Batman e seu pretenso realismo

Em primeiro lugar, gostaria de enfatizar que gosto muito do personagem criado por Bob Kane, e que constantemente leio e releio HQs de Batman, incluindo o arco da Era de Prata escrito por Denis O'Neil, o não menos relevante O cavaleiro das trevas, de Frank Miller, a obra cult A piada mortal, de Alan Moore, como também o igualmente impactante Asilo Arkham, de Grant Morrison.

Considero todas as obras mencionadas verdadeiras referências do gênero super-heróis e não tenho dúvidas de que tais obras auxiliaram na iconização do personagem, conferindo a ele uma tonalidade quase mítica. Essas HQs foram fundamentais na constituição de um rico imaginário para os leitores, não somente pela excelente qualidade das tramas, como também por apresentarem o famoso arquétipo do vigilante detetivesco pulp em um mundo mais próximo ao nosso, mais palpável, mais cotidiano e atual (em seus respectivos contextos), ou seja, por mostrarem ações e relações mais plurais, no sentido de apresentarem os defeitos e as obsessões de Bruce Wayne e uma série de elementos humanos que antes eram camuflados ou suprimidos pelas cenas de sopapos regados a onomatopeias policromáticas, carros góticos bizarros e equipamentos ao estilo Mandrake.

O mesmo vale para o excelente filme O cavaleiro das trevas, de Christopher Nolan, e seu senso de pretenso realismo e pragmatismo em torno do ambiente ficcional e dos coadjuvantes do Batman, incluindo o famoso vilão Coringa e sua lógica hobbesiana no que tange ao instinto de sobrevivência imanente a todos nós. Fora todo o senso estético do filme regado a uma ação e a uma fotografia que deixam de lado o excesso de computação gráfica para dar lugar a cenários, modelos, fios, máscaras, efeitos de câmera e afins, tudo com o propósito de alcançar um impacto mais "realista", segundo palavras do próprio diretor em entrevistas.

Nolan e seu pretenso realismo

Pois bem. A questão que coloco se resume a esse "pretenso realismo inerente" em torno do Batman, um realismo comumente apregoado por artistas, roteiristas, leitores e aficionados, à exaustão. Mais de uma vez perguntei a amigos, conhecidos e fãs do personagem sobre filme de Nolan e a reposta usual se deu em torno da frase: "gostei porque achei realista". O mesmo vale para opiniões de botequim no que concerne ao personagem em si. Quantas opiniões seguiam a cartilha do "eu gosto muito mais do Batman do que do Super porque ele é mais realista, porque não passa de um homem comum".

Em primeiro lugar, o fato de um personagem ser aparentemente próximo a um homem comum não o faz ser necessariamente realista, isso porque "ser humano" é algo que vai além das características fisiológicas de nossa natureza mortal (como daquele sujeito que em todos os sentidos parece um mero mortal, mas que possui um senso moral sobre-humano, no sentido de ser incorruptível em qualquer situação). Em segundo lugar, porque não basta existirem personagens aparentemente comuns para que uma obra seja realista, como bem comprova o conto Alice no país das maravilhas e tantos outros personagens como a gente que visitam lugares completamente míticos, fabulosos e fantasiosos (por acaso um homem comum não ficaria completamente insano no País das Maravilhas, tal como ficou o Chapeleiro Louco?). Em terceiro lugar, porque, apesar de parecer humano, Batman, em todas as mídias onde foi representado (incluindo a caricata série de TV dos anos 1960 estrelada por Adam West) fez coisas que pessoas comuns jamais fariam, tais como lutar com os punhos e diversas bugigangas contra criminosos munidos com armas de fogo, estando envolto em uma capa e travestido de morcego. Desculpem por escrever e acentuar o óbvio, mas sobreviver durante anos esmurrando criminosos pelos becos escuros de uma cidade fictícia chamada Gotham está longe de ser algo palpável e realista segundo critérios válidos e racionais.

Batman seria tão realista quanto James Bond, Sherlock Holmes, Indiana Jones, Rambo e todos os demais personagens que apenas se parecem com pessoas comuns à primeira vista, mas que fazem coisas fisicamente e intelectualmente impossíveis para qualquer um de nós, mortais do mundo real. Se pararmos para pensar um pouco, concluiremos que é mais próximo da realidade um alienígena super-humano vergando uma ridícula cueca por cima das calças (até porque não sabemos como é a moda em Krypton) do que seres humanos sem poderes quaisquer realizarem tudo aquilo que todos os personagens citados acima conseguem.

