Cavaleiro da Lua: o herói lunático ainda luta por um lugar ao sol

 Por Marcos Maciel de Almeida

Werewolf by night # 32 (1975): Primeira aparição do Cavaleiro da Lua

Quem lê quadrinhos há algum tempo certamente já ouviu a clássica pergunta: “Qual é seu personagem favorito?” Costumo responder que o personagem não é o mais importante, mas sim o talento do escritor que vai contar as histórias do dito cujo. Por isso, acredito que leitores inveterados como eu tenham mais fidelidade a autores que a personagens. Digo isso porque mesmo personagens aparentemente sem sal podem se tornar interessantes, quando colocados sob a lupa de um escritor sagaz. Estão aí o Starman de James Robinson e o Homem-Animal do Grant Morrison que não me deixam mentir. A recíproca também é verdadeira. Personagens consagrados não são sinônimo automático de boas histórias. Ainda assim, existem personagens que nos cativam de forma instantânea e incondicional, seja por seu apelo visual, seja pelo tipo de narrativa que costumam inspirar. Por ambos motivos, o Cavaleiro da Lua sempre foi um de meus heróis prediletos. O uniforme maneiro, que lhe conferia uma charmosa aura de mistério, e a temática, envolvendo o submundo bizarro da Marvel, viraram paixão à primeira leitura. Pena que o personagem nunca teve muita longevidade nos títulos que envergaram seu nome, desde sua criação em 1975.

Cavaleiro da Lua, o herói quatro em um. O Cavaleiro da Lua deve ser um dos personagens do segundo escalão das HQs com recorde na quantidade de edições número 1 lançadas nos Estados Unidos. Só de séries mensais já teve sete, a maioria cancelada prematuramente. O personagem, infelizmente, não costuma ser sucesso de vendas. Sua série mais recente, que teve como argumentista o queridinho do mercado norteamericano, Jeff Lemire, também foi... consegue adivinhar? Cancelada. Melhor sina mereceria o herói encapuzado, apontado por alguns como o Batman da Marvel. Comparação justa? Vejamos. O Cavaleiro também é um combatente do crime desprovido de poderes. Assim como o Morcegão, conta com um arsenal de apetrechos tecnológicos. Seu auxiliar e funcionário, o Francês, é uma espécie de Alfred que mete mais a mão na massa. Mas as semelhanças param por aí. Por incrível que pareça, o Batman – muitas vezes retratado como um maníaco obsessivo não muito diferente de seus inimigos – pode ser considerado um poço de sanidade perto do Cavaleiro da Lua. Enquanto o Cavaleiro (das Trevas) tem uma vida dupla o outro Cavaleiro (da Lua) compartilha sua vida com mais três identidades: o playboy milionário Steven Grant, o taxista Jake Lockley e o mercenário Marc Spector. E os problemas psicológicos de nosso herói não se resumem a isso. Fazendo uma análise de sua trajetória, pode-se ver que a grande luta do Cavaleiro da Lua caracteriza-se pelo esforço de manutenção de um mínimo de sanidade. E isso não é de hoje.

Desde a fase clássica de Doug Moench, criador do personagem, e Bill Sienkiewicz, já era patente que ele tinha alguns parafusos a menos, fato evidenciado não apenas pela sua divisão em quatro personalidades. Numa minissérie – lindamente desenhada por Tommy Lee Edwards e inédita no Brasil – de 1998, Moench começa a carregar ainda mais nas tintas da esquizofrenia do mascarado. Numa história de alucinação que deixaria Philip K. Dick orgulhoso, o Cavaleiro da Lua é lançado numa realidade de sonho, ilusão e delírio. Outros autores que também exploraram temática semelhante foram Brian Michael Bendis e Alex Maleev, responsáveis pelas doze edições publicadas nos EUA a partir de 2011. Nessa série, o Cavaleiro da Lua sofre nova crise de identidade e passa a acreditar que... Deixa para lá. Não quero dar spoilers. 

