Retornando à imagem. A metalinguagem é usada nos quadrinhos desde seus primeiros anos e aparece abundantemente nos quadrinhos de humor até os dias de hoje. De fato é um recurso retórico de efeito fácil, mas, em mãos hábeis, a metalinguagem ainda consegue exercer seu assombro poético. Esta imagem é, como todo requadro de uma página de HQ, uma janela. Mas Morrison abre a janela. Escancara. O olhar de espanto de Baker, representado de maneira honesta pelo artista Chas Truoug, se eleva em direção ao leitor e o puxa para dentro. É um vórtice de identidades, de arbítrios que se querem livres sem saber que seguem um roteiro. Tornamo-nos personagem direto da revista e por uma fração de segundo somos uma criação de Grant Morrison. Muito esperto senhor Morrison. Entretanto, havia algo mais, e, na busca deste algo mais, passei a seguir o senhor Morrison aonde quer que ele fosse. Mas não foi nele que encontrei respostas. Pelo menos não encontrei respostas diretas.
Não foram os limitados componentes estéticos da imagem que repercutiram na minha alma naquele momento. Como desenhista, Truoug é bastante limitado e exerce sua função de maneira bem burocrática e direta. Sua construção pictórica do rosto espantado é pobre quando comparada à imensa miríade de desenhistas que trabalhavam na indústria naquele período pré-Vertigo e esta dobradinha “bons roteiros X arte medíocre” vai ser uma bandeira que viria a se tornar o selo de quadrinhos adultos da DC Comics. A razão de minha obsessão residia no significado daquele momento na narrativa do personagem (o que estava sendo representado nas ações e gestos dos personagens), e a maneira com que este momento é foi passado ao leitor (as escolhas linguísticas que foram tomadas ao criar a cena). Interpretando esta imagem sob a luz das pesquisas empreendidas por Gilbert Durand é possível perceber que o efeito “mágico” da cena é resultado de suas características enquanto imagem simbólica.
A palavra “símbolo” vem do grego sumbolon que, assim como o hebraico mashal e o alemão sinnbild, implica uma reunião de duas metades. No caso do símbolo, uma reunião entre significante e significado. Significante é a parte visível do símbolo e esta possui 3 dimensões concretas: uma dimensão cósmica – que reproduz o que está visível a sua volta; uma dimensão onírica – que constrói sua imagem a partir dos gestos fantásticos de nossos sonhos e fantasias e esta intimamente ligada à nossa biografia pessoal; e uma dimensão poética – construída com a matéria prima da linguagem em seu momento de maior ímpeto. Se a arte de Truoug corresponde a dimensão cósmica, então a narrativa visual da imagem vai corresponder a dimensão onírica, e a metalinguagem corresponde à dimensão poética deste requadro simbólico. Como se pode ver, o lado significante do símbolo é infinitamente aberto em suas possibilidades figurativas. Mas é próprio do símbolo que este significante só se refira a uma “qualidade” não figurável.
Esta “qualidade” não figurável é o componente do outro lado do símbolo: o significado. Como o significante, o significado também é infinitamente aberto. Por não ser representável, o significado se espalha por todas as ordens de coisas e dimensões. A dimensão do significado é epifânica. No símbolo, significado e significante estão sempre divergindo, sua existência é uma aproximação feliz e fugaz. Esta inadequação só é superada pela redundância. A ação de sempre retornar a imagem simbólica de forma a reinterpretá-la, a corrigi-la e complementá-la. Como o fizemos em parágrafos anteriores. Da mesma forma este texto é a volta mais recente de uma redundância que minha alma executa desde os anos 90 em cima da imagem principal deste texto. Não à toa Durand descreve a redundância da imagem como com a imagem de um solenoide.
Vimos que a redundância exercida sobre a imagem do HA é baseada nas dimensões poética e onírica do símbolo que engendra. Durand estipula que as redundâncias estabelecidas por meio de relações linguísticas são conformam símbolos mitológicos, enquanto que as redundâncias que emergem dos gestuais oníricos e subjetivos prescrevem os símbolos rituais. A dimensão cósmica, a representação dos fenômenos do mundo, engendra múltiplas redundâncias. Quando afirmamos que a arte de Truoug é “pobre” esteticamente é porque são poucas as redundâncias possíveis no espaço que ele encena sua representação em comparação, por exemplo, com uma página de Little Nemo. Os símbolos destas redundâncias são os símbolos iconográficos.
Mas, voltando à imagem, e voltando aos quadrinhos. A complexidade da imagem simbólica é grande. E ainda mais complexo é o simbolismo em uma página de quadrinhos. Na HQ, diferentes tipos de símbolos se revezam na construção da narrativa. O próprio quadrinho pode ser considerado uma narrativa simbólica onde dois lados de propriedades distintas se encontram ligados de maneira indissociável. Mas no que tange à imagem em questão, identifico dois simbolismos originários de redundâncias distintas que exercem seu efeito sobre mim. O símbolo poético que a metalinguagem representa e o símbolo mítico do encontro que a imagem exprime.
Como vimos, Buddy Baker se encontra na imagem no ápice de um encontro epifânico. É uma jornada dentro de sua própria psique. Neste embate ele encontra consigo mesmo em sua versão original de Homem Animal. E este o mostra a verdade de sua condição como ficção. Na obra de Morrison o mito do labirinto é uma imagem persistente. Até em sua recente passagem pelo título de Batman, concluída em 2013, encontramos referências diretas ao mito e seus componentes: