LASERCAST #30 – Superestimados

LASERCAST #30 – Superestimados

Vacas sagradas? Cachorro morto? A equipe Raio se reúne pela primeira no Lasercast apenas para FALAR MAL de quadrinhos considerados consagrados e que fazem parte do cânone da mídia. Primeira edição de uma possível série sobre quadrinhos SUPERESTIMADOS. Quadrinhos comentados: “Reino do Amanhã” (Mark Waid e Alex Ross), “Homem-Animal” (Grant Morrison, Chaz Truog, Tom Grummet, Doug Hazlewood), “A Piada Mortal” (Alan Moore, Brian Bolland, John Higgins), “Blake e Mortimer – O Mistério da Grande Pirâmide” (Edgar P. Jacobs). Como convidado para este defenestrado papo, trouxemos o crítico Thiago Borges (d’O Quadro e o Risco) para também dar seus pitacos.

Participam do debate: Ciro Inácio Marcondes, Márcio Júnior, Marcos Maciel de Almeida e o convidado Thiago Borges.

Edição: Eder Freire.

Disponível em: SPOTIFY, APPLE PODCASTS, GOOGLE PODCASTS, CASTBOX, ANCHOR, BREAKER, RADIOPUBLIC, POCKET CASTS, OVERCAST, DEEZER

Read More

Miracleman: construção do mito em três atos

Miracleman: construção do mito em três atos

No dia 21 de março, o pessoal da Raio Laser fez algumas indicações de leitura para a quarentena. Eu sugeri as 16 edições de Miracleman feitas por Alan Moore no início dos anos 80. Bem, já que eu estava indicando, resolvi também passar pela experiência de maratonar o material, pois havia passado um tempo desde a última vez em que havia me debruçado sobre ele. Valeu a pena? Já adianto que sim. Tanto que resolvi escrever um texto mais completo sobre a importância dessa obra que, para mim, merece figurar lado a lado entre os grandes trabalhos do Bruxo de Northampton.

Read More

Cinco leituras sobre e para quarentena

Cinco leituras sobre e para quarentena

Reunimos o time completo da Raio para indicar, sem qualquer tipo de restrição, uma leitura de quarentena. Uns foram para o tema do drama que vivemos hoje. Outros para razões pessoais. Todos estão com o c* na mão. (CIM)

por Ciro I. Marcondes, Pedro Brandt, Lima Neto, Marcos Maciel de Almeida e Márcio Jr.

Read More

O fogo de Promethea

Chackal pode ser estreante na Raio Laser, mas não é nenhum estranho no mundo das HQs. Artista plástico formado pela Universidade de Brasília, acompanha, há várias décadas, o universo dos quadrinhos com olhar arguto. Figurinha fácil em diversos fóruns especializados na internet, este marvete inveterado circula com diversos pseudônimos na rede, para preservar sua charmosa aura de mistério. É bem possível que você já tenha lido – e se divertido – com alguns de seus comentários por aí. Esta é sua primeira colaboração em nosso site. Seja bem-vindo.  Que venham muitas outras. (MMA)

por Chackal

Toda boa narrativa deve ser capaz de impressionar, para garantir que a estória a ser contada desencadeie empatia e cative o leitor. Muitas obras entraram para a História da Literatura universal por meio desse artifício e tornaram-se influentes através das eras. Em Promethea, a competência de Alan Moore não foi só empregada para provocar o mesmo efeito, desenvolvendo uma narrativa pujante, mas seu gênio criativo também atingiu a rara proeza de torná-la transformadora. Promethea é uma personagem ligada à intuição, ao inconsciente e às artes mágicas, elementos oriundos da imaginação humana. Ela é análoga a Prometheus, o titã mitológico que roubou o fogo dos deuses e o deu aos homens, habilitando-os a usar o intelecto para moldar o universo. 

Como tudo na obra de Moore, a coincidência de nomes não é acidental, uma vez que o mito de Prometheus encerra a essência da transformação, da evolução e da superação. Ao criar uma heroína que provém da imaginação de artistas e poetas, cujos poderes a propiciam transitar em mundos com diferentes teores de realidade e de subjetividade, Moore não pretendeu escrever apenas sobre super-heróis, muito embora sua narrativa ainda esteja voltada para as histórias em quadrinhos. Ele quis, na verdade, ir mais além e tratar do legado de Prometheus, interpretando o fogo dado generosamente à humanidade como uma alegoria, uma revelação para o caminho do autoconhecimento, da iluminação divina do ser humano.

À esquerda, Prometheus; à direita, Promethea: hermenêutica.

A inspiração pela Jornada do Herói

Na antiguidade clássica, o desenvolvimento das estórias que se pretendiam dramáticas requeria artifícios eficazes para unir artista e plateia indelevelmente. Um personagem era alçado ao status de herói se suas aventuras contivessem a mistura ideal entre inspiração, provação, superação e catarse junto ao público. Assim, narrativas épicas eram elaboradas sob o padrão da Jornada do Herói, ou Monomito – trama progressiva que demonstra tanto a evolução do protagonista quanto o vislumbrar de sua saga, estimulando as emoções do espectador e lançando-as para o palco, para a arte e para interação imersiva. Nele, o herói está atado ao destino, cuja propensão à catástrofe o impele a enfrentar desafios, a aprender com seus erros e a transcender suas limitações.

Essa jornada fundamenta-se na dialética humana, pela qual as vicissitudes do indivíduo são testadas e suas potencialidades concretizadas à custa de muito esforço e sofrimento. O herói, que conta com aliados durante suas atribulações, treina e domina o que aprende com seus mestres para lidar com os obstáculos que deve superar. Ao garantir sua vitória, seja física ou psicológica, seja mental ou espiritual, sua saga chega ao clímax, quando ele toma as rédeas de seu destino, em desafio aos desígnios dos deuses, e encerra sua jornada de modo apoteótico. Alan Moore prefere iniciar Promethea no ocultismo não pelo sacrifício, mas rendendo-a aos prazeres tântricos – no enfrentamento de velhos tabus, a heroína obtém controle de seus poderes e se emancipa.

A iniciação de Promethea: domínio pelo autoconhecimento.