Rambo: tão realista quanto Batman

Isso sem falar no fato de que nenhum filho de qualquer mega empresário do mundo real se tornaria, sob quaisquer circunstâncias reais, o Batman, mesmo após a morte traumática dos pais em um beco lúgubre e sujo. Isso é facilmente comprovado pela própria realidade que nos cerca: existem milhares de pessoas no mundo real, filhos de empresários ou não, que perderam entes queridos em assaltos e crimes quaisquer e nenhum deles, sob quaisquer circunstâncias ou situação se transformou em algo próximo ao Batman pelo que se sabe. Ou seja, realismo é aquilo que em situações reais acontece e não aquilo que em situações reais não acontece.

This is real life, bitch!

Estou falando aqui de um sujeito trajando roupas de morcego que literalmente sai saltitando pelos arranhas céus de uma grande metrópole ou mesmo que se locomove velozmente pelas vias públicas em um carrão estranho e estilizado. Nem vale argumentar que existem, pelas vielas de alguma grande metrópole, indivíduos fantasiados como o Batman.

Caso existam, bem, tais indivíduos devem ser completamente incompetentes no combate ao crime (eu nunca vi no jornal qualquer manchete do tipo, "famoso gângster nova-iorquino foi preso pelo vigilante mascarado denominado Mosca") e provavelmente se tornaram vigilantes após leitura de alguma HQ dessa natureza (casos excepcionais em que a realidade imita a ficção).

Realmente não existe nada de realista no conceito do Batman enquanto personagem ou metáfora da vida urbana mortal das grandes cidades, nada de realista no conceito de alguém vergando um collant cinza de morcego enquanto combate os mais perigosos delinquentes com equipamentos diversos e ultrassofisticados para levá-los à justiça. O que temos é um mero cenário que lembra em alguns aspectos o mundo real, um protagonista ficcional voltado para entreter crianças e adolescentes a partir de aventuras irreais, no máximo passando por situações que lembram alguns aspectos da vida real.

Normalmente obras realistas tratam de pessoas e temas comuns ao extremo, do cotidiano, de relacionamentos e situações usuais, ainda que representem personagens e obras de ficção. Podemos chegar ao mais próximo do realismo em um documentário, uma foto ou sequência de fatos narrados, um texto de cunho puramente descritivo, uma narrativa de acontecimentos, talvez um diário de vida, uma entrevista de história de vida. Mas, mesmo assim, são todas apenas representações da realidade, claro, uma visão que toma certas partes pelo todo, visto que nenhuma obra consegue e nem se pretende abarcar o todo real do mundo e das coisas reais do referido mundo (uma leitura da obra do filósofo Michel Foucault ou mesmo do historiador Roger Chartier poderia auxiliar nas divagações inerentes entre realidade e representação do real).

Batman e a eterna obsessão pelo realismo

Mesmo assim, muitos argumentarão que em paralelo a outros tantos personagens das HQs, o Batman seria um dos mais realistas. Como apontado mais acima, eu já expressei minha opinião que isso não se confirma de fato, que o personagem está longe de qualquer realismo em suas premissas fundamentais, tratando-se sim de um conceito eminentemente infanto-juvenil. O que acho do Batman, e considero que o filme de Nolan fez isso como ninguém, é que ele pode ter um alto grau de verossimilhança se bem estruturado e trabalhado narrativamente com esse propósito e isso não significa ser realista, mas sim ser mais palpável dentro de seu absurdo ficcional, de sua irrealidade inerente.

Em termos conceituais, o termo latino veri similis (de onde advêm a palavra verossimilhança), tratado por retóricos e oradores do porte do político e senador romano do século I a.C, Cícero, significava algo que, em dada situação, poderia ser aproximado ao real, ainda que não fosse a realidade concreta, mas sim um espelho do real, mesmo que a imagem representada não fosse a coisa em si e até pudesse ser distorcida ou invertida. Verossimilhança significava que "se aconteceu tal coisa, em dada situação, poderia acontecer isso ou aquilo a partir do fato e isso após uma análise sobre o que se sabia sobre o assunto em questão, ainda que fosse algo inexistente e irreal".

Assim, o que era verossímil não era necessariamente verdade ou realidade enquanto tal. Como bem afirmou Aristóteles sobre o assunto, "seria verossímil que namorados se amassem e inimigos se odiassem, ainda que não fosse verdadeiro ou real que isso acontecesse em todos os casos ou em algum caso específico, pois existiam namorados que em dadas situações se odiavam e inimigos que se amavam".

Em outras palavras, um sujeito do porte do Batman não seria considerado realista em hipótese alguma na visão de qualquer orador grego ou latino de renome e nem para qualquer um de nós que saiba minimamente a diferença entre realidade e representação, verdade e verossimilhança. O que posso sustentar com tudo isso é que, em algumas obras, principalmente no supracitado filme de Nolan, Batman e seu ambiente ficcional, incluindo muitos de seus coadjuvantes, possuem certa verossimilhança.

