos personagens; temos Chiquinho, o gigantesco guarda-costas do rei Zezinho; além do próprio bebê-rei, filho adotivo de Popeye, que em sua meiguice parece ter herdado a vibe sacana do pai.

Poopdeck Paps: pai de Popeye, tão tolo quanto qualquer outro

Os quadrinhos destas histórias não possuem qualquer complexidade: são diretos e rasteiros, como a maioria das tiras dos anos 1930. Há pouquíssima variação no enquadramento (já que eram tiras, afinal de contas): quase tudo é moldado dentro de um pequeno quadro retangular virado pra cima, e toda angulação obedece ao plano americano ou ao plano de conjunto. Fiel ao gênero sitcom, o Popeye de Segar possui um traço ainda fino, delicado, claro, atento a pares como Richard Outcault, Chic Young ou Hergé. Se, no início, parecemos padecer a uma certa morosidade da história, sem pé nem cabeça, fora de contexto, fora de um cânone do personagem; logo começamos a nos aproximar da simpatia dos tipos que vão aparecendo, do padrão ritmado das repetições das gags, da ciranda de tentativas de se resolver os problemas, e do humor simplório, escarninho, meio mongol mas delicioso (screwball), que vai se apresentando neste estranho gibi.

Popeye meets Yellow Kid

Ameaça invisível, monarca inepto, seres belicosos

O enredo desta história é, como já disse, maluco: Zezinho, um bebê, é coroado rei de Demônia e precisa enfrentar, basicamente, dois perigos: os demônios que vivem no subsolo, que são criaturas mais afáveis e divertidas do que se imagina; e a rivalidade com um certo rei Cabooso, monarca do um país chamado Cuspidônia, que entra em crise diplomática com Demônia por assuntos da mais urgente importância: caretas, insultos, presentes desagradáveis, etc. Cada um destes assuntos pode ser submetido a uma análise, digamos, estrutural, já que estamos falando de categorias maiores e elevadas de poder e sociedade, como a monarquia e a religião. Segar, um dos heróis da história das HQs, um jovem iconoclástico lamentavelmente falecido de leucemia aos 43 anos, certamente sabia do poder sub-reptício que as mensagens de seus quadrinhos poderiam invocar, e não surpreende que, em primeiro lugar, possamos associar os demônios que vivem no subsolo de Demônia a algum tipo de “ameaça invisível” (o que nos leva desde ao Phantom Menace de Star Wars até a “guerra ao terror” de George W. Bush como exemplos da multiplicação deste meme).

Como os demônios nunca aparecem, é natural que todos os personagens passem a duvidar de suas existências, de maneira que, aos poucos, instigados por um rei que nada faz (Zezinho, um bebezinho, deflagra estruturalmente um tipo de hedonismo da própria monarquia), a própria população acaba se tornando paranoica, voltando-se uns contra os outros, mas ainda assim prestando devida deferência ao seu monarca. É apenas quando surge um conflito de natureza diplomática com outro rei inepto (mas que desta vez peca pelo belicismo, e não pelo hedonismo), é que a população de camponeses de Demônia passa a questionar a autoridade do próprio rei, forçando Popeye, o primeiro ministro, a tomar atitudes delicadas, na fronteira entre a guerra e a diplomacia. No fim das contas, a história trata de um discurso de reis, assombrados por uma possível ameaça invisível, enquanto a população, distante do poder, gira, camaleônica, de um lado para o outro, sem convicção de nada.

Com mil demônios!

Não surpreende, afinal, quando a hilária e abilolada história vai ganhando contornos mais sólidos, que, quando os demônios finalmente aparecem, eles não apenas demonstrem um comportamento de alguma maneira afável (um deles chega a ser apaixonar por Olívia), mas também possuam uma aparência bem “fofa”, de jeito também angelical, propiciando uma trégua no final. E foi justamente no final que eu, já não duvidando de mais nada nesta história, percebi que, em todo o quadrinho, Popeye não havia comido uma lata sequer de espinafre. Este clímax, bem emocionante, vale confessar, é guardado apenas para os últimos instantes, quando, após tentar de todos os jeitos bater nos demônios sem apelar para seu famoso super-alimento, Popeye, apanhando, pede uma lata a Olívia. O efeito, vale também dizer, é devastador, mas de um jeito muito digno, sem ser espalhafatoso, diferente de quando o acompanhávamos no desenho animado. Popeye, casca-grossa, meio que recruta a lata do poder apenas quando está sendo vencido pelo maior de todos os demônios. A lata, é claro, é o suficiente pra ele sentar a porrada em todos os outros demônios, que passam a trabalhar em favor da população. No final das contas, é o homem do povo, sem a ajuda dos dois lados do poder, é que consegue se sobrepujar, dentro de sua dignidade camponesa, e vencer a “ameaça invisível”, que também nem era tão ameaçadora assim. E é isso mesmo: Popeye luta contra demônios. Por essa você não esperava. ­