Para Moore, é na harmonia dos contrários que a jornada de Promethea se afirma: a personagem ressurge no mundo ao fim de um século XX mais vinculada à razão que à intuição, sendo pelo contraste entre alguém com poderes puramente mágicos e uma realidade fundamentada na Ciência que se dá o ímpeto necessário para destravar as portas da percepção. Seu propósito, porém, não advém somente do domínio recém-conquistado sobre os arcanos do Tarô ou pelo misticismo oriental, configurado no poder dos chacras e da numerologia, mas também da partilha desse treinamento com o leitor, seu público. A evolução de sua saga se dá pela cumplicidade de quem a acompanha pelo trajeto em que essa heroína se comprometeu a trilhar.

A dialética de Promethea

A provação pela Cabala

O diagrama da Árvore da Vida.

Segundo o livro do Gênesis, quando Adão e Eva comeram o fruto da Árvore do Conhecimento, Deus os expulsou do Paraíso e escondeu deles a Árvore da Vida. Desde então, sacerdotes, rabinos e estudiosos buscam restabelecer contato com o divino. A Cabala é um sistema de crenças, que, por um lado, busca explicar a origem do universo, ou Cosmogonia, e, por outro, prega a evolução humana, ou Ascese, como meio de reaver a aliança de Deus com a humanidade. A prática cabalística sintetizou todo o saber científico e as convicções mais fervorosas então disponíveis em um diagrama conhecido por “Árvore da Vida”. Foi através dele que o universo, emanado a partir de Deus, filtrou-se por dez gradações de existência e manifestou como realidade tangível.

Na época do primeiro Templo de Salomão, seu Sumo Sacerdote usava a Arca da Aliança como meio para a obtenção de aconselhamento divino, o que significou que as práticas cabalistas serviam-lhe como itinerário para a enlevação, ao partir da realidade que conhecemos e ascender em direção a Deus. Há dez estágios de consciência pelos quais se deve passar, a fim de que o indivíduo comungue com as forças primordiais do universo e, além delas, com seu criador. Nesses estágios ou esferas, todas as impurezas mundanas de quem percorre os vários caminhos da Árvore da Vida são decantadas. Trata-se, portanto, de uma senda especial de autoaperfeiçoamento, que requer abnegação e sacrifício de quem pretender segui-la. 

A ambição do praticante da Cabala é ultrapassar os limites do mundo real.

Um dos pontos altos na narrativa de Alan Moore, a interpretação dos mundos que sua heroína pode acessar, por ser ela a personificação da imaginação, reforça a cumplicidade entre leitor e personagem na transmissão do conhecimento. Herdado de Toth-Hermes, deidade mercurial que o promove, o aprendizado é o desafio que enreda a personagem a sua saga, tanto no espaço quanto no tempo. Neste, aguçando-lhe a curiosidade sobre seu recém-descoberto destino; naquele, provocando a vontade de compreender sua função no mundo em que habita. Ambas as premências levaram-na a buscar, nos ensinamentos cabalísticos, o sentido de sua jornada heroica, tornando o percurso pela Árvore da Vida trajeto natural para uma criatura como Promethea.

A ‘Divina Comédia’ como exemplo de superação

Segundo Dante Alighieri, para chegar ao Paraíso, é preciso primeiro atravessar o Inferno. Ao descrever sua trajetória por mundos fantásticos, este autor colocou a si próprio como protagonista desse sacrifício titânico. Aliando a seus conhecimentos clássicos sua percepção de vida e renovando sua fé por meio da razão, ele enfrentou os tormentos infernais, as provações no Purgatório até alcançar o êxtase celestial. Contando com a orientação de Virgílio, poeta da antiguidade romana, que havia sido o último a escrever sobre a descida ao submundo, ou Katabasis, Dante utilizou seu périplo oportunamente para um exame profundo de consciência, sem o qual não lhe seria possível compreender o que presenciou na travessia desses três mundos.

Dante, Virgílio e o barqueiro Flégias singram as águas do rio Estige – Eugène Delacroix (1822).

Inferno é onde Deus está ausente, por isso não há luz nem calor, que não o da punição severa. Os espíritos, chamados por Dante de sombras, sofrem o pesar de uma densidade excessiva, que não lhes permite movimentar – jazem amarrados nas chamas, enraizados ao chão, atolados em lodo, afixados às rochas, submersos em fontes sulfúricas ou presos no gelo. A prisão impede-lhes qualquer esperança de jornada e, por conseguinte, de redenção. Purgatório, por sua vez, é uma montanha insular, na qual as trajetórias são circulares, determinadas como método de purificação. Os movimentos ali estão restritos à eterna rotina, que só se conclui obtendo-se purgação. Por isso, parecem carecer de qualquer evolução. A expiação só ocorre quando a consciência se purifica.

À esquerda, o Inferno - Bartolomeo di Fruosino (1430-5); ao centro, o Purgatório - Ugo Foscolo (1822); à direita, o Paraíso – William Blake (1825).

É a partir do Purgatório que a jornada de Dante se assemelha à heroica, embora a dantesca seja uma subversão, pois sua comédia se opõe à tragédia por diferir tanto na escolha do protagonista quanto na finalidade dramática. Tragédia é desempenhada por heróis ou semideuses, como Prometheus, que desafiam as convenções divinas numa aposta contra o destino. Comédia é a senda do homem comum, a provocar debates a respeito de suas escolhas feitas durante a vida. Se, no Inferno, as sombras em danação perderam todo o arbítrio; no Purgatório, elas labutam para reavê-lo. Essa é a razão dantesca, fundamentada no pensamento clássico que Virgílio simboliza e fio condutor a transcender os inúmeros obstáculos mitológicos e bíblicos que se perfilam na narrativa.

À esquerda, os mundos dantescos; à direita, a Árvore da Vida (expandida).