Ora, apesar de Batman não ser verdadeiro ou real, apesar de ser irreal qualquer ideia de um sujeito fantasiado de morcego lutando contra o crime, é verossímil na obra de Nolan, que, dada a ideia de que isso seria a tônica de uma obra ficcional, tal personagem irreal faça, em dada situação, coisas palpáveis e verossímeis segundo o que se apresenta na obra. Em outras palavras, o filme do Nolan se utilizou de alguém irreal ao extremo, o Batman, e deu-lhe coisas palpáveis para ele segundo graus elevados de verossimilhança, dando um aspecto apenas pseudo-realista às narrativas, tudo isso auxiliado pelo fato de os espectadores que viram o filme confundirem conceitos como os de verdade, realidade, representação e verossimilhança.

Nolan e outros tantos roteiristas que apresentaram doses de pseudo-realismo ao Batman estavam afirmando que, dado o absurdo de tudo isso, tal conduta ou ação seriam verossímeis em dada situação, ainda que em essência toda a situação envolvendo um sujeito vestido de morcego seja irreal ao extremo. Diversos exemplos podem ser citados a partir do filme de Nolan, como a pretensa realidade de pânico coletivo apresentado ao longo da narrativa ou o experimento sociológico do Coringa ao final do filme, ou mesmo uma entrevista em que um promotor público, Harvey Dent, afirma ser na verdade o Batman.

A partir dessa grande confusão conceitual do que seja realismo e verossimilhança, muitas pessoas passaram a tratar algo irreal como papável sob diversos critérios realistas, esquecendo-se de que se trata de algo palpável apenas sob critérios verossímeis. Mas vejam, por poder ser verossímil, e isso apenas em algumas obras ou arcos, Batman é um personagem bastante interessante, talvez muito mais próximo de arquétipos junguianos do que qualquer outra personagem do universo ficcional de super-heróis.

Ano um, de Miller, é uma das obras mais verossímeis envolvendo Batman

O Batman representado como um sujeito real se tornou uma tradição dos quadrinhos, seguindo a onda dos escritores nerds que passaram a figurar nas grandes editoras de quadrinhos a partir do final da década de 1960. Autores como Roy Thomas, Denis O'Neil, John Byrne, Cris Claremont, Frank Miller, dentre outros, se tornaram famosos e reconhecidos ao trazerem toques de verossimilhança a personagens de quadrinhos mainstream de super-heróis, ainda que a tradição desses quadrinhos tenha difundido a fórmula de que se tratava de narrativas realistas ou pior, que os personagens eram realistas em essência.

Esse engano se deu por motivos variados e cito aqui algumas conclusões de Grant Morrison sobre o assunto na obra Superdeuses. Por um lado, afirma o roteirista inglês, se trata de uma teimosia do mundo adulto que se nega a aceitar a distinção entre fantasia e realidade (diferentemente das crianças, que brincam de faz de conta sem culpa, sabendo que tais brincadeiras não são reais e nem devem parecer assim). Por outro lado, desvela a vontade de um público adulto que cresceu lendo HQs voltadas para crianças e adolescentes e que quer continuar com seu hobby de leitores assíduos sem a necessidade de explicarem os motivos de ainda serem leitores de um gênero de fantasia. Além disso, tal movimento se deve a diversificação e ampliação do público consumidor das HQs da indústria cultural mainstream ao longo dos anos 1960-1970, visto que as grandes empresas de quadrinhos procuravam maximizar seus lucros vendendo narrativas infantis para adultos que, em razão de trabalharem, tinham mais poder aquisitivo.

Morrison e sua leitura de Batman

O fato é que o ethos do realismo nas narrativas de super-heróis permaneceu, e muitos leitores, espectadores e fãs acreditam piamente nessa premissa, qual seja, de que pessoas de collants contra o crime podem ser realistas se representadas em situações verossímeis. Como uma mera carapaça, o realismo nos super-heróis não passa disso, sugerindo apenas uma fórmula para vender narrativas de um gênero eminentemente infanto-juvenil. De minha parte, saber dessa distinção entre realidade e verossimilhança em nada muda meu gosto pelos quadrinhos de super-heróis, sejam aqueles mais escapistas ou mais verossímeis. Ao contrário.

Tal como afirmado por Mark Waid e Kurt Busiek em diversas entrevistas, eu aceito o gênero de super-heróis em sua natureza eminentemente infanto-juvenil, seu irrealismo inerente ou seu pseudo-realismo regado a verossimilhança. Aceito, me divirto com algumas narrativas e sigo adiante com meu hobby. O que gosto de Batman não é o fato de ele ser real ou de expressar qualquer espelho do mundo real, mas por ser verossímil às vezes em sua irrealidade inerente, por ser eminentemente ficcional e incrivelmente mítico.

