Voodoo Child, de Bill Sienkiewicz: a história de dois magos

Voodoo Child, de Bill Sienkiewicz: a história de dois magos

A música e os quadrinhos já estiveram entrelaçados durante vários momentos. Impossível ler, por exemplo, as várias minisséries do universo de Sin City, de Frank Miller, e não pensar em jazz ou rock n’ roll dos anos 50, quando a televisão era em preto e branco. Ou as histórias em quadrinhos do Homem Aranha da década de 70, onde todos usavam roupas coloridas e calças boca de sino, parecendo curtir sucessos de Led Zeppelin ou a disco music do Earth, Wind and Fire. Mas no fim dos anos 60 surgiu algo mais colorido, sonoro e incontrolável do que tudo isso: a música e a figura de Jimi Hendrix. E Hendrix virou uma graphic novel de 128 páginas, pintada por um nome único e conhecido por todo mundo que é fã de histórias em quadrinhos: Bill Sienkiewicz. Um verdadeiro manifesto artístico e um tributo amoroso desse artista ao maior guitarrista da história do rock.

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Especial editora Pipoca & Nanquim: 5 resenhas padrão RAIO

Semana passada publicamos uma entrevista reveladora com Alexandre Callari e Daniel Lopes do excelente PIPOCA & NANQUIM (canal e site), revelando tudo sobre o empreendimento da nova editora. Nossa relação com o Pipoca é antiga, começamos em períodos muito próximos (desde 2011, creio). Eu e o Pedro Brandt chegamos publicar alguns textos da Raio por lá. Nossos caminhos acabaram se separando (a Raio continua... bem... do tamanho de um tamanduá mirim, e o Pipoca é um dos maiores sites de quadrinhos do Brasil), mas nunca deixamos de admirar o empenho, erudição e paixão pelos quadrinhos desses caras. Confesso que às vezes vemos os vídeos do P&N na TV e realmente comendo pipoca, e admiramos profundamente a iniciativa da editora. Isso significa que vamos apenas pagar pau acriticamente para os lançamentos? Obviamente que não. Isso aqui é Raio Laser. Os quadrinhos do P&N são realmente muito criteriosos e responsa, mas nosso olhar procura ser clínico. Dito isso, seguem cinco resenhas RL para os cinco quadrinhos lançados pela editora do P&N até agora. (CIM)

por Pedro Brandt, Marcos Maciel de Almeida, Lima Neto e Ciro I. Marcondes

Espadas e Bruxas - Esteban Maroto (Pipoca & Nanquim, 2017, 260 p.): Quando o assunto é “espada e feitiçaria” nas histórias em quadrinhos, é possível afirmar que o primeiro nome que vem à cabeça dos leitores – especialmente leitores brasileiros – é Conan. A popularidade alcançada pelo adorado bárbaro criado por Robert E. Howard por aqui – e não apenas – é tamanha que acaba por ofuscar outras iniciativas do gênero. E, especialmente na Europa, existe uma vastidão de HQs ambientadas nesse universo ou que, de uma maneira ou outra, compartilham de seus elementos – a exemplo dos clássicos belgas Thorgal

e Chninkel, dos mestres da BD Jean Van Hamme (roteiro) e Grzegorz Rosiński (arte), ou O Mercenário, do espanhol Vicente Segrelles. A revista Heavy Metal é outra publicação na qual “espada e feitiçaria” aparecem com frequência. E essas obras deixam claro que dentro desse subgênero cabe muita coisa, diferentes abordagens, temáticas e maneiras de contar histórias. E, nesse sentido, a leitura (ou releitura) das HQs do espanhol Esteban Maroto em Espadas e Bruxas, título inaugural da editora Pipoca & Nanquim, é bastante revelador.

Num dos textos presentes no álbum, assinado por Roy Thomas (roteirista fundamental para o sucesso de Conan), ele relembra da dificuldade de Maroto em se adaptar ao método Marvel de fazer quadrinhos, ou seja, o artista desenha a história a partir de um argumento e, posteriormente, os diálogos e textos são acrescentados. É de se imaginar que o espanhol também encarasse como um desafio o padrão de diagramação das páginas estabelecido pela Marvel, um contraste radical com os layouts imaginativos e fluidos característicos de seu trabalho.