No topo da montanha do Purgatório, localiza-se o Éden, onde, segundo escrituras da Torá, reside a Árvore da Vida. Ali, encontra-se Beatriz – aquela que o autor sempre idealizou como símbolo da graça e perfeição. Beatriz é a Promethea de Dante. Foi ela quem intercedeu em favor de Dante, rogando a Virgílio seu auxílio para a jornada até ali. Ela, a partir de então, com o refinamento espiritual de Dante, que, purificado por suas atribulações, eliminou de sua consciência as dúvidas acerca da fé na humanidade, na justiça e no amor divinos, o alça ao Paraíso. Essa ascensão, ou Anabasis, embora não seja claramente inspirada na Cabala, converge com ela em diversos pontos, sendo os mais notáveis a trajetória da enlevação em si e a descrição dantesca das esferas celestes.

À esquerda, Beatriz aparece a Virgílio, em busca de ajuda para Dante – Gustave Doré (1857); ao centro, Beatriz recebe Dante no Éden – Amos Nattini (1936); à direita, Beatriz e Dante acessam a 8ª esfera celestial – William Blake (1825).

O Paraíso, segundo Dante, é um mundo de leveza, virtude e êxtase. É onde as almas detêm, segundo lhes permite a consciência, liberdade de ir e vir ao longo de 10 esferas com realidade, significado, musicalidade e tempo próprios. Percorrer os céus do Paraíso é transfigurar espírito e mente, tornando noções mundanas de tempo e espaço ou vida e morte desimportantes. Em Promethea, sua enlevação preenche lacunas, dissolve dúvidas sobre sua origem, ao recuperar memórias passadas, e reafirma suas intenções futuras. Superadas as provações, a aprendizagem encerra-se e, iluminada, a personagem compreende sua verdadeira função no mundo. Se, para Dante, a comunhão com Deus é o ápice de sua jornada; a união divina destrava, em Promethea, o começo do fim.

A iluminação de Promethea: transcendência.

O fim do mundo como catarse

A narrativa de Alan Moore empresta ao leitor parcela da responsabilidade que a heroína carrega em sua saga. A evolução místico-heroica de Promethea, em tese, ocorre em paralelo com sua instrução sobre novos modos de interpretar a realidade das coisas. Sua ascensão, transfiguração e posterior iluminação insinua a verdadeira jornada para quem deseja desvendar os mistérios presentes no universo. Quando Promethea fundiu-se a Deus, sua percepção tornou-se onisciente, dando-lhe convicção de que o papel do herói é contribuir para o bem-estar do homem comum. Isso não significa entregar a poucos escolhidos essa função. Embora o caminho para isso seja longo e tortuoso, ele é tão pessoal quanto a contribuição havida entre personagem e leitor.

Encontro com Deus: tempo, espaço, vida e morte, elementos intercambiáveis de um eterno retorno.

Ao retornar ao mundo real, Promethea hesita em dar a ele outro rumo, pois essa ideia seria apocalíptica nas mentes das pessoas. Sua realidade natal não é a imaginação – esta lhes foi tolhida, domesticada e modulada pela Ciência na Terra, tornado-as dependentes e negligentes. Apenas alguns eleitos detinham a responsabilidade heroica de zelar pelo mundo, embora eles o mantivessem sempre incólume, incapaz de mudar. A decisão de Promethea vem, então, sobrepujar todas essas coisas e alterar o status quo, mas isso estava longe de ser o fim dos tempos. O apocalipse é definido pela Bíblia como o momento em que o mundo passaria por mudanças profundas, com o triunfo do bem, ou iluminação, sobre o mal, ou ignorância, numa catarse universal e definitiva.

Esse evento, porém, não foi brusco ou traumático. Moore descreve o apocalipse de Promethea como uma conversa materna. Ao transmitir a seu leitor os conhecimentos herméticos e ocultos, seu entendimento o libertou, tanto pelo conforto quanto pelo incentivo. Conforto, na certeza de que a trilha para o conhecimento mais sublime está aberta a todos; incentivo, porque, ao seguir essa trilha, qualquer um pode ser o herói na busca pela felicidade.

Promethea, tal qual seu homônimo mitológico, democratizou o fogo antes reservado a privilegiados, trazendo à humanidade, enfim, ciência de suas responsabilidades. Nesse sentido, a narrativa de Moore passou a desempenhar a função de manual prático para a sabedoria, da qual o céu é literalmente o limite.

Cumprimentos a Alan Moore por essa jornada transformadora.

Especial editora Pipoca & Nanquim: 5 resenhas padrão RAIO

Semana passada publicamos uma entrevista reveladora com Alexandre Callari e Daniel Lopes do excelente PIPOCA & NANQUIM (canal e site), revelando tudo sobre o empreendimento da nova editora. Nossa relação com o Pipoca é antiga, começamos em períodos muito próximos (desde 2011, creio). Eu e o Pedro Brandt chegamos publicar alguns textos da Raio por lá. Nossos caminhos acabaram se separando (a Raio continua... bem... do tamanho de um tamanduá mirim, e o Pipoca é um dos maiores sites de quadrinhos do Brasil), mas nunca deixamos de admirar o empenho, erudição e paixão pelos quadrinhos desses caras. Confesso que às vezes vemos os vídeos do P&N na TV e realmente comendo pipoca, e admiramos profundamente a iniciativa da editora. Isso significa que vamos apenas pagar pau acriticamente para os lançamentos? Obviamente que não. Isso aqui é Raio Laser. Os quadrinhos do P&N são realmente muito criteriosos e responsa, mas nosso olhar procura ser clínico. Dito isso, seguem cinco resenhas RL para os cinco quadrinhos lançados pela editora do P&N até agora. (CIM)

por Pedro Brandt, Marcos Maciel de Almeida, Lima Neto e Ciro I. Marcondes

Espadas e Bruxas - Esteban Maroto (Pipoca & Nanquim, 2017, 260 p.): Quando o assunto é “espada e feitiçaria” nas histórias em quadrinhos, é possível afirmar que o primeiro nome que vem à cabeça dos leitores – especialmente leitores brasileiros – é Conan. A popularidade alcançada pelo adorado bárbaro criado por Robert E. Howard por aqui – e não apenas – é tamanha que acaba por ofuscar outras iniciativas do gênero. E, especialmente na Europa, existe uma vastidão de HQs ambientadas nesse universo ou que, de uma maneira ou outra, compartilham de seus elementos – a exemplo dos clássicos belgas Thorgal

e Chninkel, dos mestres da BD Jean Van Hamme (roteiro) e Grzegorz Rosiński (arte), ou O Mercenário, do espanhol Vicente Segrelles. A revista Heavy Metal é outra publicação na qual “espada e feitiçaria” aparecem com frequência. E essas obras deixam claro que dentro desse subgênero cabe muita coisa, diferentes abordagens, temáticas e maneiras de contar histórias. E, nesse sentido, a leitura (ou releitura) das HQs do espanhol Esteban Maroto em Espadas e Bruxas, título inaugural da editora Pipoca & Nanquim, é bastante revelador.