A influência dos gibis na minha paixão pelos livros e outras histórias




Volta e meia, nós da Raio Laser pedimos para amigos nossos escreverem sobre suas experiências como leitores de quadrinhos. A maioria não topa o desafio. A justificativa para a negativa seria um pretenso pequeno conhecimento sobre o universo das HQs. Insistimos dizendo que nesses casos não procuramos textos de especialistas, também nos interessa saber o que pensa o leitor comum, aquela pessoa que já leu quadrinhos mas não tem uma relação tão próxima, intenção ou aprofundada sobre o assunto. Queremos conhecer as memórias afetivas, as impressões instantâneas, os causos pitorescos. O primeiro amigo a topar a empreitada foi nômade bon vivant Leonardo Messias. O segundo é o jornalista brasiliense (anapolino de nascimento) Lúcio Flávio Silva. Apreciador do bom rock e do bom cinema, Lúcio edita um blog muito bacana no qual fala de suas paixões e expurga alguns demônios. Tudo de maneira bastante despojada e pessoal, por vezes bastante intimista, sempre com contornos interessantes e dicas valiosas. No texto a seguir, Lúcio Flávio comenta como os gibis lidos na infância serviram para ele de ponta para a literatura e ainda revela como esse contato germinou uma eterna simpatia pelos quadrinhos. (PB)

por Lúcio Flávio Silva

Houve um tempo, em algum lugar da minha infância, que os sábados não eram apenas dias santos, mas um estado de espírito mágico materializado em nossas visitas à banca de revista mais próxima de casa naqueles passeios matinais com papai. O coroa, sempre protegido do sol com sua boina estilo Pablo Neruda, trazia debaixo do braço a feira do dia e o jornal da semana, enquanto que eu e meu irmão gêmeo nos deliciávamos com os gibis de nossa predileção que ele comprava. E assim, mês a mês, nossa coleção ia aumentando consideravelmente. 

Bem, digam o que quiserem sobre os malefícios da leitura de quadrinhos, da má influência de Walt Disney sobre várias gerações, de milhares de bobagens do tipo. Mas o fato é que, bem antes de Monteiro Lobato e coisas do gênero, aprendi a gostar de ler mesmo foi com Pato Donald e o Mickey Mouse, Tio Patinhas e os seus sobrinhos, com a turma da Luluzinha e claro, com o Maurício de Sousa e seus personagens marcantes.



E, mesmo que não soubéssemos ainda, de uma forma ou de outra, estava tudo lá, nas entrelinhas lúdicas dos quadrinhos, influências de um Molière, das aventuras de Alexandre Dumas, dos desafios científicos de Júlio Verne e H. G. Wells, do submundo das tramas policiais delineadas pela narrativa elegante dos escritores Dashiell Hammett e Raymond Chandler e, veja só, até mesmo Shakespeare. Sim, ou você acha que personagens como o avarento Tio Patinhas e seus corajosos mosqueteiros Huguinho, Luizinho e Zezinho, assim como o inventivo Professor Pardal e os mal-intencionados irmãos Metralhas, entre outros, surgiram de onde?

Como diria o velho poeta maranhense Ferreira Gullar, citando a influência da obra de Le Corbusier no trabalho de Oscar Niemeyer: “Na cultura, assim como na vida, tudo é herança e transformação”.

E dos gibis da turma da Disney, da Luluzinha e da Mônica para os livros de Monteiro Lobato e outros clássicos da literatura infanto-juvenil comAlice no país das maravilhas, O pequeno príncipe, O menino do dedo verde, Meu pé de laranja-lima, entre outros, foi um pulo. Contudo, ainda perduram em algum lugar de minhas recordações infanto-juvenis, aquelas tardes gostosas de sábado e domingo com cheiro de café quente e petas da minha mãe, misturados com as páginas surradas dos meus gibis. Pilhas e mais pilhas de gibis que não sei onde foram parar depois.

Fragmentos de algumas dessas leituras até hoje pairam em meu inconsciente fosse pelo forte caráter social, político ou existencial, embora na época eu estivesse longe de saber o que significava essas coisas todas. Não me esqueço, por exemplo, de uma crítica à ganância e ao capitalismo desenfreado num episódio em que, na medida em que o Pato Donald ia subindo de status numa empresa, seu espaço no estacionamento acompanhava o bem sucedido desempenho profissional dele, simbolizado pelo materialismo. Assim, logo, logo aquela reles e sucateada bicicleta de entregador que ele pedalava no início da história, para cima e para baixo, era substituída por um carro mais aconchegante, e mais outro e outro, até chegar a uma lustrosa limusine.

