A CRIANÇA DOS OVOS DE OURO DE RAFAEL GRAMPÁ
/por Márcio Jr.
Aconteceu de novo. Sou presa fácil. O legítimo pato. Ouço o nome Frank Miller e quero ver o que está acontecendo – mesmo sem motivos plausíveis para isso.
Cavaleiro das Trevas: A Criança Dourada é exceção. Existe um motivo ao menos razoável para conferir a nova investida do tio Frank no universo do Batman. Um motivo brasileiro, inclusive: Rafael Grampá.
Coisa de uma década atrás, o gaúcho fez parte da potente vaga que renovou o quadrinho nacional – na qual podemos incluir nomes tão díspares quanto Rafael Coutinho, Marcelo D’Salete, Gabriel Góes e Diego Gerlach. Grampá chegou com os dois pés na porta: Mesmo Delivery, sua “graphic novel”, tornou-se um sucesso imediato. Ficamos todos ansiosos, esperando mais (e mais ambiciosas) HQs nascidas de seu pincel. Não rolou.
Furry Water, a série que viria em seguida, permanece sem conclusão. Uma pena. As artes de divulgação eram embasbacantes. O fato é que Grampá sabe como poucos gerir a própria carreira. Com as poucas páginas de Mesmo Delivery – que reli recentemente e, para minha surpresa, continua um gibizaço –, o cara se tornou um nome respeitado internacionalmente e foi fazer filmes, publicidade e coisas do tipo. Foi fazer dinheiro – um raro talento no meio dos quadrinhos.
Com essa mesma argúcia empreendedora, Grampá criou (e aproveitou como poucos seriam capazes) as condições para uma parceria com ninguém menos que Frank Miller. É consenso que o outrora brilhante quadrinista não apresenta um trabalho à altura de seus clássicos desde 300. Ou Sin City. Por outro lado, sua importância para a mídia é tamanha que a chancela FM continua disparando cifrões. A tal commodity.
A pegada anti-Trump gerou hype para A Criança Dourada. Os desenhos de Grampá – cujo retorno aos quadrinhos se mostrou verdadeiramente aguardado – catalisaram a atenção dos leitores. Algo bem distinto da deprimente indolência empregada por John Romita Jr. no mais que deprimente Superman Ano Um. O resultado foi um gibi popular, seguido de uma jogada de mestre: o leilão internacional dos originais da HQ. Fala-se de uma arrecadação da ordem de 500 mil doletas. Palmas pro cara.
De qualquer forma, comemorar o sucesso da visão comercial de Grampá equivale, em certa medida, a comemorar sucesso de bilheteria em filme de super-herói. É óbvio que os resultados financeiros estrategicamente atingidos merecem estudo e atenção, principalmente num meio caracterizado por trabalho árduo e grana curta. Contudo, a questão que interessa aqui é: qual a relevância de A Criança Dourada para os quadrinhos?
A trama da nova aventura situada no milleriano universo do Cavaleiro das Trevas não é mais que um fiapo. Eleições, Trump, Bolsonaro, milícias juvenis, deuses entre mortais. Ideias potencialmente interessantes, sufocadas pela falta de espaço. Como no contemporâneo mundo dos memes, tudo é superficial – e rapidamente esquecível.
A ambiguidade política da canônica minissérie de 1986 – que àquela altura fez muitos leitores a enxergarem sob um viés progressista – foi reduzida a mera confusão. Coringa, Darkseid, Trump e Bozo são os vilões do momento. Já os filhos do Superman, os “heróis”, possuem um olhar de superioridade em relação à humanidade que transpira fascismo. Carrie Kelley, ex-Robin e agora Batwoman, é uma subcomandante de milícias. Falando nela, só eu achei seu visual ultracool aparentado com o disfuncional personagem Verloq, do contemporâneo Diego Gerlach?
O passar das décadas revelou um certo pendor conservador em Frank Miller. Talvez ele resolva melhor as questões que envolvem o reacionarismo destes personagens em novas investidas no seu morcegoso playground particular. Talvez. O que temos para hoje é um gibi de super-herói ancorado nas capacidades gráficas e narrativas de Rafael Grampá. E ele se sai muito bem, diga-se de passagem.
Histórias em quadrinhos são um meio imagético. Advogo que HQs podem ser boas, muito boas – e até mesmo excelentes! –, ainda que contenham roteiros frágeis. Nesses casos, o que determina a qualidade da obra é o domínio da linguagem quadrinística por parte do desenhista. E não estou aqui falando de ilustrações exuberantes, mas sim de narrativa gráfica. Cinco por Infinito, clássico do espanhol Esteban Maroto, é um exemplo.
Em A Criança Dourada, Rafael Grampá mostra serviço. A par da beleza de seu desenho propriamente dito, as páginas possuem design elaborado e ritmo vigoroso. A ação é intensa e os personagens vibram com energia juvenil. Mesmo a colorização digital, sob responsabilidade de Jordie Bellaire, traz alguma organicidade, escapando ao nauseante padrão dos gibis mainstream. Compare com o trabalho feito por Alex Sinclair no abjeto Superman Ano Um e tire suas próprias conclusões.
Dia desses, o quadrinista espanhol David Rubín postou algumas páginas em preto e branco do gibi. Tratava-se de uma luxuosa edição francesa, com a HQ colorida, seguida pelas páginas PB escaneadas diretamente dos originais – aqueles mesmo que parecem ter feito de Grampá um milionário. Rubín deitou loas ao talento do colega. Não posso discordar.
A impressão que fica é que Rafael Grampá não teve ganas de artista em A Criança Dourada. O brasileiro encontrou um apropriado equilíbrio entre expressão autoral e gibi produzido pela indústria. Emprestando seu talento a ele, conseguiu inclusive que Frank Miller escrevesse alguns bons diálogos e recordatórios. Deu até saudades do velho Miller. Talvez ele volte algum dia. Pouco provável. Até lá, parece que o melhor que teremos é isso aqui: um gibi de super-herói minimamente divertido e decente. Por R$ 14,90, está de bom tamanho.