Num dos textos presentes no álbum, assinado por Roy Thomas (roteirista fundamental para o sucesso de Conan), ele relembra da dificuldade de Maroto em se adaptar ao método Marvel de fazer quadrinhos, ou seja, o artista desenha a história a partir de um argumento e, posteriormente, os diálogos e textos são acrescentados. É de se imaginar que o espanhol também encarasse como um desafio o padrão de diagramação das páginas estabelecido pela Marvel, um contraste radical com os layouts imaginativos e fluidos característicos de seu trabalho.

Ainda que Conan, à sua própria maneira, faça parte do ambiente contracultural dos comics da década de 1970, narrativamente falando, suas histórias seguem formatos consagrados. E, pode-se dizer, visualmente são até um tanto quanto caretas em comparação às aventuras psicodélicas materializadas pela tinta de Esteban Maroto.

Se as histórias escritas por Robert E. Howard, Roy Thomas e companhia são elementos-chave, decisivas para a adesão de tantos leitores às HQs do bárbaro cimério, as ilustrações de Maroto são a senha para adentar não apenas em um ambiente onde convivem guerreiros, monstros, sortilégios mágicos e sensualíssimas donzelas em perigo, mas o caminho para se conectar com os recônditos da própria imaginação do leitor. Sua arte, de figuras esguias e insinuantes, desliza em cenários que parecem brotar do ar e desaparecer ao vento, em traços que evocam tanto os entalhes da gravura quanto os rococós art nouveau de Alphonse Mucha e os mistérios em preto e branco do expressionismo no cinema. O que Maroto oferece, propositalmente ou não, é uma viagem onírica, uma visita ao subconsciente, um afago à virilidade em seu estado bruto e juvenil. O que vale aqui é a fantasia enquanto se dá o momento da leitura. Tal qual um sonho.

Espadas e Bruxas compila as histórias dos personagens Wolff, Dax e Korsar, todos eles, bárbaros arquetípicos (e sem personalidade muito marcante) em busca de vingança, redenção ou o amor de uma bela mulher – o erotismo, elemento constante nessas HQs, é de deixar a imaginação fervilhando! Os antagonistas são forças vilanescas e sobrenaturais que só podem ser vencidas pela sagacidade ou pelo aço. Protagonistas à parte, a impressão é que estamos lendo as aventuras de um mesmo personagem. O que falta em originalidade ao roteiro (truncado em alguns momentos, especialmente nas primeiras histórias) é compensado em carisma. Afinal, o que temos ao longo das páginas é escapismo da melhor qualidade, um deleite visual para ler e reler.

Com capa dura, papel couché, textos contextualizando o autor e suas criações, Espadas e Bruxas faz jus ao talento do gigante Esteban Maroto. Com ele, a editora Pipoca & Nanquim chegou ao mercado em grande estilo. (PB)

Cannon – Wallace Wood (Pipoca & Nanquim, 2017, 274 p.): Wallace “Wally” Wood é um desses colossos que atravessaram eras nos quadrinhos. Com seu (mutável) estilo viril e cheio de movimento, ele parece presente em tudo que importa no que tange ao quadrinho americano: fez Spirit, Terry e os Piratas, Weird Science, MAD, Demolidor, entre mil outras coisas. Era um quase típico homem da “war generation”: lutou na grande guerra, era apaixonado por armas e mulheres. Matou-se com um tiro na cabeça em 1981.

Por estes e outros motivos, Wood é espécie de Hemingway dos quadrinhos: um cachorro louco à solta com sua arte vigorosa e implacável. Assim, o lançamento de Cannon – uma de suas HQs de guerra eróticas publicadas em jornais militares para os combatentes do Vietnã nos anos 70 – pelo Pipoca & Nanquim preenche uma das muitas lacunas no que concerne a Wally Wood no Brasil.

Cannon é um catatau de tiras executadas à infalível perfeição de Wood, e ao mesmo tempo um inventário de estereótipos da Guerra Fria e dos anos 70. O personagem-título é uma perfeita “máquina de matar” estilo “macho man” que trabalha como agente para o serviço secreto americano. Dentre as aventuras desse anti-herói estão coisas como sabotar um escroque e comuna governo latino-americano, desbaratar um grupo “terrorista” de hippies drogados (Cannon chega a mandar uma herô só pra “manter as aparências”) ou simplesmente dar umas porradas no marido corno de uma mulher que ele estava dando uns pega.

É tudo extremamente canastra, bem ao gosto exploitation dos 70’s, e não deixa de lembrar uma pornochanchada brazuca (mas com esteroides). De toda maneira, é inevitável pensar esta produção como um excelente modelo da mentalidade de seu tempo: rude, grosseira, ideologizada, polarizada. E ainda muito maneira porque tão autêntica.

Certo, canastrice. Uma HQ como Cannon serve a diversos propósitos: os soldados do Vietnã caíam no onanismo ao olhar as inegáveis curvas das mulheres de Wood (invariavelmente peladas); o fã de exploitation vai encontrar muita trasheira ideológica e sem-noçãozice embaladas num formato barato de quadrinhos (não aqui nessa edição luxuosa, é claro), mas super “cool”; quem gosta de quadrinho de guerra vai se deparar com um contexto interessante de representação da guerra fria, também ilustrado em arte narrativa de primeira; e o historiador/aficionado dos quadrinhos vai ter a oportunidade ver o lápis de Wood em um de seus auges.