Ainda que Conan, à sua própria maneira, faça parte do ambiente contracultural dos comics da década de 1970, narrativamente falando, suas histórias seguem formatos consagrados. E, pode-se dizer, visualmente são até um tanto quanto caretas em comparação às aventuras psicodélicas materializadas pela tinta de Esteban Maroto.

Se as histórias escritas por Robert E. Howard, Roy Thomas e companhia são elementos-chave, decisivas para a adesão de tantos leitores às HQs do bárbaro cimério, as ilustrações de Maroto são a senha para adentar não apenas em um ambiente onde convivem guerreiros, monstros, sortilégios mágicos e sensualíssimas donzelas em perigo, mas o caminho para se conectar com os recônditos da própria imaginação do leitor. Sua arte, de figuras esguias e insinuantes, desliza em cenários que parecem brotar do ar e desaparecer ao vento, em traços que evocam tanto os entalhes da gravura quanto os rococós art nouveau de Alphonse Mucha e os mistérios em preto e branco do expressionismo no cinema. O que Maroto oferece, propositalmente ou não, é uma viagem onírica, uma visita ao subconsciente, um afago à virilidade em seu estado bruto e juvenil. O que vale aqui é a fantasia enquanto se dá o momento da leitura. Tal qual um sonho.

Espadas e Bruxas compila as histórias dos personagens Wolff, Dax e Korsar, todos eles, bárbaros arquetípicos (e sem personalidade muito marcante) em busca de vingança, redenção ou o amor de uma bela mulher – o erotismo, elemento constante nessas HQs, é de deixar a imaginação fervilhando! Os antagonistas são forças vilanescas e sobrenaturais que só podem ser vencidas pela sagacidade ou pelo aço. Protagonistas à parte, a impressão é que estamos lendo as aventuras de um mesmo personagem. O que falta em originalidade ao roteiro (truncado em alguns momentos, especialmente nas primeiras histórias) é compensado em carisma. Afinal, o que temos ao longo das páginas é escapismo da melhor qualidade, um deleite visual para ler e reler.

Com capa dura, papel couché, textos contextualizando o autor e suas criações, Espadas e Bruxas faz jus ao talento do gigante Esteban Maroto. Com ele, a editora Pipoca & Nanquim chegou ao mercado em grande estilo. (PB)

Cannon – Wallace Wood (Pipoca & Nanquim, 2017, 274 p.): Wallace “Wally” Wood é um desses colossos que atravessaram eras nos quadrinhos. Com seu (mutável) estilo viril e cheio de movimento, ele parece presente em tudo que importa no que tange ao quadrinho americano: fez Spirit, Terry e os Piratas, Weird Science, MAD, Demolidor, entre mil outras coisas. Era um quase típico homem da “war generation”: lutou na grande guerra, era apaixonado por armas e mulheres. Matou-se com um tiro na cabeça em 1981.

Por estes e outros motivos, Wood é espécie de Hemingway dos quadrinhos: um cachorro louco à solta com sua arte vigorosa e implacável. Assim, o lançamento de Cannon – uma de suas HQs de guerra eróticas publicadas em jornais militares para os combatentes do Vietnã nos anos 70 – pelo Pipoca & Nanquim preenche uma das muitas lacunas no que concerne a Wally Wood no Brasil.

Cannon é um catatau de tiras executadas à infalível perfeição de Wood, e ao mesmo tempo um inventário de estereótipos da Guerra Fria e dos anos 70. O personagem-título é uma perfeita “máquina de matar” estilo “macho man” que trabalha como agente para o serviço secreto americano. Dentre as aventuras desse anti-herói estão coisas como sabotar um escroque e comuna governo latino-americano, desbaratar um grupo “terrorista” de hippies drogados (Cannon chega a mandar uma herô só pra “manter as aparências”) ou simplesmente dar umas porradas no marido corno de uma mulher que ele estava dando uns pega.