Lixo extraordinário: sobre as HQs de Zé Carioca


por Ciro I. Marcondes

No ano passado, numa frutífera excursão aos sebos, encontrei uma pequena coleção do Zé Carioca – edição quinzenal – entre 1971 e 1979 (pegando os – ainda modestos – 25 anos da Editora Abril), que consegui pechinchar pela quantia de R$ 1,00 cada, levando, ao todo, no final, umas 40 edições bem conservadas, sem grampo, bem amareladas (como não poderia deixar de ser), mas dignas. A coleção está toda furada, mas isso pouco me importava (não sou muito afeito aos esquisitismos do colecionismo). Após uma amiga me declarar que eu havia gasto 40 reais em uma bela pilha de lixo, resolvi ensacar aquilo e guardar para quando uma oportunidade interessante de aproveitá-la na Raio Laser aparecesse.

Sempre fui leitor Disney (é verdade que é difícil indicar algum tipo de HQ que eu não leia) desde a infância, e, por mais que estivesse distante desse universo há alguns bons anos (ou décadas), sentia falta dessa parcela tão importante da cultura de HQs aqui no blog. Disney acabou sendo bastante defenestrado por suas associações com o macartismo, além da presença daquele livro eficiente, mas academicamente chucro e datado (“Para ler o Pato Donald”), que cuidou de limar lentamente outros tipos de leitura inteligente de seus quadrinhos. Minha lembrança dos quadrinhos Disney sempre foi de narrativas versáteis, atuais, cheias de ricos universos de personagens, com arquétipos fortes (carregando, lá, seus preconceitos, mas, felizmente, naquela época ninguém se importava), variabilidade temática, instigações cientificas, sociológicas, uma fartura de benesses.

Minha pequena “pilha de lixo” vai do número 1031 até o número 1445, lembrando que, em primeiro lugar, esta série começa no número 449 (primeira estranheza) e que, em segundo, ela consta apenas de números ímpares, já que os números pares eram dedicados ao Pato Donald na Abril dos anos 60-70 (estranheza editorial número 2). É claro que, como estamos falando de Zé Carioca, estamos falando de um tipo especial de cultura Disney, ou seja, uma desenvolvida no Brasil e para o Brasil, e vou privilegiar aqui a análise deste aspecto das histórias. A imensa maioria delas é já da fase de editoração 100% nacional, provavelmente desenhadas pelo lendário Renato Canini, responsável pelo abrasileiramento absoluto do Zé nos anos 70, mas não há créditos.

As histórias do Zé nesta época são intensamente vivazes, muito coloridas, com familiar cenário brasileiro, e geralmente lidando com problemas mais afeitos ao leitor brasileiro: um tipo especial de assaltos e violência, por exemplo, ou a cultura do samba e outros tipos de cultura de matriz negra, geralmente excluídas do compêndio cultural da Disney, ou um certo temperamento mais despojado, elétrico e malandro de todos os personagens, contaminados por um senso de ética carioca que, sejamos francos, ainda faz bastante sentido. Portanto, selecionei quatro histórias que funcionam como um anedotário daquilo que encontrei em Zé Carioca ao chafurdar neste “lixo extraordinário”.

1: A cultura do western e a cultura da violência

Em “O mais procurado da cidade”, presente em Zé Carioca Nº 1037, de 71, acompanhamos a história se abrir com um belo requadro panorâmico desenhado de forma realista (grande sacada), em que uma grande tela de cinema mostra um cowboy atirando (Bam! Bam!), ao mesmo tempo em que silhuetas de personagens Disney observam atônitos. Logo depois, após mais um requadro anunciar o fim da história, vemos as silhuetas (dentre as quais podemos identificar a de Zé Carioca) conversarem empolgadamente sobre o filme. Saindo do cinema, diante do cartaz, Zé (ainda vestido de terninho, chapéu panamá e guarda-chuva, conforme seu visual clássico) empunha o guarda-chuva empolgado, entusiasmadamente falando em voz alta: “Menino! O Texas Bill é o máximo! É o quente!”