Portanto, Cannon é um lançamento coringa, e quem gosta de HQs antigas (tiras especialmente) poderá adentrar num ritmo denso e dinâmico, dificilmente encontrável em tiras dos anos 30 e 40, por exemplo. Wood é famoso por ter predileção por angulações cinemáticas, e a qualidade pura de suas ilustrações é nada menos que espetacular. Poucos desenham explosões, tanques, aviões e até estilhaços com a personalidade e realismo que ele imprime aqui. Cada quadrinho seu parece feito com paixão e esmero. Cada um deles poderia ser emoldurado e fazer bonito.

É claro que alguns podem reclamar do conteúdo inegavelmente machista da HQ. Estamos falando de exploitation + exército americano + 70’s, e o machismo é meio que ingrediente inevitável desta fórmula. Porém, para além disso há aquela ambiguidade paradoxal de um momento em que ideias de progressismo e conservadorismo se alternavam com indistinção.

Como em um filme de Russ Meyer, as mulheres de Wood são violadas e humilhadas, mas ao mesmo tempo assumem as rédeas das tramas em diversas oportunidades, não são indefesas, rivalizam com os heróis “másculos”. A inspiração para estas vixens de metralhadora vem, logicamente, dos mestres e comparsas de Wood como Eisner em Spirit (e a fatale P’Gell) ou Milton Caniff em Steve Canyon (com a empoderada Miss Copper Calhoon). Companhias e influências que, claro, garantem a boa leitura desse gibi. (CIM)

Moby Dick – Chabouté (Pipoca & Nanquim, 2017, 250 p.): Adaptações em quadrinhos de obras originárias de outras mídias são, em geral, mais sem graça que picolé de chuchu. As inúmeras versões de filmes de super-heróis dos anos 80 e 90 – que, para início de conversa, já não eram grande coisa – estão aí para não me deixar mentir. Este tipo de subgênero (HQ de filme de herói) falhou tão fragorosamente que deixou de dar o ar de sua desgraça de uns tempos pra cá. Melhor sorte tiveram as adaptações de livros, que nos deram bons gibis como Cidade de Vidro (de David Mazzucchelli) e a série Parker (de Darwyn Cooke). 

Tais publicações mostraram as possibilidades de complementaridade entre as diferentes formas de expressão artística.  E isso nos leva ao caso em questão: Será que a Moby Dick do francês Chabouté, recém lançada pela editora Pipoca & Nanquim acrescenta algo à leitura do clássico do americano Herman Melville? E será que a pergunta anterior faz algum sentido?

Vale a pena comparar obras oriundas de mídias milenares – como a literatura – com aquelas provenientes dos irmãos temporãos – como os quadrinhos?

Acho que sim. Agora, para melhorar as condições de avaliação, vou comparar Chabouté não apenas com a obra-prima de Melville. Para que a coisa não fique muito desigual, também vou comparar gibi com gibi. Então o esquema vai ser o seguinte: cotejarei o Moby Dick de Chabouté com a obra original para, na sequência, analisar a HQ do francês em relação a outra adaptação. Escalei, para isso, ninguém menos que Bill Sienkiewicz (carinhosamente chamado de Bichoquébicho por alguns) e seu Moby Dick de 1990.

Para quem não sabe, o livro de Melville retrata a obsessão de um homem, o capitão Ahab, em sua sede de vingança contra o grande cachalote dos mares, Moby Dick, que lhe arrancara a perna esquerda em um encontro pretérito. Cego de ódio em sua caçada pelo animal, Ahab não se importa em colocar em risco o destino da tripulação do navio baleeiro Pequod, levada a reboque pela loucura de seu líder.

Não que obsessões sejam necessariamente ruins. Chabouté foi cabra macho ao topar adaptar o denso calhamaço de quinhentas páginas. O resultado foi um trabalho de fôlego, que revela determinação semelhante à do capitão do Pequod. Outra escolha arriscada, mas que deu certo, foi a de utilizar apenas o texto original nos balões e recordatórios. Embora por vezes arrastada, a narrativa consegue envolver o leitor na irreversível e fatídica viagem do grupo que embarcou – inconscientemente – no sonho/pesadelo de um único indivíduo.

Talvez por falta de espaço ou para aumentar o dinamismo do gibi, Chabouté praticamente passa em branco pelas partes descritivas do livro. Momento confessional aqui. Nunca me importei muito com baleias, mas depois de ler o romance original, me apaixonei pelo “bichinho”. E isso tem muito a ver com as partes em que Melville, estuda, com riqueza de detalhes, as diferenças entre tipos de baleia, métodos de corte da carne, aproveitamento da banha e do espermacete, condições de trabalho dos baleeiros e etc. Isso fez falta na HQ, que deixou de lado o teor enciclopédico da obra original. E, paradoxalmente, Chabouté dá uma escorregada ao investir numa pegada mais didática que artística em seu Moby Dick. Explico. Um problemas do gibi está em sua abordagem excessivamente fiel ao livro. Está tudo muito certinho e bonitinho. Faltou um pouco de transgressão aqui e acolá. Queria ver mais do DNA do francês ali, mas o sangue está ralinho.

Interessante que algumas das pilastras mestras do original não tenham sido inseridas, embora a HQ pretenda ser uma adaptação bastante respeitosa. Está ausente, por exemplo, o trecho inicial e memorável do livro, a clássica frase “Chame-me Ismael”. Lamentável, também, é a falta de menções ao Cachalote branco como o “Leviatã” dos mares, denominação repetida ad nauseam por Melville para projetar a imagem de poderio e terror incitados pelo personagem-título. E aqui chego ao ponto nevrálgico de minha análise: está ausente, no gibi, a sensação de grandiosidade épica tão disseminada no livro. Aí você poderá dizer: sim, mas são mídias diferentes e nem sempre é possível transmitir as mesmas emoções. Eu poderia até concordar contigo. Mas eis que aparece o Moby Dick de Bill Sienkiewicz para me convencer do contrário.