Numa história do Maurício de Sousa, um personagem vive em agonia com o latente medo de tudo que sente. De não conseguir emprego, de andar sozinho pela rua, de não conseguir ser alguém na vida, de ficar doente, enfim, de morrer. Um dia, a Morte, em osso puro, lhe faz uma visita e o leva embora para o além-mundo e lá está ele a sete palmos do chão, para desespero da Senhora Foice, reclamando do medo de ressuscitar. E olha que estamos falando de um singelo quadrinho de Maurício de Sousa. Mais barra pesada impossível.

Daí veio a fase dos super-heróis e era um tal de barganhar gibis do Homem-Aranha, Super-Homem, Capitão América, Hulk, Homem de Ferro, e claro, Batman, meu preferido, com os colegas do colégio. Além de economizar uma grana, valia pela troca de experiências sensoriais e impressões afetivas de cada um.

Lembro que dessa fase, o maior ato de rebeldia ou quem sabe coragem que cometi foi chegar em casa um dia, para desespero da minha mãe, com uma revista do Conan, o Bárbaro enrolada sorrateiramente debaixo da camisa. Tudo isso para a coroa não se assustar com os traços sensuais das personagens baseadas na literatura de Robert E. Howard e as musas do crimeriano cheias de desejos. Um estratagema usado por pura vergonha que não funcionou, mas que com certeza, foi uma experiência bem menos traumática do que eu me decepcionar com a silhueta do bárbaro nos quadrinhos. Sim, porque eu não me conformava com o fato do personagem criado nos anos 70, não ter a cara do Arnold Schwarzenegger das telonas. Fazer o quê, como disse os meninos dos Stones, a gente nem sempre consegue tudo o que quer.


Nos últimos anos, motivado por experiências amorosas frustradas e momentos familiares mágicos, tenho me dedicado, não sei por que, com mais afinco, à leitura de clássicos como Calvin e Hobbes, Snoopy, Tintim e Malfada, esse último o predileto lá de casa, dividido entre tapas com minha sobrinha-afilhada. Não há como não se encantar com a urgente ingenuidade da menina Mafalda.

Bom, tenho muitos amigos que são profundo conhecedores de quadrinhos por aí, verdadeiras bibliotecas e enciclopédias ambulantes sobre o assunto e às vezes, me envergonho e sinto constrangido de não ter o conhecimento que eles têm no seguimento, com as observações sofisticadas e perspicazes sobre mangás, autores conceituados no gênero como um Robert Crumb ou Will Eisner e tantos outros. De modo que só me resta uma grande admiração pela turma.

* Este texto foi escrito ao som de: Out here e Roadmaster (Love/1969 – Gene Clark/1972)

Duas observações envolvendo Batman Ressurge


Por Ciro I. Marcondes


1: Sobre o Herói grego, os Super-Heróis e o atirador do Colorado

Herói grego por Pichard
O herói na antiguidade clássica era uma figura legitimamente criada pelo imaginário popular. Sua função, enquanto criação coletiva de um mundo pré-científico (ou melhor dizendo, pré-logosófico), em que religião, arte, filosofia e ciência se misturavam, era a de tornar cognoscível um sistema ético, metafísico, político, estético e religioso para o povo. Figuras como Aquiles, Ulisses e Heitor não eram apenas “histórias” que serviam para o povo se entreter, mas verdadeiras estruturas míticas de significação do mundo. A partir da instituição da filosofia, especialmente socrática, estas figuras vão assumindo caráter cada vez menos inspirador no sentido educacional, e passam a ser tornar personagens de literatura. Vale lembrar as palavras de Harold Innis: “Os poemas homéricos foram o trabalho de gerações de recitadores e menestréis, refletindo as demandas de gerações de público para quem esses poemas foram recitados”.