É tudo extremamente canastra, bem ao gosto exploitation dos 70’s, e não deixa de lembrar uma pornochanchada brazuca (mas com esteroides). De toda maneira, é inevitável pensar esta produção como um excelente modelo da mentalidade de seu tempo: rude, grosseira, ideologizada, polarizada. E ainda muito maneira porque tão autêntica.

Certo, canastrice. Uma HQ como Cannon serve a diversos propósitos: os soldados do Vietnã caíam no onanismo ao olhar as inegáveis curvas das mulheres de Wood (invariavelmente peladas); o fã de exploitation vai encontrar muita trasheira ideológica e sem-noçãozice embaladas num formato barato de quadrinhos (não aqui nessa edição luxuosa, é claro), mas super “cool”; quem gosta de quadrinho de guerra vai se deparar com um contexto interessante de representação da guerra fria, também ilustrado em arte narrativa de primeira; e o historiador/aficionado dos quadrinhos vai ter a oportunidade ver o lápis de Wood em um de seus auges.

Portanto, Cannon é um lançamento coringa, e quem gosta de HQs antigas (tiras especialmente) poderá adentrar num ritmo denso e dinâmico, dificilmente encontrável em tiras dos anos 30 e 40, por exemplo. Wood é famoso por ter predileção por angulações cinemáticas, e a qualidade pura de suas ilustrações é nada menos que espetacular. Poucos desenham explosões, tanques, aviões e até estilhaços com a personalidade e realismo que ele imprime aqui. Cada quadrinho seu parece feito com paixão e esmero. Cada um deles poderia ser emoldurado e fazer bonito.

É claro que alguns podem reclamar do conteúdo inegavelmente machista da HQ. Estamos falando de exploitation + exército americano + 70’s, e o machismo é meio que ingrediente inevitável desta fórmula. Porém, para além disso há aquela ambiguidade paradoxal de um momento em que ideias de progressismo e conservadorismo se alternavam com indistinção.

Como em um filme de Russ Meyer, as mulheres de Wood são violadas e humilhadas, mas ao mesmo tempo assumem as rédeas das tramas em diversas oportunidades, não são indefesas, rivalizam com os heróis “másculos”. A inspiração para estas vixens de metralhadora vem, logicamente, dos mestres e comparsas de Wood como Eisner em Spirit (e a fatale P’Gell) ou Milton Caniff em Steve Canyon (com a empoderada Miss Copper Calhoon). Companhias e influências que, claro, garantem a boa leitura desse gibi. (CIM)

Moby Dick – Chabouté (Pipoca & Nanquim, 2017, 250 p.): Adaptações em quadrinhos de obras originárias de outras mídias são, em geral, mais sem graça que picolé de chuchu. As inúmeras versões de filmes de super-heróis dos anos 80 e 90 – que, para início de conversa, já não eram grande coisa – estão aí para não me deixar mentir. Este tipo de subgênero (HQ de filme de herói) falhou tão fragorosamente que deixou de dar o ar de sua desgraça de uns tempos pra cá. Melhor sorte tiveram as adaptações de livros, que nos deram bons gibis como Cidade de Vidro (de David Mazzucchelli) e a série Parker (de Darwyn Cooke). 

Tais publicações mostraram as possibilidades de complementaridade entre as diferentes formas de expressão artística.  E isso nos leva ao caso em questão: Será que a Moby Dick do francês Chabouté, recém lançada pela editora Pipoca & Nanquim acrescenta algo à leitura do clássico do americano Herman Melville? E será que a pergunta anterior faz algum sentido?

Vale a pena comparar obras oriundas de mídias milenares – como a literatura – com aquelas provenientes dos irmãos temporãos – como os quadrinhos?

Acho que sim. Agora, para melhorar as condições de avaliação, vou comparar Chabouté não apenas com a obra-prima de Melville. Para que a coisa não fique muito desigual, também vou comparar gibi com gibi. Então o esquema vai ser o seguinte: cotejarei o Moby Dick de Chabouté com a obra original para, na sequência, analisar a HQ do francês em relação a outra adaptação. Escalei, para isso, ninguém menos que Bill Sienkiewicz (carinhosamente chamado de Bichoquébicho por alguns) e seu Moby Dick de 1990.