O gibi do americano tem um quinto das páginas (250) do Moby Dick de Chabouté. É menor, mas, incrivelmente, mais completo. Tem mais ousadia e liberdade, sendo, portanto, mais fiel ao estilo “faca nos dentes” de Melville. A HQ do francês é bem comportada, mas quadradinha. Já a publicação de Sienkiewicz é um prato cheio de formas retilíneas e anguladas, como de costume. É quadrado, mas desce redondo. O mergulho na obsessão de Ahab é mais palpável na construção das páginas e dos recordatórios lisérgicos de Sienkiewicz. Chabouté é muito linear. E obsessões não são lineares.

OK. Chabouté já levou bordoadas a torto e a direito nas comparações acima. Mas o gibi se segura independentemente das outras versões? Com certeza. Como obra única, o Moby Dick de Chabouté nada de braçada. É um grande gibi em vários sentidos. Extenso, imponente e bonito pra chuchu. A edição brasileira está muito bem cuidada e a capa dura preta fica uma beleza na estante.

Não acredito que adaptações devam ser idênticas à fonte inspiradora. Longe disso. Na minha modesta opinião, o negócio é manter-se fiel à essência do original. E esse é o grande pecado de Chabouté. Melville e Sienkiewicz focaram suas obsessões para parir publicações que exalam grandiosidade e pungência. Chabouté, por sua vez, foi mais burocrático e “by the book”. Uma pena. Ao final da leitura das obras dos americanos, senti-me em frangalhos, como que atingido por um vagalhão. Após ler a obra do francês, a sensação estava mais para mergulho em praia sem onda. É gostoso, mas não dá frio na barriga. (MMA)

O Moby Dick de "Bichoquébicho"

Beasts of Burden: Rituais Animais – Jill Thompson e Evan Dorkin (Pipoca & Nanquim, 2017, 186 p): Rituais macabros, satanismo, seitas, mortos-vivos. O luto da morte, almas presas entre dimensões, assassinatos brutais, evisceração, carnificina por toda parte. Estes elementos, que estão tão presentes em Beasts of Burden, podem destoar de uma primeira olhadela no luxuoso livro, que traz cândidas ilustrações da “cult” Jill Thompson (Os Perpétuos) e roteiros sagazes de Evan Dorkin, oriundo do mundo da animação. E é esta alquimia entre os elementos podreira (um horror nada ingênuo) e o aspecto inocente dos protagonistas (cães e gatos que se comunicam entre si), além das páginas pintadas com sutileza (que remetem a pintores como Matisse e Sorolla – e não é coincidência uma dose de “fauvismo” nestas aquarelas de animais) que fazem desta uma HQ bastante especial.

Burden é uma coleção de histórias estilo “clube de investigação”. Neste sentido, pende para o lado juvenil da coisa, indo da tradição que inclui os “Karas” (de Pedro Bandeira – alguém se lembra dessa tosqueira?), passando por Deu a Louca nos Monstros até coisas como Stranger Things. Nostalgia, terror, noites geladas no sofá vendo VHS. O “twist” ocorre quando Dorkin insere estes elementos propriamente escrotos e perturbadores, colocando as primeiras noções “fofas” em cheque.

Ou melhor, choque: anafilático, de preferência. Os autores conseguem extrair o medo com muito método. O grupo de cãezinhos “se envolvendo em altas confusões” é desenvolvido com consistência, rigor de caracterização e consegue nos comover quando o horror inevitavelmente chega, seja via cães mortos na estrada feitos zumbis, via sapos-demônios que engolem suas crias multiplicadas ou humanos satanistas com gatos-bruxos, golens e lobisomens que são seus parceiros. Ah! E há também os ratos fanáticos, “evangélicos”, assustadores também por razões outras que não apenas sua monstruosidade.

A delicadeza levemente psicodélica das pinturas de Thompson e o contraste com este teor sombrio fazem de Burden uma obra propriamente pós-moderna. Ou seja: encontro de rios que são influências de gêneros e épocas distintas, destilados num acabamento extremamente convidativo e profissional (tanto das histórias em si quanto da edição). Coqueluche pra ganhar Eisner, eu diria (coisa que, de fato, Burden ganhou em algumas ocasiões). Poderia reclamar de leve assepsia do material, como se fosse apenas planejado e pouco visceral em sua composição (apesar de sê-lo no grafismo).

Thompson também é muito boa como narradora dentro do quadro, mas um tanto engessada quando passa a trabalhar entre eles. Ou seja: pós-moderno na concepção, mas clássico demais na forma. Enfim, são detalhes de uma análise chata. Certamente não é um produto revolucionário ou que caiba numa antologia muito exigente de quadrinhos, mas enquanto isso que é (“produto”), ratifica a qualidade cinemática (uma adaptação seria bem-vinda – mas do tema e não da forma) e o jeito nostálgico com que lida com suas influências (Stephen King, Neil Gaiman, etc.). Quadrinho pra quem gosta de bicho (daí você faz a avaliação). (CIM)

Um Pequeno Assassinato

- Alan Moore e Oscar Zárate (Pipoca & Nanquim, 2017, 116 p.): Ser uma pessoa é uma ação trabalhosa e, muitas vezes, ambígua. Afortunados aqueles que vêem com clareza a linha definidora das suas personalidades e seguem, sem maiores problemas, o caminho que designaram. Para a maioria restante, o futuro é tão nebuloso quanto o passado e toda decisão é capaz de gerar uma crise de personalidade que beira o fatal. A graphic novel Um Pequeno Assassinato, lançamento mais recente da editora Pipoca & Nanquim, é uma marcha áspera, deslumbrante - e um tanto quanto enfadonha - pelas trilhas que o publicitário Timothy Hole se vê forçado a fazer.

Esta HQ é fruto da parceria entre Alan Moore e o quadrinista argentino residente em Londres Oscar Zárate. O trabalho deles em dupla já havia embarcado em terras brasileiras na antologia A Vida Secreta de Londres, organizada por Zárate e publicada pela Veneta em 2016. Escritor e desenhista trabalharam no conto "Eu Continuo Voltando", que fecha a edição. Mas o que temos nesta belíssima graphic novel - publicada com o já famoso esmero que o pessoal do Pipoca & Nanquim dedica a seu catálogo - é o primeiro fruto do encontro dos dois.