why so NOT serious?
Quando comparamos os super-heróis com os heróis gregos, como o faz, de um jeito mais ou menos irresponsável, Stan Lee, há um erro e um acerto: o acerto é que o super-heróis também são, de algum jeito, criações coletivas, moldadas num imaginário comum, que, através de diferentes artistas e com intensa participação de um público, acabam assumindo arquétipos sociais. O erro, entretanto, não pode ser desprezado. Os super-heróis aparecem em uma época já hiper-midiatizada, em que as criações da indústria claramente são modelos autorreferentes, cuja função quase exlcusiva é retroalimentar as próprias estruturas e funções da indústria. Foi assim com os quadrinhos, assim é com o cinema. Assim é com as adaptações de super-heróis para o cinema. Os super-heróis foram criados especialmente como propaganda de guerra, e sugiro expressamente que leiam o artigo que escrevi a respeito. A inspiração para suas atuações nas sociedades contemporâneas nada têm a ver com  a inspiração que o herói antigo tinha para os gregos. O super-herói nada inspira a não ser uma relação especular com sua própria estrutura midiática e industrial, sendo o público uma parcela ativa e participante deste jogo. Dentro destes limites, eles podem gerar histórias incríveis, algumas intensamente inteligentes, e é como produtos dentro deste universo hipermidiático do pop que devem ser pensados e apreciados. Fora isso, super-heróis são inverossímeis em sua mais crua natureza, e dar atenção demais a eles é dedicar muita energia a uma coisa escancaradamente alienante. Um culto extremado, que passe a colocá-los como modelos para representações da vida real é um culto ao próprio dinheiro que é o desdobramento inicial de todo seu processo constitutivo.  Não podemos esquecer as palavras do velho Milton Santos:

Picareta?
O consumo é o grande emoliente, produtor ou encorajador de imobilismos. Ele é, também, um veículo de narcisismos, por meio de seus estímulos estéticos, morais, sociais; e aparece como o grande fundamentalismo do nosso tempo, porque alcança e envolve toda gente.

Why so GODDAMN serious?
Eu sempre fui leitor e apreciador de quadrinhos de super-heróis, mas entendo que eles servem para serem consumidos, e não para que me inspirem coisa alguma. Na verdade, em termos de “inspiração”, é mais comum que o tiro saia pela culatra. O caso do atirador do Colorado é epistolar. Não podemos fechar os olhos e pensar que ele era apenas “mais um maluco” e que o filme do Batman não teve nada a ver com isso. Sim, ele era “mais um maluco”, mas um maluco que se dizia “ser o Coringa”, inspirado em um filme em que o Coringa é retratado como um niilista cruel e psicopático que quer “apenas ver o mundo queimar”. Certamente não foi a unica causa, e não tenho nada contra o filme, que é particularmente bom, mesmo que eu ache que esse Coringa do Nolan não traduza a essência do que o Coringa é para o Batman dos quadrinhos. A questão é: no mundo real, não existe e nem pode existir nenhum Batman para nos salvar de psicopatas niilistas. E, no mundo real, conforme o caso do Colorado bem demonstra, psicopatas niilistas estão aí, à espreita, para atirar em todo mundo. Não devemos nos encantar tanto com a cultura pop. Não vamos inverter esses valores. Mendigos não se parecem com zumbis. Zumbis é que se parecem com mendigos. Pensem nisso.

2: Sobre Bane e “A queda do Morcego”


O bom desempenho do personagem Bane em O cavaleiro das trevas ressurge confirmou algo que eu já pensava e desconfiava havia um bom tempo: o grande qualidade da saga A queda do morcego (Knightfall), tão execrada e questionada à sua época, humilhada por seu suposto viés exclusivamente comercial, vinculado à estratégia de “matar um personagem” para aumentar as vendas dos quadrinhos e depois ressuscitá-lo. Isso me faz pensar no quanto fãs de quadrinhos às vezes gostam de repetir bravatas e fixar pontos-de-vista por medo de encarar ideias novas ou puro e simples chauvinismo.

Li A queda do morcego no meio de minha adolescência, nos anos 90, com assiduidade e veneração que acho que nunca foi repetida em minha trajetória como fã de HQs. Esta não era apenas uma pequena história de um novo vilão que simplesmente aparece do nada e “quebra” o Batman. Esta era uma história de um personagem radicalmente novo, intensamente natural ao universo de Batman, ousado, corajoso e obcecado, com robusto mito de origem: Bane teria nascido e sido criado na pior prisão do mundo, e perturbadoramente uma única ideia fixa o motivara a sair e argutamente planejar uma longa ação de desmantelamento humano: matar o Batman. Porém, Bane se prova um personagem de inteligência ferina e diferentemente psicopática, e usa as próprias aporias de Batman para miná-lo psicologicamente, até que seu aspecto físico também esmoreça, e a obsessão do vilão sobrepuje a obsessão do herói.