Para quem não sabe, o livro de Melville retrata a obsessão de um homem, o capitão Ahab, em sua sede de vingança contra o grande cachalote dos mares, Moby Dick, que lhe arrancara a perna esquerda em um encontro pretérito. Cego de ódio em sua caçada pelo animal, Ahab não se importa em colocar em risco o destino da tripulação do navio baleeiro Pequod, levada a reboque pela loucura de seu líder.

Não que obsessões sejam necessariamente ruins. Chabouté foi cabra macho ao topar adaptar o denso calhamaço de quinhentas páginas. O resultado foi um trabalho de fôlego, que revela determinação semelhante à do capitão do Pequod. Outra escolha arriscada, mas que deu certo, foi a de utilizar apenas o texto original nos balões e recordatórios. Embora por vezes arrastada, a narrativa consegue envolver o leitor na irreversível e fatídica viagem do grupo que embarcou – inconscientemente – no sonho/pesadelo de um único indivíduo.

Talvez por falta de espaço ou para aumentar o dinamismo do gibi, Chabouté praticamente passa em branco pelas partes descritivas do livro. Momento confessional aqui. Nunca me importei muito com baleias, mas depois de ler o romance original, me apaixonei pelo “bichinho”. E isso tem muito a ver com as partes em que Melville, estuda, com riqueza de detalhes, as diferenças entre tipos de baleia, métodos de corte da carne, aproveitamento da banha e do espermacete, condições de trabalho dos baleeiros e etc. Isso fez falta na HQ, que deixou de lado o teor enciclopédico da obra original. E, paradoxalmente, Chabouté dá uma escorregada ao investir numa pegada mais didática que artística em seu Moby Dick. Explico. Um problemas do gibi está em sua abordagem excessivamente fiel ao livro. Está tudo muito certinho e bonitinho. Faltou um pouco de transgressão aqui e acolá. Queria ver mais do DNA do francês ali, mas o sangue está ralinho.

Interessante que algumas das pilastras mestras do original não tenham sido inseridas, embora a HQ pretenda ser uma adaptação bastante respeitosa. Está ausente, por exemplo, o trecho inicial e memorável do livro, a clássica frase “Chame-me Ismael”. Lamentável, também, é a falta de menções ao Cachalote branco como o “Leviatã” dos mares, denominação repetida ad nauseam por Melville para projetar a imagem de poderio e terror incitados pelo personagem-título. E aqui chego ao ponto nevrálgico de minha análise: está ausente, no gibi, a sensação de grandiosidade épica tão disseminada no livro. Aí você poderá dizer: sim, mas são mídias diferentes e nem sempre é possível transmitir as mesmas emoções. Eu poderia até concordar contigo. Mas eis que aparece o Moby Dick de Bill Sienkiewicz para me convencer do contrário.

O gibi do americano tem um quinto das páginas (250) do Moby Dick de Chabouté. É menor, mas, incrivelmente, mais completo. Tem mais ousadia e liberdade, sendo, portanto, mais fiel ao estilo “faca nos dentes” de Melville. A HQ do francês é bem comportada, mas quadradinha. Já a publicação de Sienkiewicz é um prato cheio de formas retilíneas e anguladas, como de costume. É quadrado, mas desce redondo. O mergulho na obsessão de Ahab é mais palpável na construção das páginas e dos recordatórios lisérgicos de Sienkiewicz. Chabouté é muito linear. E obsessões não são lineares.

OK. Chabouté já levou bordoadas a torto e a direito nas comparações acima. Mas o gibi se segura independentemente das outras versões? Com certeza. Como obra única, o Moby Dick de Chabouté nada de braçada. É um grande gibi em vários sentidos. Extenso, imponente e bonito pra chuchu. A edição brasileira está muito bem cuidada e a capa dura preta fica uma beleza na estante.