Na graphic conhecemos Timothy Hole, um publicitário britânico residente em Nova York que se encontra num desses momentos de decisão nebulosos da vida, quando tentar se esforçar para dar forma ao futuro acaba trazendo à tona julgamentos pessoais sobre ações tomadas no passado. No caso de Hole, seu recente sucesso na publicidade lhe rendeu a conta de um renomado refrigerante que intenciona entrar no recém aberto mercado russo.

A história se passa no final dos anos 80, e o dilema de Hole termina por servir como uma grande metáfora para a situação do ocidente na virada da década - um momento marcado pela morte de grandes utopias mundiais e pela presença cada vez mais encorpada de um liberalismo agressivo que encontra na ex-primeira ministra Margaret Thatcher seu símbolo mais proeminente. O peso desse contexto se faz sentir em toda a narrativa: nos recordatórios carregados de Moore, cheios de um cínico ranço yuppie que constrói um Timothy Hole estrategicamente despercebido de suas decisões duvidosas, e também no colorido sufocante e febril das tintas de Zárate.

Voltando a Hole, como resultado de sua paranoia em torno de como agir diante deste desafio profissional, o publicitário começa a perceber à sua volta a presença de um garoto, que o persegue em seu trajeto de Nova York a Londres e de Londres à sua cidade natal de Shefield (a cidade vermelha, como é conhecida por sua população tradicionalmente comunista). A paranoia asfixiante da história também se espalha pelo tempo, em uma narrativa fragmentada que remonta o percurso de Hole desde 1954 até 1989.

A identidade do garoto não chega a ser um mistério, muito pelo contrário. Um Pequeno Assassinato não é um thriller que gira em torno de seus mistérios. Trata-se de uma narrativa simbólica que, embora visualmente instigante, vai derrapar no platonismo de uma premissa enfadonha e um psicologismo piegas. É inegável que os autores tecem uma obra de peso, que assumiu corajosamente a pretensão de analisar a morte do século XX, porém esta mesma pretensão dá uma consistência lamacenta e carregada que parece se esforçar em dar uma significância por demais dramática para um dilema pessoal.

Sendo a graphic novel um dos primeiros trabalho de Moore após construir sua carreira com os super-heróis, e auxiliado por Zárate a produzir uma obra irrestritamente adulta, a impressão que fica é a de que o melodrama típico dos comics transformou uma narrativa mundana (em comparação com a fantasia desvairada dos super-heróis) em uma inflamada e pomposa saga. Se o contexto for deixado de lado, o embate de Hole com sua situação perde muito de sua força.

Apesar disso, não se pode dizer que Um Pequeno Assassinato é uma obra sem valor. A construção da narrativa e da ambientação é primorosa. Embora um tanto maniqueístas, as reflexões do personagem sobre suas ações reverberam com bastante naturalidade e podem oferecer exercício expiatório muito bem-vindo para muitos na mesma situação. A edição brasileira é um primor gráfico com uma atenção a detalhes na adaptação da arte e dos textos que salta aos olhos. Outro destaque deve ser dado ainda ao ambiente publicitário, emprego-símbolo da juventude yuppie dos anos 80. Zárate, como um ex-empregado no ramo da propaganda (um dado autobiográfico importante, já que o roteiro foi escrito a quatro mãos) formou uma sinergia muito rica e verossímil com o texto de Alan Moore.

Se por um lado o roteirista inglês expõe, em fragmentos de conversas casuais, o processo publicitário de “assassinar” a arte colocando-a a favor do dinheiro (transformar a cena da escadaria de Odessa em campanha para carros de bebê ou buscar em Lolita de Nabokov ideias para vender refrigerante), por outro vemos a expressiva arte de Zárate produzir uma verdadeira carta de amor ao estilo de cartazistas milaneses do início do sec. XX, especialmente o brilhante artista Leonetto Cappiello. Estes cartazes, as primeiras peças publicitárias produzidas em massa, marcavam o ponto de cisma em que arte e ofício se separam. A partir daí, arte e publicidade passam a conviver em uma tumultuada relação simbiótica na qual as histórias em quadrinhos vão ser apenas uma das suas muitas manifestações. Sem maniqueísmos e sem assassinatos. (LN)

A arte publicitária de Leonetto Cappiello

PIPOCA & NANQUIM SOLTA O VERBO!

PIPOCA & NANQUIM SOLTA O VERBO!

Contabilizando a quantidade de conteúdo – textos e, especialmente, vídeos – do site/canal Pipoca & Nanquim, é perceptível uma dedicação exemplar ao projeto. O nível da qualidade textual e o gosto diferenciado nas escolhas dos assuntos abordados está a anos luz da média da internet brasileira – uma raridade, pode-se dizer. O carismático trio formado por Alexandre Callari, Bruno Zago e Daniel Lopes, ainda por cima, estreou em 2017 a editora Pipoca & Nanquim. Uma conquista não apenas deles, mas dos leitores brasileiros interessados em quadrinhos que fujam do convencional.

Read More

Sleeper: infiltrado no coração das trevas

por Marcos Maciel de Almeida

A dupla Ed Brubaker e Sean Philips é um exemplo das combinações que dão muito certo, tipo Lennon e McCartney, Leone e Morricone e pastel com caldo de cana. E olha que a chance de êxito dessa combinação não era exatamente uma certeza. Tudo bem que o Brubaker já era conhecido dos fãs de gibis de temática urbana com forte pegada policialesca, como Gotham Central e Batman, mas seu parceiro no crime Sean Philips tinha construído sua fama tendo seu nome mais associado aos gêneros de terror e aventura, após fases memoráveis em gibis como Hellblazer e Wildcats

Mas a união de esforços dos dois autores, dedicada a contar histórias de suspense com ambientação noir envolvendo as castas mais baixas e mais altas do submundo, derrubou qualquer desconfiança. 5 gibis depois (Criminal, Incognito, Fatale, Sleeper e Fade Out, não necessariamente nessa ordem), com inegável sucesso de público e crítica, além de diversas indicações para o Eisner (que lhes rendeu dois prêmios de melhor série com Criminal e Fade Out), Brubaker e Philips perceberam que a química entre os dois funcionava que era uma beleza. Ou talvez nem fosse química. Acho que a palavra correta poderia ser alquimia, já que tudo que os caras tocam parece virar ouro. E bem, das pepitas que a dupla já garimpou, resolvi dar uma analisada nesta aqui: Sleeper, de 2003.