Não é à toa que Bane seja o vilão escolhido para finalizar a trilogia de Nolan, planejada para capturar um aura mais hiper-realista de Batman, iniciada com as fabulosas novelas gráficas dos anos 80. Bane – e valem os créditos para os tão frequentemente desacreditados Chuck Dixon e Doug Moench – é a cristalização mais imediata deste conceito,  traduzido em sua incorporação ao cânone do herói, quando nenhum personagem que não figurasse nos primeiros anos de existência de Batman nos quadrinhos tivesse conseguido isso. Nolan percebeu que a argúcia hiper-realista, monstruosa porém factível, primada pela força obsessiva do vilão, seria a qualidade que ele buscava para finalizar a trilogia com um personagem que ancorasse Batman ainda mais no chão. Dito isso, vale pensar no quanto, às vezes, enquanto patrulhadores xiitas de nossos personagens, deixamos passar grandes ideias, que ainda existem, e que escapam diante dos nossos olhos, simplesmente pelo fato de acreditarmos que todas as boas histórias já foram contadas.


Arquiteto de papel


por Pedro Brandt


Usado sem critério, o termo graphic novel está sendo banalizado no Brasil. Hoje, qualquer publicação com uma história completa está ganhando a chancela de graphic novel, sem necessariamente o ser. O fato de a trama se resolver até a última página — em contraposição, por exemplo, às revistas em quadrinhos mensais, com histórias continuando na edição seguinte sem previsão para chegar ao fim — não é o suficiente para classificar uma história em quadrinhos como graphic novel.

Isso acontece pelo fato de o termo não ter critérios tão estritamente definidos. Em resumo, uma graphic novel é um romance (o gênero literário) narrado com o auxílio de ilustrações em sequência (a linguagem visual dos quadrinhos). O que ajuda a separar o joio do trigo é a intenção do autor. As graphic novels se popularizaram com títulos que buscavam temas pouco (ou nunca) explorados na mídia quadrinhos e novas maneiras de contar as histórias, com narrativas gráficas mais rebuscadas. São obras geralmente indicadas para leitores maduros. Surge daí o selo de qualidade geralmente associado às graphic novels — espertamente usado por editoras para atrair leitores e, em muitos casos, vender gato por lebre.

Nesse contexto, Asterios Polyp chega em um momento interessante às livrarias brasileiras. A HQ de David Mazzucchelli foi lançada em 2009 e laureada no ano seguinte como melhor graphic novel nos prêmios Eisner e Harvey (os dois mais conceituados dos quadrinhos nos Estados Unidos).

O destaque que Asterios ganhou na imprensa internacional trouxe para a obra leitores que não necessariamente lêem quadrinhos. Isso foi muito importante pois gerou um feedback bastante diversificado para a HQ e uma série de avaliações e comentários tanto sobre suas qualidades literárias quanto como quadrinísticas.

Uma folheada em Asterios Polyp é o bastante para encher os olhos. O visual do álbum é impressionante. E não teria como ser diferente, já que o autor é David Mazzucchelli, veterano dos quadrinhos que há muito tempo abandonou as séries regulares de super-heróis (ele desenhou sagas antológicas dos personagens Batman e Demolidor) para se dedicar a projetos pessoais, constantemente se reinventando como artista — como é o caso em Asterios, em que Mazzucchelli apresenta um traço tão diferente dos que mostrou anteriormente que seria quase impossível saber que é ele o ilustrador da HQ sem ver seu nome na capa.

Nada na arte de Asterios é à toa. A paleta de cores, os formatos dos balões de fala dos personagens, o design do personagens, a diagramação das páginas, a construção das cenas… enfim, tudo serve a uma função na condução da história (e para causar algum efeito no leitor) e é usado de maneira criativa e inovadora. Uma autêntica exploração das possibilidades da linguagem das histórias em quadrinhos. Como narrador visual, Mazzucchelli é um mestre. Algumas pontas soltas deixadas pelo caminho da trama, no entanto, revelam um roteirista em desenvolvimento — detalhe compensado pelas incríveis ilustrações.  

Arquiteto de papel

No seu 50º aniversário, Asterios Polyp tem um momento de revelação. Filho de pais gregos (o sobrenome da família foi encurtado por um agente da imigração americana), ele viveu seus 50 anos assombrado pelo fantasma do irmão gêmeo (Ignazio), morto no parto. Arquiteto de papel (que conquistou renome graças a seus projetos, não das edificações construídas a partir deles), Asterios passou a vida como um catedrático arrogante e narcisista, preso a neuroses e visões de mundo muito rígidas, que o impossibilitaram de enxergar a beleza além de seus preconceitos — atrapalhando sua relação com as pessoas, inclusive com a mulher, Hana. Ao perder tudo em um incêndio, o protagonista sai em busca de uma revisão de sua vida.

Mazzucchelli preenche a narrativa de citações filosóficas e ensinamentos herdados dos gregos antigos. Eles surgem tanto na fala dos personagens quanto nas imagens. A aproximação com a filosofia incomodou muitos leitores, que observaram a superficialidade com que o autor as utiliza. O problema, neste caso, seria mais com o próprio protagonista do que com Mazzucchelli. Até porque Asterios Polyp não tem pretensões filosóficas. Acontece que o herói da HQ é, em muitos momentos, tão irritantemente cheio de si, prepotente, que fica difícil não nutrir alguma antipatia por ele.