Não acredito que adaptações devam ser idênticas à fonte inspiradora. Longe disso. Na minha modesta opinião, o negócio é manter-se fiel à essência do original. E esse é o grande pecado de Chabouté. Melville e Sienkiewicz focaram suas obsessões para parir publicações que exalam grandiosidade e pungência. Chabouté, por sua vez, foi mais burocrático e “by the book”. Uma pena. Ao final da leitura das obras dos americanos, senti-me em frangalhos, como que atingido por um vagalhão. Após ler a obra do francês, a sensação estava mais para mergulho em praia sem onda. É gostoso, mas não dá frio na barriga. (MMA)

O Moby Dick de "Bichoquébicho"

Beasts of Burden: Rituais Animais – Jill Thompson e Evan Dorkin (Pipoca & Nanquim, 2017, 186 p): Rituais macabros, satanismo, seitas, mortos-vivos. O luto da morte, almas presas entre dimensões, assassinatos brutais, evisceração, carnificina por toda parte. Estes elementos, que estão tão presentes em Beasts of Burden, podem destoar de uma primeira olhadela no luxuoso livro, que traz cândidas ilustrações da “cult” Jill Thompson (Os Perpétuos) e roteiros sagazes de Evan Dorkin, oriundo do mundo da animação. E é esta alquimia entre os elementos podreira (um horror nada ingênuo) e o aspecto inocente dos protagonistas (cães e gatos que se comunicam entre si), além das páginas pintadas com sutileza (que remetem a pintores como Matisse e Sorolla – e não é coincidência uma dose de “fauvismo” nestas aquarelas de animais) que fazem desta uma HQ bastante especial.

Burden é uma coleção de histórias estilo “clube de investigação”. Neste sentido, pende para o lado juvenil da coisa, indo da tradição que inclui os “Karas” (de Pedro Bandeira – alguém se lembra dessa tosqueira?), passando por Deu a Louca nos Monstros até coisas como Stranger Things. Nostalgia, terror, noites geladas no sofá vendo VHS. O “twist” ocorre quando Dorkin insere estes elementos propriamente escrotos e perturbadores, colocando as primeiras noções “fofas” em cheque.

Ou melhor, choque: anafilático, de preferência. Os autores conseguem extrair o medo com muito método. O grupo de cãezinhos “se envolvendo em altas confusões” é desenvolvido com consistência, rigor de caracterização e consegue nos comover quando o horror inevitavelmente chega, seja via cães mortos na estrada feitos zumbis, via sapos-demônios que engolem suas crias multiplicadas ou humanos satanistas com gatos-bruxos, golens e lobisomens que são seus parceiros. Ah! E há também os ratos fanáticos, “evangélicos”, assustadores também por razões outras que não apenas sua monstruosidade.

A delicadeza levemente psicodélica das pinturas de Thompson e o contraste com este teor sombrio fazem de Burden uma obra propriamente pós-moderna. Ou seja: encontro de rios que são influências de gêneros e épocas distintas, destilados num acabamento extremamente convidativo e profissional (tanto das histórias em si quanto da edição). Coqueluche pra ganhar Eisner, eu diria (coisa que, de fato, Burden ganhou em algumas ocasiões). Poderia reclamar de leve assepsia do material, como se fosse apenas planejado e pouco visceral em sua composição (apesar de sê-lo no grafismo).

Thompson também é muito boa como narradora dentro do quadro, mas um tanto engessada quando passa a trabalhar entre eles. Ou seja: pós-moderno na concepção, mas clássico demais na forma. Enfim, são detalhes de uma análise chata. Certamente não é um produto revolucionário ou que caiba numa antologia muito exigente de quadrinhos, mas enquanto isso que é (“produto”), ratifica a qualidade cinemática (uma adaptação seria bem-vinda – mas do tema e não da forma) e o jeito nostálgico com que lida com suas influências (Stephen King, Neil Gaiman, etc.). Quadrinho pra quem gosta de bicho (daí você faz a avaliação). (CIM)

Um Pequeno Assassinato

- Alan Moore e Oscar Zárate (Pipoca & Nanquim, 2017, 116 p.): Ser uma pessoa é uma ação trabalhosa e, muitas vezes, ambígua. Afortunados aqueles que vêem com clareza a linha definidora das suas personalidades e seguem, sem maiores problemas, o caminho que designaram. Para a maioria restante, o futuro é tão nebuloso quanto o passado e toda decisão é capaz de gerar uma crise de personalidade que beira o fatal. A graphic novel Um Pequeno Assassinato, lançamento mais recente da editora Pipoca & Nanquim, é uma marcha áspera, deslumbrante - e um tanto quanto enfadonha - pelas trilhas que o publicitário Timothy Hole se vê forçado a fazer.