Cavaleiro da Lua de Bendis e Maleev

Ironicamente, a fase em que o Cavaleiro volta a apresentar algum sinal de propósito e lucidez ocorre nas seis edições assinadas pelo doidão Warren Ellis que cria, em 2014, novos conceitos, bastante interessantes, para o personagem. Agora ele tem um novo uniforme e um comissário Gordon para chamar de seu. Além disso, passa a se denominar “o viajante noturno”, que seria uma espécie de protetor das almas perdidas na madrugada, vítimas das ameaças de nosso e de outros planos de existência. A fase de Ellis é pura porralouquice. Mostra o Cavaleiro dando porrada em punks fantasmas, descendo até os recônditos do esgoto de Nova York,  e invadindo os sonhos alheios. Aliás, a história do pugilato com punks ectoplásmicos é o suprassumo do que o Cavaleiro da Lua deveria ser: um personagem dividido entre várias personalidades, mas que só encontra a paz quando está às voltas com os becos mais sombrios e sobrenaturais do Universo Marvel. 

Ele seria, portanto, o verdadeiro detetive do impossível, com o perdão da usurpação do epíteto de Martin Mystère. Não que o Cavaleiro deva se restringir a isso. Muito pelo contrário. Ellis sabe disso e utiliza seus vastos recursos narrativos para encerrar sua fase com chave de ouro. Numa história que remete aos grandes momentos de Spirit, intitulada “Espectro”, o Cavaleiro da Lua torna-se mero coadjuvante num conto que revela o efêmero surgimento do novo Espectro Negro, personagem cuja brutalidade só é superada pela própria estupidez. Ah, já ia esquecendo: a fase de Ellis é toda desenhada por Declan Shalvey, que manda bem pra cacete. 

Cavaleiro da Lua: no mundo dos sonhos ou dos pesadelos?”

Bem, tudo que é bom dura pouco e Ellis vazou rapidinho, dando lugar a Brian Wood. E aqui gostaria de abrir um parêntese. É complicado para um personagem evoluir com a frequente mudança de equipes criativas. E para o paciente em questão, o estrago pode ser ainda maior, afinal de contas o Cavaleiro da Lua já não bate muito bem e precisa de um pouco de estabilidade, coitado. Pena que os editores recentes do vigilante nunca sacaram isso e insistiram no troca-troca. A fase de Wood – bastante irregular - durou seis números e, na sequência, o título foi assumido por Cullen Bunn. Também não darei muita moral para a fase deste escritor, que não foi exatamente um primor. Com a honrosa exceção de seu trabalho no conto “Anjos”, ele não conseguiu avançar muito com o personagem. Embora esta história não vá muito além de narrar uma cena de pancadaria urbana entre o Cavaleiro da Lua e bandidos voadores, é importante para mostrar a riqueza de situações em que o herói pode ser aproveitado.

Pancadaria aérea é o que há

A lua do Cavaleiro, que nessa época estava minguante, volta a brilhar mais forte quando uma dupla de responsa assume a revista: o já citado Jeff Lemire e o talentoso desenhista Greg Smallwood. O resultado foi excelente e comprovou minha teoria lá do começo. Está aqui mais uma demonstração de que são os escritores que fazem o personagem e não o contrário. Os bons autores são capazes, dentre outros feitos, de nos fazer enxergar coisas que estavam bem debaixo dos nossos olhos. Exemplo: o que temos de fazer com pessoas loucas e potencialmente perigosas? Internar num hospício. E esse foi o destino de nosso herói, que lá pôde encontrar seu elenco de apoio original: Marlene, Francês e Crawley, há muito ausentes do gibi. E sim, a luta do vigilante pela sanidade continua árdua, especialmente agora que tentam convencê-lo de que o Cavaleiro da Lua nunca existiu. Outro fator que dificulta sua recuperação é o fato de que ele passa a enxergar uma realidade em que Nova York, agora habitada por divindades e criaturas lendárias, se fundiu com o Egito Antigo. Somente foram lançados os primeiros cinco números da fase de Lemire no Brasil, mas o autor já disse a que veio. Espero que dessa vez a coisa engate e...putz, tinha esquecido: a revista foi... (agora você vai acertar) cancelada, depois de 14 edições. 