Esta pequena história, cuja moral se centrará num engano (Zé será confundido com um bandido e verá que vida “cheia de perigos” do faroeste não é tão legal quando vivenciada no “mundo real”), me faz pensar em dois aspectos dignos de nota: em primeiro lugar, a solidez da cultura do western no Brasil já nos anos 70, quando o gênero, em sua matriz americana, resfolegava. Filmes extremamente críticos à cultura do faroeste, como Os profissionais (66), Meu ódio será sua herança (69) e Pequeno grande homem (70), já delineavam o declínio do gênero, que nas décadas seguintes apenas perderia cada vez mais sua espantosa popularidade adquirida nos anos 30, 40 e 50. 

Como o entusiasmo do Zé com o filme de “Texas Bill” parece fresco como o de um menino vendo hoje “Os vingadores”, isso é amostra o suficiente da perenidade da cultura dos westerns no Brasil, com vários cinemas especializados, durante os anos 70, além da popularidade dos chamados “Western Spaghetti” (feitos por italianos), que vão se disseminar a partir especialmente desta década. O nome do filme de “Texas Bill”, “O Cruzeiro furado”, de fato parece parodiar os títulos dos filmes de Sérgio Leone. A história, simpática, ainda flerta com o gangsterismo e o noir, fazendo singela homenagem ao cinema, alinhavando a relação que o cinema de violência no Brasil tem com estas culturas estrangeiras. Se alguém se lembrou, na outra ponta da corda, um filme como Cidade de Deus, eu não acho que seja por acaso.

2: O Rio continua lindo

Em “Um guia em apuros” (Zé Carioca Nº 1207), o quadro panorâmico que geralmente abre toda história Disney mostra Zé Carioca em um modesto stand (o “Zé-Tur”) tentando dar viabilidade à sua agência de turismo. No fundo, nada menos que os morros da Urca e do Pão de Açúcar. “Conheçam o Rio! Férias! Sol! Verão!”. No quadro seguinte, após vermos as ofertas dos concorrentes, Zé olha, num plano frontal, para o próprio leitor e comenta, desanimado: “Ufa! E me disseram que o turismo é um bom negócio... mas por mais que eu grite... a turma vai toda pra agência concorrente!”

Tentando trabalhar (mas não conseguindo – como é a tônica da maioria das histórias do Zé Carioca) honestamente, Zé, aturdido com os baixos preços dos concorrentes (uns gatunos malhados), resolve implementar todo tipo de reforma no negócio para conseguir tirar um trocado: muda o stand de localidade (juntamente com seu amigo urubu, Nestor), abaixa os preços, mas nada muda. Resolvendo então pagar para ver qual o segredo dos gatos, eles descobrem que os concorrentes executavam um crime consideravelmente hediondo: levavam os turistas para cima de um morro e os assaltavam. Me pergunto se colocavam eles dentro de pneus enfileirados e tacavam fogo também, para depois jogar as carcaças na floresta da Tijuca.

Dadinho é o caralho!

Esta história me trouxe à tona dois imaginários sobre o Rio: primeiro, o turismo, que agora bomba tanto com as Olimpíadas, sempre primitivo, batendo na mesma tecla tropical, mostrando que, num estereótipo grosseiro em um gibi para as massas, ou numa campanha governamental “séria”, o Rio de Janeiro continua sob o signo de umas duas ou três características supostamente imutáveis. Em segundo lugar, o aparecimento, bastante agressivo, de uma terceira característica implicada no mundo caótico dos cariocas: a violência associada a uma inteligência intrusa e perversa, ou a selvageria do gangsterismo à brasileira. De alguma forma enraizado num paradoxo de eterno paraíso perdido, o Rio só tem salvação mesmo, nas páginas do gibi, na figura do malandro romântico que é Zé Carioca, trazendo sempre algo de “bom selvagem”, procurando sempre mostrar ao leitor cínico que naquele algures caótico que se valoriza o descaso e a trapaça, convive também a cultura do “viva e deixe viver” tropical, deitada na rede, jogando futebol.

Malandraij

3: Tô me guardando pra quando...