Para quem não sabe, "sleeper" é o termo que designa um espião que fica dormente em uma organização até o momento em que lhe ordenam interromper suas atividades de espionagem, seja por motivos de segurança pessoal, seja para dar início ao plano de ataque contra o inimigo. E o Sleeper deste gibi refere-se a Holden Carver, ex-pupilo de John Lynch, uma espécie de Nick Fury criado pelo Jim Lee. E sim, meus amigos, como já deu para perceber, embora o gibi tenha a maior cara de revista da Image, o fato é que ela faz parte do selo Wildstorm e, por conseguinte, do Universo DC. Mas bem, isso não é problema, visto que nenhum dos personagens puro sangue da Divina Concorrência aparece para colocar água no nosso chopp. Então, como eu ia dizendo, o Carver, que ganhou a habilidade de armazenar e distribuir dor física graças a um artefato alienígena (sim, isso foi meio boçal, mas fazer o que?) foi escolhido para infiltrar uma organização terrorista que emprega bandidos superpoderosos. O problema é que a tal organização é chefiada por um dos vilões mais casca grossa já inventados nos quadrinhos: Tao.

Talvez você não esteja ligando o nome à pessoa, mas o Tao foi um personagem criado pelo Alan Moore, durante sua passagem pelos Wildcats. Bem, se você não leu, recomendo que o faça assim que possível, porque se trata de material de primeira linha, com desenhos do irrepreensível – e infelizmente sumidaço – Travis Charest. Tao, acrônimo de Tactically Augmented Organism, é um ser criado em laboratório como parte de experimento envolvendo a criação de seres artificiais. Sua atuação terrorista, caracterizada por ataques de intensa selvageria e ousadia, chamam a atenção do chefe da IO (International Operations), John Lynch, que resolve destruir a organização de Tao por dentro, por meio da infiltração de Carver. Mas bem, porque o tal Tao é casca grossa? Ele tem superpoderes? Não, mas possui a mente criminosa mais fria e calculista do universo Wildstorm, além de uma forte capacidade de manipulação. Sem querer dar spoilers, esse cara foi capaz de escapar tranquilamente de um prédio cheio de Wildcats, deixando na saudade medalhões como o Superman (ops!), digo, Mr. Majestic. Mal comparando, pode-se dizer que seria uma espécie de Reed Richards malvado, com tendências ao sadismo.

Tao, maldade encarnada

Bem, a pegada do gibi é de pura pressão psicológica, relatando a trajetória de Holden Carver em sua tentativa de ganhar terreno na organização comandada por Tao. Mas, como se não bastasse o clima tenso de ter que enganar a mente mais brilhante e mortal do planeta, que não cansa de fungar em seu cangote, Carver tem ainda de lidar com o fato de que Lynch, a única pessoa que sabe de sua condição de espião, está em coma. Trocando em miúdos, nosso herói está fudido e mal pago, porque os mocinhos querem seu couro e os vilões não perdoarão sua eventual traição. Um dos grandes momentos do gibi é o jogo de gato e rato entre Carver e Tao, que adora usar de ambiguidade e ironia com o subordinado, como que para dar indiretas de que já sabia quem era o espião em seu grupo. 

O cast é um capítulo à parte, contendo personagens tão bizarros que deixariam David Lynch orgulhoso. Para Brubaker, o cerne do gibi é a relação de Carver com Miss Misery, a sensual comandante de Tao. Lembra que o Hulk ficava mais forte à medida que ficava furioso? Então, Miss Misery fica mais poderosa sempre que agride ou tortura alguém. Só que esse esquema também funciona ao contrário. O afeto e o carinho recebidos trarão dor e mal estar para ela. Esse é o tamanho da enrascada em que Carver se meteu. A mulher que ele deseja fica doente quando se apaixona e só fica bem quando ele se ferra. Outro personagem interessante é o segundo em comando de Tao, Peter Grimm. O carequinha, capaz de deixar o cérebro de qualquer um num loop eterno de pesadelos, não foi com a cara de Carver e está querendo sacaneá-lo assim que possível. 

Holden Carver desempenha o arquétipo tradicional dos gibis e filmes noir. Durão, mas de bom coração. Machão, mas sempre alerta para impedir que injustiças sejam cometidas. Incontornáveis, para ele, são seus princípios de lealdade para com seus amigos e entes queridos. E, quando percebe que sua presença tornou-se um perigo para eles, segue aquela cartilha do herói que ensina que o melhor a fazer é se afastar. E esse é o grande sacrifício de Carver. Em busca do bem maior, abandona sua vida e sua esposa, para ir lamber as botas do capeta. Perdido numa realidade em que os amigos são os inimigos, e isolado de sua verdade enquanto pessoa, Carver é um náufrago no oceano da própria mente. 

Trio Parada Dura: Tao e seus asseclas

Um dos grandes méritos de Sleeper é sua despretensão. O gibi não quer ser o novo grande hit, mas simplesmente contar uma história bacana, com começo, meio e fim. E os autores tem pleno êxito nessa proposta. Se você está querendo vasculhar os becos mais escuros e sórdidos do universo Wildstorm, seu gibi é esse aqui. 

Escritores de talento são aqueles que, além de saberem contar uma boa história, têm a manha de escolher os melhores brinquedinhos para fazê-la funcionar. E Brubaker fez exatamente isso. Pegou um personagem desconhecido (Carver), utilizou organizações já estabelecidas como a IO e colocou na mistura uma das melhores criações de Alan Moore durante sua passagem pelos Wildcats (Tao). E o resultado deu caldo. É isso aí. Não durma no ponto. Leia Sleeper.  

Sleeper durou duas "temporadas", cada uma com doze edições, e foi publicado pela DC/Wildstorm na gringa. O material ainda está inédito no Brasil. E isso sim é um crime tão perverso que nem Tao conseguiu conceber.

Holden Carver, sleeper agent