Esta HQ é fruto da parceria entre Alan Moore e o quadrinista argentino residente em Londres Oscar Zárate. O trabalho deles em dupla já havia embarcado em terras brasileiras na antologia A Vida Secreta de Londres, organizada por Zárate e publicada pela Veneta em 2016. Escritor e desenhista trabalharam no conto "Eu Continuo Voltando", que fecha a edição. Mas o que temos nesta belíssima graphic novel - publicada com o já famoso esmero que o pessoal do Pipoca & Nanquim dedica a seu catálogo - é o primeiro fruto do encontro dos dois.

Na graphic conhecemos Timothy Hole, um publicitário britânico residente em Nova York que se encontra num desses momentos de decisão nebulosos da vida, quando tentar se esforçar para dar forma ao futuro acaba trazendo à tona julgamentos pessoais sobre ações tomadas no passado. No caso de Hole, seu recente sucesso na publicidade lhe rendeu a conta de um renomado refrigerante que intenciona entrar no recém aberto mercado russo.

A história se passa no final dos anos 80, e o dilema de Hole termina por servir como uma grande metáfora para a situação do ocidente na virada da década - um momento marcado pela morte de grandes utopias mundiais e pela presença cada vez mais encorpada de um liberalismo agressivo que encontra na ex-primeira ministra Margaret Thatcher seu símbolo mais proeminente. O peso desse contexto se faz sentir em toda a narrativa: nos recordatórios carregados de Moore, cheios de um cínico ranço yuppie que constrói um Timothy Hole estrategicamente despercebido de suas decisões duvidosas, e também no colorido sufocante e febril das tintas de Zárate.

Voltando a Hole, como resultado de sua paranoia em torno de como agir diante deste desafio profissional, o publicitário começa a perceber à sua volta a presença de um garoto, que o persegue em seu trajeto de Nova York a Londres e de Londres à sua cidade natal de Shefield (a cidade vermelha, como é conhecida por sua população tradicionalmente comunista). A paranoia asfixiante da história também se espalha pelo tempo, em uma narrativa fragmentada que remonta o percurso de Hole desde 1954 até 1989.

A identidade do garoto não chega a ser um mistério, muito pelo contrário. Um Pequeno Assassinato não é um thriller que gira em torno de seus mistérios. Trata-se de uma narrativa simbólica que, embora visualmente instigante, vai derrapar no platonismo de uma premissa enfadonha e um psicologismo piegas. É inegável que os autores tecem uma obra de peso, que assumiu corajosamente a pretensão de analisar a morte do século XX, porém esta mesma pretensão dá uma consistência lamacenta e carregada que parece se esforçar em dar uma significância por demais dramática para um dilema pessoal.

Sendo a graphic novel um dos primeiros trabalho de Moore após construir sua carreira com os super-heróis, e auxiliado por Zárate a produzir uma obra irrestritamente adulta, a impressão que fica é a de que o melodrama típico dos comics transformou uma narrativa mundana (em comparação com a fantasia desvairada dos super-heróis) em uma inflamada e pomposa saga. Se o contexto for deixado de lado, o embate de Hole com sua situação perde muito de sua força.

Apesar disso, não se pode dizer que Um Pequeno Assassinato é uma obra sem valor. A construção da narrativa e da ambientação é primorosa. Embora um tanto maniqueístas, as reflexões do personagem sobre suas ações reverberam com bastante naturalidade e podem oferecer exercício expiatório muito bem-vindo para muitos na mesma situação. A edição brasileira é um primor gráfico com uma atenção a detalhes na adaptação da arte e dos textos que salta aos olhos. Outro destaque deve ser dado ainda ao ambiente publicitário, emprego-símbolo da juventude yuppie dos anos 80. Zárate, como um ex-empregado no ramo da propaganda (um dado autobiográfico importante, já que o roteiro foi escrito a quatro mãos) formou uma sinergia muito rica e verossímil com o texto de Alan Moore.