Quem quiser dar uma conferida no material acima pode procurar as revistas abaixo, lançadas no Brasil pela Panini:

Cavaleiro da Lua – Recomeço – Vols 1 e 2, 2015. (Fase do Brian Michael Bendis)

Cavaleiro da Lua – Vols 1-4, 2015-2017. (Fase do Ellis, Brian Wood, Cullen Bunn e Lemire. Um gibi para cada escritor). 

O Cavaleiro da Lua não parece ter sorte nos quadrinhos e muito menos em seu histórico de publicações. É uma pena, pois o personagem tem muito potencial, como ficou evidenciado quando teve escritores decentes, como Ellis e Lemire. 

Ah, infelizmente, o Cavaleiro da Lua não pode ser considerado o Batman da Marvel, embora existam semelhanças inegáveis entre ambos. Afirmo isso por uma simples razão. O Cavaleiro da Lua passou bem longe da sombra do sucesso do morcego. Se ele tivesse tido, ao menos, 1% do reconhecimento de seu primo rico, a coisa seria diferente. Mas isso seria uma outra realidade. E só nela o Cavaleiro poderia dizer que nasceu virado para a lua. 

O Cavaleiro da Lua de Stephen Platt. Esta imagem está aqui simplesmente porque é muito foda

Duas observações envolvendo Batman Ressurge


Por Ciro I. Marcondes


1: Sobre o Herói grego, os Super-Heróis e o atirador do Colorado

Herói grego por Pichard
O herói na antiguidade clássica era uma figura legitimamente criada pelo imaginário popular. Sua função, enquanto criação coletiva de um mundo pré-científico (ou melhor dizendo, pré-logosófico), em que religião, arte, filosofia e ciência se misturavam, era a de tornar cognoscível um sistema ético, metafísico, político, estético e religioso para o povo. Figuras como Aquiles, Ulisses e Heitor não eram apenas “histórias” que serviam para o povo se entreter, mas verdadeiras estruturas míticas de significação do mundo. A partir da instituição da filosofia, especialmente socrática, estas figuras vão assumindo caráter cada vez menos inspirador no sentido educacional, e passam a ser tornar personagens de literatura. Vale lembrar as palavras de Harold Innis: “Os poemas homéricos foram o trabalho de gerações de recitadores e menestréis, refletindo as demandas de gerações de público para quem esses poemas foram recitados”.

why so NOT serious?
Quando comparamos os super-heróis com os heróis gregos, como o faz, de um jeito mais ou menos irresponsável, Stan Lee, há um erro e um acerto: o acerto é que o super-heróis também são, de algum jeito, criações coletivas, moldadas num imaginário comum, que, através de diferentes artistas e com intensa participação de um público, acabam assumindo arquétipos sociais. O erro, entretanto, não pode ser desprezado. Os super-heróis aparecem em uma época já hiper-midiatizada, em que as criações da indústria claramente são modelos autorreferentes, cuja função quase exlcusiva é retroalimentar as próprias estruturas e funções da indústria. Foi assim com os quadrinhos, assim é com o cinema. Assim é com as adaptações de super-heróis para o cinema. Os super-heróis foram criados especialmente como propaganda de guerra, e sugiro expressamente que leiam o artigo que escrevi a respeito. A inspiração para suas atuações nas sociedades contemporâneas nada têm a ver com  a inspiração que o herói antigo tinha para os gregos. O super-herói nada inspira a não ser uma relação especular com sua própria estrutura midiática e industrial, sendo o público uma parcela ativa e participante deste jogo. Dentro destes limites, eles podem gerar histórias incríveis, algumas intensamente inteligentes, e é como produtos dentro deste universo hipermidiático do pop que devem ser pensados e apreciados. Fora isso, super-heróis são inverossímeis em sua mais crua natureza, e dar atenção demais a eles é dedicar muita energia a uma coisa escancaradamente alienante. Um culto extremado, que passe a colocá-los como modelos para representações da vida real é um culto ao próprio dinheiro que é o desdobramento inicial de todo seu processo constitutivo.  Não podemos esquecer as palavras do velho Milton Santos:

Picareta?
O consumo é o grande emoliente, produtor ou encorajador de imobilismos. Ele é, também, um veículo de narcisismos, por meio de seus estímulos estéticos, morais, sociais; e aparece como o grande fundamentalismo do nosso tempo, porque alcança e envolve toda gente.