Isso, na verdade, é um trunfo da HQ. Asterios é um personagem vívido, crível. Assim como são todos do elenco. Os simbolismos que pipocam pela trama ajudam a tocar a história. Mas é a trajetória do personagem e seus dramas que a conduz. Na dúvida do que é uma graphic novel exemplar? Em forma e conteúdo, Asterios Polyp é uma ótima opção.

David Mazzucchelli

O desenhista americano começou a ser conhecido pelos leitores de quadrinhos a partir de seus trabalhos com os personagens Batman e Demolidor. Do primeiro, ilustrou a mini-série Batman — Ano um, com roteiro de Frank Miller, uma das mais consagradas do Cavaleiro das Trevas. Do Demolidor, desenhou a saga A queda de Murdock, outra parceria com Miller e momento clássico do herói cego. Com o roteirista Paul Karasik, Mazzucchelli adaptou Cidade de vidro, do escritor Paul Auster.





Publicado originalmente no Correio Braziliense

HQ em um quadro: Batman ouve Charlie Parker, por Gerard Jones e Mark Badger





















Bruce "bopster" Wayne (Gerard Jones e Mark Badger, 1995): Nas últimas semanas fez-se algum barulho com uma imagem do Batman "mandando ver" na Mulher-Gato, talvez com desnecessária repercussão (na minha opinião um tipo obsessivo como o morcegão teria toda sorte de transposição e recalque libidinal, talvez encaixotando tudo num compartimento inconsciente obscuro, resultando numa assexualidade tipo... Michael Jackson?). Resolvi então acrescentar um comentário sobre outra possibilidade não-usual para o herói a partir de uma minissérie já bastante esquecida, publicada pela DC em 1995, no título "legends of the dark knight", reservado para histórias fora de cronologia . Batman: Jazz foi escrita por um roteirista pseudo-rebuscado (Gerard Jones) e um artista "bom em algum mundo ligeiramente diferente, no multiverso" (Mark Badger). Mesmo assim, vale dar uma sacada no argumento original/insólito da série: Batman vai até a uptown de Gothan para investigar as tentativas de assassinato contra um velho jazzista que seria uma sobrevivente versão do grande e revolucionário bopper, criador do jazz moderno, Charlie Parker.

É verdade que as linhas de argumento em si são bem canhestras, mas, para fãs de jazz, a HQ proporciona a chance de se ver Batman envolvido numa trama que leva o leitor a um pequeno passeio pelos fundamentos, linguagem e personagens (como Dizzy Gillespie, primeiro pintado como possível e vaidoso vilão, e depois como redentor) preceptores da era moderna, assim como a embarcar, dentro de um gibi de heróis, no tipo de narrativa paranoide, lúgubre e noir (outra referência mal-utilizada é Cidadão Kane) que envolve a rocambólica literatura sobre Jazz (cf. Cortázar, Morrison, Kerouac). Afinal, pensando de novo em mundos paralelos, a cidade de Gothan City talvez fosse mais legal não como uma coisa néon e cyberpunk-gay (como nos filmes de Joel Schumacher) ou como metrópole vazia e tecnocrática (como nos de Christopher Nolan), mas sim um local charmoso e violento cujas contradições sombrias estariam mais enraizadas na alma e chagas da cultura negra americana. Uma cidade mais romântica que gótica, com blueses e jazzes. 

É por isso que se destaca este quadro, de uma página toda com pequenos meta-requadros, em que Batman, após insidioso convite, como gentleman, adentra em um pequeno club para ver tocar o estranho e espelhadamente deslocado homem que salvara no dia anterior. É muito comum que, dentro do clichê, se traduza o jazz como uma dialogada  língua musical dos sentimentos. Partindo disso, o bebop tão famoso do sax alto de Parker soa como um tipo de confidência torturada, que alterna entusiasmo esfuziante de coisas como a noite, o calor de um shot de heroína e fulgor sexual com a devassidão langorosa da ressaca, do abismo, do mundo obscuro da depressão. Pensar que um tipo visivelmente junkie (pensa aí qual é a adesão do morcegão) como Batman fosse se encontrar no universo íntimo do jazz não poderia deixar de ser verossímil, e é por isso que este quadro, dentro das limitações da história, impacta: o herói se deixa hipnotizar, como uma criança quebrando seu espelho lacaniano, descobrindo um duplo fraturado no mundo exterior. Ele goza, e relaxa. (CIM)

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