LASERCAST #60: GUILTY PLEASURES

LASERCAST #60: GUILTY PLEASURES

Neste episódio de número 60, os raiucas Pedro Brandt, Marcos Maciel e Lima Neto vão passear pelas memórias de quadrinhos constrangedores, flopados, bregas ou mau vistos e que, porém, estão no coração de muita gente. São HQs que gostamos, apesar de seus problemas, e que se encaixam em uma categoria que, em inglês, é chamada de guilty pleasures. Também discutimos o que é essa noção de "prazeres culpados" e se ela de fato faz sentido ou é apenas recalque. Apertem os cintos porque vamos passear pelas memórias de títulos como Cyber Force, WildCats, Young All Stars e o universo DC de Roy Thomas, Deadpool de Joe Madureira, Astonishing X-men, Battle Chasers, Savage Dragon, JLA Avengers, DC 1.000.000 entre muitos outros.

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Sleeper: infiltrado no coração das trevas

por Marcos Maciel de Almeida

A dupla Ed Brubaker e Sean Philips é um exemplo das combinações que dão muito certo, tipo Lennon e McCartney, Leone e Morricone e pastel com caldo de cana. E olha que a chance de êxito dessa combinação não era exatamente uma certeza. Tudo bem que o Brubaker já era conhecido dos fãs de gibis de temática urbana com forte pegada policialesca, como Gotham Central e Batman, mas seu parceiro no crime Sean Philips tinha construído sua fama tendo seu nome mais associado aos gêneros de terror e aventura, após fases memoráveis em gibis como Hellblazer e Wildcats

Mas a união de esforços dos dois autores, dedicada a contar histórias de suspense com ambientação noir envolvendo as castas mais baixas e mais altas do submundo, derrubou qualquer desconfiança. 5 gibis depois (Criminal, Incognito, Fatale, Sleeper e Fade Out, não necessariamente nessa ordem), com inegável sucesso de público e crítica, além de diversas indicações para o Eisner (que lhes rendeu dois prêmios de melhor série com Criminal e Fade Out), Brubaker e Philips perceberam que a química entre os dois funcionava que era uma beleza. Ou talvez nem fosse química. Acho que a palavra correta poderia ser alquimia, já que tudo que os caras tocam parece virar ouro. E bem, das pepitas que a dupla já garimpou, resolvi dar uma analisada nesta aqui: Sleeper, de 2003.

Para quem não sabe, "sleeper" é o termo que designa um espião que fica dormente em uma organização até o momento em que lhe ordenam interromper suas atividades de espionagem, seja por motivos de segurança pessoal, seja para dar início ao plano de ataque contra o inimigo. E o Sleeper deste gibi refere-se a Holden Carver, ex-pupilo de John Lynch, uma espécie de Nick Fury criado pelo Jim Lee. E sim, meus amigos, como já deu para perceber, embora o gibi tenha a maior cara de revista da Image, o fato é que ela faz parte do selo Wildstorm e, por conseguinte, do Universo DC. Mas bem, isso não é problema, visto que nenhum dos personagens puro sangue da Divina Concorrência aparece para colocar água no nosso chopp. Então, como eu ia dizendo, o Carver, que ganhou a habilidade de armazenar e distribuir dor física graças a um artefato alienígena (sim, isso foi meio boçal, mas fazer o que?) foi escolhido para infiltrar uma organização terrorista que emprega bandidos superpoderosos. O problema é que a tal organização é chefiada por um dos vilões mais casca grossa já inventados nos quadrinhos: Tao.

Talvez você não esteja ligando o nome à pessoa, mas o Tao foi um personagem criado pelo Alan Moore, durante sua passagem pelos Wildcats. Bem, se você não leu, recomendo que o faça assim que possível, porque se trata de material de primeira linha, com desenhos do irrepreensível – e infelizmente sumidaço – Travis Charest. Tao, acrônimo de Tactically Augmented Organism, é um ser criado em laboratório como parte de experimento envolvendo a criação de seres artificiais. Sua atuação terrorista, caracterizada por ataques de intensa selvageria e ousadia, chamam a atenção do chefe da IO (International Operations), John Lynch, que resolve destruir a organização de Tao por dentro, por meio da infiltração de Carver. Mas bem, porque o tal Tao é casca grossa? Ele tem superpoderes? Não, mas possui a mente criminosa mais fria e calculista do universo Wildstorm, além de uma forte capacidade de manipulação. Sem querer dar spoilers, esse cara foi capaz de escapar tranquilamente de um prédio cheio de Wildcats, deixando na saudade medalhões como o Superman (ops!), digo, Mr. Majestic. Mal comparando, pode-se dizer que seria uma espécie de Reed Richards malvado, com tendências ao sadismo.