Why so GODDAMN serious?
Eu sempre fui leitor e apreciador de quadrinhos de super-heróis, mas entendo que eles servem para serem consumidos, e não para que me inspirem coisa alguma. Na verdade, em termos de “inspiração”, é mais comum que o tiro saia pela culatra. O caso do atirador do Colorado é epistolar. Não podemos fechar os olhos e pensar que ele era apenas “mais um maluco” e que o filme do Batman não teve nada a ver com isso. Sim, ele era “mais um maluco”, mas um maluco que se dizia “ser o Coringa”, inspirado em um filme em que o Coringa é retratado como um niilista cruel e psicopático que quer “apenas ver o mundo queimar”. Certamente não foi a unica causa, e não tenho nada contra o filme, que é particularmente bom, mesmo que eu ache que esse Coringa do Nolan não traduza a essência do que o Coringa é para o Batman dos quadrinhos. A questão é: no mundo real, não existe e nem pode existir nenhum Batman para nos salvar de psicopatas niilistas. E, no mundo real, conforme o caso do Colorado bem demonstra, psicopatas niilistas estão aí, à espreita, para atirar em todo mundo. Não devemos nos encantar tanto com a cultura pop. Não vamos inverter esses valores. Mendigos não se parecem com zumbis. Zumbis é que se parecem com mendigos. Pensem nisso.

2: Sobre Bane e “A queda do Morcego”


O bom desempenho do personagem Bane em O cavaleiro das trevas ressurge confirmou algo que eu já pensava e desconfiava havia um bom tempo: o grande qualidade da saga A queda do morcego (Knightfall), tão execrada e questionada à sua época, humilhada por seu suposto viés exclusivamente comercial, vinculado à estratégia de “matar um personagem” para aumentar as vendas dos quadrinhos e depois ressuscitá-lo. Isso me faz pensar no quanto fãs de quadrinhos às vezes gostam de repetir bravatas e fixar pontos-de-vista por medo de encarar ideias novas ou puro e simples chauvinismo.

Li A queda do morcego no meio de minha adolescência, nos anos 90, com assiduidade e veneração que acho que nunca foi repetida em minha trajetória como fã de HQs. Esta não era apenas uma pequena história de um novo vilão que simplesmente aparece do nada e “quebra” o Batman. Esta era uma história de um personagem radicalmente novo, intensamente natural ao universo de Batman, ousado, corajoso e obcecado, com robusto mito de origem: Bane teria nascido e sido criado na pior prisão do mundo, e perturbadoramente uma única ideia fixa o motivara a sair e argutamente planejar uma longa ação de desmantelamento humano: matar o Batman. Porém, Bane se prova um personagem de inteligência ferina e diferentemente psicopática, e usa as próprias aporias de Batman para miná-lo psicologicamente, até que seu aspecto físico também esmoreça, e a obsessão do vilão sobrepuje a obsessão do herói.

Não é à toa que Bane seja o vilão escolhido para finalizar a trilogia de Nolan, planejada para capturar um aura mais hiper-realista de Batman, iniciada com as fabulosas novelas gráficas dos anos 80. Bane – e valem os créditos para os tão frequentemente desacreditados Chuck Dixon e Doug Moench – é a cristalização mais imediata deste conceito,  traduzido em sua incorporação ao cânone do herói, quando nenhum personagem que não figurasse nos primeiros anos de existência de Batman nos quadrinhos tivesse conseguido isso. Nolan percebeu que a argúcia hiper-realista, monstruosa porém factível, primada pela força obsessiva do vilão, seria a qualidade que ele buscava para finalizar a trilogia com um personagem que ancorasse Batman ainda mais no chão. Dito isso, vale pensar no quanto, às vezes, enquanto patrulhadores xiitas de nossos personagens, deixamos passar grandes ideias, que ainda existem, e que escapam diante dos nossos olhos, simplesmente pelo fato de acreditarmos que todas as boas histórias já foram contadas.