Se por um lado o roteirista inglês expõe, em fragmentos de conversas casuais, o processo publicitário de “assassinar” a arte colocando-a a favor do dinheiro (transformar a cena da escadaria de Odessa em campanha para carros de bebê ou buscar em Lolita de Nabokov ideias para vender refrigerante), por outro vemos a expressiva arte de Zárate produzir uma verdadeira carta de amor ao estilo de cartazistas milaneses do início do sec. XX, especialmente o brilhante artista Leonetto Cappiello. Estes cartazes, as primeiras peças publicitárias produzidas em massa, marcavam o ponto de cisma em que arte e ofício se separam. A partir daí, arte e publicidade passam a conviver em uma tumultuada relação simbiótica na qual as histórias em quadrinhos vão ser apenas uma das suas muitas manifestações. Sem maniqueísmos e sem assassinatos. (LN)

A arte publicitária de Leonetto Cappiello

CCXP 2016: Medo e delírio em SP

por Marcos Maciel de Almeida

Após 2 edições finalmente consegui dar um pulo na Meca da diversão e do entretenimento nerd nacional. Meu objetivo era saciar a curiosidade e saber se o evento era tudo isso mesmo. Posso dizer que o resultado, no geral, foi bastante positivo.

Nos corredores da CCXP 2016

Já sabia - e pude confirmar - que, em convenções deste porte, é imprescindível focar nas atividades que realmente interessam, já que há enormes chances de ficar hipnotizado por atrações secundárias. E, quando isso acontece, a frustração pode bater forte, ao se perceber que o que realmente se queria fazer ficou para um depois que jamais chegará. Tendo isso em mente, saí à caça do que me importava: comprar revistas atrasadas da série Mágico Vento, da editora italiana Bonelli, publicada no Brasil pela Mythos. A empreitada foi um sucesso, talvez até grande demais. Eu, que só tinha cerca de 30 números deste fumetti, encontrei mais de 80 revistas que não possuía dando sopa por lá. Chegou um ponto em que estava torcendo para não encontrar mais nada, para que o bolso parasse de reclamar.

Mundo CCXP

Com a sensação de ter cumprido a primeira "obrigação", resolvi partir para a fase dois: obter autógrafos de meus quadrinistas favoritos. Autógrafos? Sim, autógrafos. Ainda fiquei pensando se valeria a pena perder tempo com isso, já que, na prática, um autógrafo não é muito mais que uma assinatura num pedaço de papel. Mas basta chegar perto da data do evento que meu espírito de fanboy renasce freneticamente. Com a experiência adquirida do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) 2015, resolvi levar apenas edições finas, para não abarrotar ainda mais minha mochila.

Alan Davis, Simon Bisley, Bill Sienkiewicz e Jae Lee, here I go.

Todos foram bastante simpáticos, com exceção do primeiro, que se recusava a tirar fotos e autografar caso não houvesse contrapartida$. O encontro com Jae Lee também fugiu à normalidade. Foi muito esquisito esbarrar com um de meus maiores ídolos, um cara que – para mim – não deve nada para qualquer dos medalhões modernos dos quadrinhos, ali sozinho, sem filas nem nada. Fiquei tão atônito que não consegui articular uma conversa que fizesse um mínimo de sentido. Ele foi tão gente boa e simples que foi difícil acreditar que era ele mesmo. Era por demais humano. Era por demais terreno. Foi triste constatar que o público da convenção dava mais bola para o trailer das novas atrações de Hollywood e para o Trono de Ferro de Game of Thrones (nada contra, ok?) que para o desenhista bochechudo de ascendência sul-coreana.

Jae Lee e fã babão

Uma coisa que me chama a atenção neste tipo de encontro é que, por mais que tente, não consigo ficar bem informado sobre quem é quem nos quadrinhos atuais. Devido à própria natureza, a nona arte é, antes de tudo, individual e pessoal. Graças ao relativo baixo custo de produção e consequente grande poder de difusão desta mídia, é praticamente impossível prestar atenção em tudo que está saindo e saber quem são as novas estrelas ascendentes. Mesmo assim, não canso de me surpreender com a grande quantidade de criadores famosos– para os outros, mas não para mim ainda - presentes no evento.