Tao, maldade encarnada

Bem, a pegada do gibi é de pura pressão psicológica, relatando a trajetória de Holden Carver em sua tentativa de ganhar terreno na organização comandada por Tao. Mas, como se não bastasse o clima tenso de ter que enganar a mente mais brilhante e mortal do planeta, que não cansa de fungar em seu cangote, Carver tem ainda de lidar com o fato de que Lynch, a única pessoa que sabe de sua condição de espião, está em coma. Trocando em miúdos, nosso herói está fudido e mal pago, porque os mocinhos querem seu couro e os vilões não perdoarão sua eventual traição. Um dos grandes momentos do gibi é o jogo de gato e rato entre Carver e Tao, que adora usar de ambiguidade e ironia com o subordinado, como que para dar indiretas de que já sabia quem era o espião em seu grupo. 

O cast é um capítulo à parte, contendo personagens tão bizarros que deixariam David Lynch orgulhoso. Para Brubaker, o cerne do gibi é a relação de Carver com Miss Misery, a sensual comandante de Tao. Lembra que o Hulk ficava mais forte à medida que ficava furioso? Então, Miss Misery fica mais poderosa sempre que agride ou tortura alguém. Só que esse esquema também funciona ao contrário. O afeto e o carinho recebidos trarão dor e mal estar para ela. Esse é o tamanho da enrascada em que Carver se meteu. A mulher que ele deseja fica doente quando se apaixona e só fica bem quando ele se ferra. Outro personagem interessante é o segundo em comando de Tao, Peter Grimm. O carequinha, capaz de deixar o cérebro de qualquer um num loop eterno de pesadelos, não foi com a cara de Carver e está querendo sacaneá-lo assim que possível. 

Holden Carver desempenha o arquétipo tradicional dos gibis e filmes noir. Durão, mas de bom coração. Machão, mas sempre alerta para impedir que injustiças sejam cometidas. Incontornáveis, para ele, são seus princípios de lealdade para com seus amigos e entes queridos. E, quando percebe que sua presença tornou-se um perigo para eles, segue aquela cartilha do herói que ensina que o melhor a fazer é se afastar. E esse é o grande sacrifício de Carver. Em busca do bem maior, abandona sua vida e sua esposa, para ir lamber as botas do capeta. Perdido numa realidade em que os amigos são os inimigos, e isolado de sua verdade enquanto pessoa, Carver é um náufrago no oceano da própria mente. 

Trio Parada Dura: Tao e seus asseclas

Um dos grandes méritos de Sleeper é sua despretensão. O gibi não quer ser o novo grande hit, mas simplesmente contar uma história bacana, com começo, meio e fim. E os autores tem pleno êxito nessa proposta. Se você está querendo vasculhar os becos mais escuros e sórdidos do universo Wildstorm, seu gibi é esse aqui. 

Escritores de talento são aqueles que, além de saberem contar uma boa história, têm a manha de escolher os melhores brinquedinhos para fazê-la funcionar. E Brubaker fez exatamente isso. Pegou um personagem desconhecido (Carver), utilizou organizações já estabelecidas como a IO e colocou na mistura uma das melhores criações de Alan Moore durante sua passagem pelos Wildcats (Tao). E o resultado deu caldo. É isso aí. Não durma no ponto. Leia Sleeper.  

Sleeper durou duas "temporadas", cada uma com doze edições, e foi publicado pela DC/Wildstorm na gringa. O material ainda está inédito no Brasil. E isso sim é um crime tão perverso que nem Tao conseguiu conceber.

Holden Carver, sleeper agent