A edição número 1.111 de Zé Carioca, datada (precisamente) de 23/02/73, é uma edição de carnaval. Logo na capa, uma bela ilustração sobre fundo rosa-bebê, vemos um verdadeiro fuzuê com Zé, Donald, Pateta e toda turma batucando no tamborim, soprando corneta, soltando serpentina, cheirando lança-perfume (sic!). Quando abrimos o gibi, nos deparamos com a encantadora história “Um paulista na corte do rei momo”, um tema dificilmente batível em termos de brasilidade. Cheia de vitalidade carnavalesca, esta história vai contar o deslumbramento do desajeitado primo Zé Paulista quando é convidado por Zé Carioca para desfilar no carnaval mais famoso do mundo. Vale recontar a primeira página: Zé Paulista, de cabelinho penteado, terninho empoleirado e uma puída gravata, chega na rodoviária carioca cheio de dúvida e anseios, enquanto lê-se numa placa na própria rodoviária: “o serviço público rodoviário informa: faltam 3 dias para o carnaval”.

Zé Paulista, pontual e ansioso, pergunta-se onde estará Zé Carioca, que prometera buscá-lo na rodoviária. Ao mesmo tempo, num suspeito estereótipo de erudição paulista, pergunta-se como comprará ingressos para o Teatro Municipal. A verdade é que Zé Carioca estava na praia e vai buscar o primo apressado e “culto” com duas horas de atraso. O grande charme desta história é exatamente a caricatura um tanto ridícula, mas ao mesmo tempo insistentemente pregnante, que se pode observar da cultura de São Paulo a partir do primo de Zé. Este enfoque na dedicação, mas ao mesmo tempo na ingenuidade, acabam por definir o destino do personagem na história. Se o trabalho sem malandragem (exatamente o oposto do Zé Carioca) aparece como fator definidor do paulista na história, é justamente o apego ingênuo ao trabalho que o transforma no melhor tocador de tamborim de Vila Xurupita. Como bom paulista obcecado e dedicado, ele recebe a missão de tocar o instrumento, no bloco de rua da moçada, das mãos do próprio Zé. Levando a experiência como uma missão de vida ou morte e treinando dia e noite, ele acaba surpreendendo os jurados e vencendo o carnaval de Vila Xurupita. Diante deste panorama paradoxal, qual é exatamente, portanto, a visão construída sobre os paulistas nesta história? A do “mané” que não sabe tocar e perde o tempo treinando pateticamente, ou a do bastião da força de trabalho, eficiente até mesmo na cultura alheia? Esta singela historinha tem o poder de invocar as duas perspectivas.

Locomotiva do Brazeel

4:  Brasil grande

Por fim, uma das histórias que melhor atestam o carimbo de “brasilidade” atribuído às HQs do Zé Carioca está na edição número 1209, e tem por título “O sumiço dos herdeiros”. Aqui, novamente o primeiro requadro panorâmico, padronizadamente responsável por nos introduzir os conteúdos essenciais da história, é o guia que nos denuncia os signos para uma análise cultural. Num casarão iluminado a velas e com a presença elementos aristocráticos (uma armadura medieval, uma grande poltrona central), o velho coronel (sim, um coronel brasileiro à moda antiga) conversa com quatro de seus herdeiros, humildemente espremidos em um pequeno sofá. São eles: Zé Paulista, Zé dos Pampas, Zé Queijinho e Zé Jandaia, cada um representando o estereótipo cultural de uma região brasileira, fator bem marcado pelo chapéu que cada indivíduo veste. Este coronel, pintado como uma figura severa, mas de bom coração, explica que há um mistério: tentam matá-lo, e cabe aos herdeiros resolver esse problema.

Esta história vale-se de um sincretismo bastante bizarro, que associa o coronelismo arcaico brasileiro a uma certa aristocracia europeia, fazendo a casa do coronel parecer um castelo, e fazendo seus herdeiros parecerem, de algum jeito estranho, vassalos de uma casta nobre e digna. A história, portanto, desenvolve-se em exótica mistura do clima de uma fazenda no interior do Brasil, com direito a sotaque característico e comidas típicas, com romance de fantasmas europeu à Horace Walpole. No final das contas, Zé Carioca, que não participara da reunião por esperteza, salva a família do golpe planejado pelos primos tortos que não estavam sendo contemplados pela herança do coronel. 


Este coronel, que usa chapéu, bengala, monóculo e bigodinho, propõe-se na história a ser um signo exótico, de um antigo conformismo paternalista com culturas brasileiras arcaicas, ainda num manso traquejo de favores entre uma cultura herdeira do escravismo (ou de um militarismo torpe e corrupto) e uma certa dignidade empostada perdida na contemporaneidade. Que as regiões mais famosas do Brasil estejam presentes para abaixarem a cabeça diante de tal autoridade não surpreende e, mesmo sendo tiro pela culatra, a história do Zé Carioca acaba desvelando um sentido meio macabro da própria subserviência brasileira. Uma história de terror e fantasmas, sem dúvida.