Com as fotos devidamente registradas e os gibis autografados, parti para os painéis. Teve muita coisa boa no último dia: aula de desenho com Alan Davis, revisão da trajetória do Peter Kuper, debate sobre etnia nos quadrinhos. Em resumo, deu para fazer de tudo um pouco e ir embora com a sensação de dever cumprido. Quer dizer, tudo um pouco não. Havia áreas "proibidas", como a região dos cinemas, em que os fãs se digladiavam para tentar ver um pouquinho de atores (?) como Vin Diesel, e um carinha ou outro da série Harry Potter. Estes territórios, inexpugnáveis, eram o habitat natural do fã primordial deste tipo de convenção, o nerd de ocasião. Conversando com várias pessoas que pretendiam ir à CCXP, percebi que muitos nem sabiam o que queriam ver. O importante era estar lá para ver, ser visto e, claro, angariar uns "likes" no facebook.

Debate

Masterclass com Alan Davis

Não chegarei ao extremo de fazer coro com o mestre Alan Moore que, recentemente, afirmou que gostava dos quadrinhos quando ninguém gostava deles, mas parece-me claro que a existência da Legião dos Fãs de Última Hora não pode ser ignorada. Este fato não é necessariamente ruim, visto que, na essência, o que ainda movimenta a indústria nerd é o rico dinheirinho dos aficionados, sejam eles hardcore ou novatos. Mas faz sentido gastar uma dinheirama numa estátua do Sandman se você nunca leu um gibi dele? Meu ponto é que essas comiccons da vida surgiram a partir de encontros de fãs de HQ, arte que nem sempre recebe o devido carinho neste tipo de evento (alô San Diego ComicCon!).

Bonecos e estátuas fizeram a "alegria" dos fãs

Diante da quantidade de pessoas numa convenção desta magnitude, fator que dificulta a realização de atividades tão banais quanto caminhar, sou forçado a fazer a seguinte pergunta: quem tem mais direito a frequentar este tipo de convenção: os fãs de verdade que formaram o substrato sob o qual foi erguida essa Disneylândia gibizística ou os recém convertidos que gastam somas estratosféricas em camisetas, bonecos, filmes e assemelhados? Em outras palavras, quem merece o tapete vermelho? Os fãs "roots" que estavam lá antes do "Faça-se a luz!" ou a massa endinheirada ávida por lotar o evento? Seja qual for a resposta, somente aqueles com maior disposição para enfrentar a maratona sobreviverão. O vilão Apocalipse dos X-men pode começar a sua seleção dos mais fortes ao final do quarto dia de CCXP.

Boiada, multidão zumbi, autômatos. Chame do quiser, mas os deslocamentos do público até a chegada ao portão da convenção me lembraram muito o manejo de seres descerebrados. Abre uma cancela aqui, afasta uma grade acolá. E assim a massa vai sendo tocada. Condicionados para chegar à convenção ao raiar do dia e marchar incansavelmente até a próxima atração não é comportamento diferente daquele das coletividades acima mencionadas. Aliás, que tal fazer um filme zumbi numa comiccon da vida, hein? Alô George Romero!

Admirável gado novo

Ano passado, meu amigo e guru quadrinístico Lima Neto escreveu uma resenha intitulada

Três dias em Hicksville: cobertura do FIQ!

 Ali ele estabeleceu um vínculo entre os frequentadores do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), realizado bienalmente em Belo Horizonte, com os habitantes da cidade fictícia de Hicksville, na qual todas as pessoas possuem – em maior ou menor medida – vínculos pessoais ou profissionais com os quadrinhos. Como já deve ter ficado evidente até aqui, este não é o caso da CCXP. Nesta convenção, os últimos habitantes de Hicksville lutam pela sobrevivência, encarando a barra de enfrentar um apocalipse zumbi. Tentando encontrar refúgio nas lojas que ainda vendem quadrinhos, verdadeiras fortalezas/santuários que os protegem da loucura que assola os corredores, eles buscam explicações racionais para uma realidade na qual imperam instinto e consumismo sem controle.

Fã descerebrado e Bill Sienkiewicz