Conan, o bárbaro e o enigma do aço: sobre o filme de John Milius (1982)

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por Marco Antonio Collares

No ano de 1982, o diretor e cineasta John Milius decidiu levar, para a grande tela, o mais famoso personagem de Robert Ervin Howard: Conan, o cimério. Howard já era conhecido como o “pai” do subgênero literário denominado de sword and sorcery (espada e feitiçaria). O termo foi devidamente cunhado nos anos 1960 pelo escritor Fritz Leiber após esse aceitar o desafio para a criação de uma designação para esse tipo de literatura pelo também escritor Michael Moorcock, criador do personagem Elric.

O termo designaria certas aventuras fantásticas de personagens igualmente incríveis em mundos ficcionais, onde o sobrenatural, a magia e as criaturas mais bizarras de nossos mitos seriam reais e tacitamente aceitas por todos, dos leitores aos personagens das tramas.

Milius já era um diretor talentoso, tendo dirigido filmes do porte de O Vento e o Leão, de 1975, e Amargo Reencontro, de 1978. Além disso, ele ficou conhecido por escrever roteiros cinematográficos (seja como autor ou coautor), com destaques para Perseguidor Implacável, de 1971, Mais Forte que a Vingança, de 1972, Magnum 44, de 1973, Tubarão, de 1975, Apocalipse Now, de 1979 (não creditado), dentre outros. Isso sem falar em suas próprias produções, tais como a minissérie Roma, da HBO, o longa De Volta para o Inferno, ou mesmo 1941: uma guerra muito louca.

O controverso diretor John Milius

O controverso diretor John Milius

Nascido em Saint Louis, no Missouri, no ano de 1944, Milius é filho de um sapateiro judeu, tornando-se muito cedo um adepto atuante do militarismo, intencionando desde cedo uma carreira militar nos fuzileiros navais dos EUA. Muito rapidamente, ele foi severamente descartado pelas forças armadas americanas devido aos seus acessos de asma, ainda que suas paixões exageradas pelas armas e por colocar a si mesmo e a seus companheiros em riscos desnecessários fossem motivos suficientes. Milius se tornou, mesmo assim, um estrategista autodidata e também um dos membros mais ardorosos e atuantes da National Rifle Association, grupo deveras influente ligado ao lobby político das armas nos EUA.

Suas ideologias giram em torno da defesa das liberdades de expressão, da pena de morte em caso de crimes brutais, bem como do porte de armas para os cidadãos defenderem suas vidas e suas propriedades. Conservador em relação a certos costumes, anticomunista convicto, mas liberal no que tange a outros tantos, Milius se formou na Escola de Cinema e Televisão da Universidade do Sul da Califórnia, sendo comumente denunciado pelos colegas por razões como violência contra mulheres, práticas usuais de agressão, ameaças em ambientes de festa e orgias regadas a bebedeiras, jogos perigosos e conflitos. Essas acusações, claro, podem ser exageradas devido aos seus roteiros e filmes “testosterona”.

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Segundo várias entrevistas suas, seu Conan estaria marcado pela brutalidade e pela selvageria inerente ao ser bárbaro, sendo Gengis Khan um dos modelos utilizados para compor o personagem no cinema. Aliás, uma das poucas falas do bárbaro no filme de 1982 teria sido atribuída ao histórico líder mongol. Trata-se da fala em que Conan responde, a um chefe tribal guerreiro oriental, “o que seria melhor na vida”. A resposta teria sido retirada de uma fala atribuída, segundo o filósofo Friedrich Nietzsche, a Gengis Khan, o personagem que Milius tanto adorava, com dizeres um tanto sugestivos. Algo como: “O bom na vida é esmagar nossos inimigos, vê-los fugirem para sempre e ouvir os lamentos de suas mulheres”.

Observando atentamente, é evidente que o filme exaltou a belicosidade do bárbaro Conan de Howard, tão bem esboçada nos textos literários pulps dos anos 1930, ainda que muito da personalidade complexa do personagem (situada entre momentos de alegria, exaltação e melancolia) tenha se tornado bidimensional e simplificada na produção de 1982, em torno de uma vingança pessoal contra aqueles que mataram os cimérios, seu povo e seus familiares.

O filme contou com a produção da FOX em parceria com a Universal Studios, mais a participação dos produtores Dino e Rafaella De Laurentis, juntos de Edward Pressman. O roteiro original foi cunhado inicialmente por Oliver Stone, principalmente no que concerne à busca pelo “enigma do aço”, que de certa forma se tornou central na obra final.

A trilha sonora foi um dos pontos altos da produção, com a batuta do compositor greco-americano Basil Poledouris, que, aliás, recebeu muitos elogios da crítica pela mescla de música clássica com uma batida poderosa e um crescente contagiante nas cenas iniciais, quando a ausência de diálogos por cerca de quinze a vinte minutos foi acertadamente preenchida por uma musicalidade até mais poderosa que Carmina Burana.

O elenco contou com o mais popular fisiculturista da época e talvez de todos os tempos, o supercampeão do Mister Olympia e do Mister Universo dos anos 1960-1970, Arnold Schwarzenegger. Como antagonista, para vivenciar o feiticeiro-sacerdote Thulsa Doom (inimigo de outro personagem de Howard, o rei Kull), foi chamado James Earl Jones, que tinha se sobressaído como voz de Darth Vader em Star Wars. Como nome de peso no elenco foi chamado o ator Sir Max Von Sydon, atuando no filme como o rei Osiric, sendo todos esses auxiliados por um grupo de menor expressão.

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Para compor o par romântico de Conan foi chamada a linda e sensual dançarina Sandahl Bergman, que fez a personagem Valéria da Irmandade Vermelha, imortalizada, segundo alguns apologistas, mais pela atuação no filme do que pela sua participação no conto howardiano intitulado de Red Nails. O surfista Gerry Lopes fez um dos parceiros de Conan, o arqueiro Subotai, enquanto que o ator oriental Akiro fez outro aliado do cimério, o feiticeiro Mako, ficando Ben Davidson como um dos antagonistas físicos do bárbaro, o poderoso Rexor.

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Interessante notar que as locações foram gravadas em Almeria, na Espanha, o que confere ao filme uma linda fotografia, um tanto “suja” e com conotações realistas, talvez pelos cenários inteiros criados na produção, o que aproxima a obra da forma como a Era Hiboriana foi pensada por seu criador. Muitas imagens do filme, bem como os famosos storyboards, foram retirados das pinturas do incrível ilustrador Frank Frazzetta, que tinha popularizado a imagem icônica de Conan a partir dos anos 1960 em capas de livros de contos republicados, uma das bases para a representação do personagem nas HQs da Marvel Comics dos anos 1970 em diante.

Para compor o cartaz de divulgação, foi chamado um especialista no assunto, o ilustrador Renato Casaro, que se destaca em outros tantos cartazes promocionais de filmes, do porte de Flash Gordon, Rambo, Dança com Lobos, Fuga de Nova York, dentre outros.

O personagem Conan teve poucas falas no filme e isso foi motivo de críticas de parte de muitos fãs, visto que a imagem de um sujeito lacônico muito contribuiu para a ideia geral de que o bárbaro seria estúpido, obtuso e impulsivo, afastando-o negativamente do personagem criado por Robert Howard. O excesso de sotaque austríaco do ator principal parece ter contribuído para as poucas falas do personagem, muitas das quais recolocadas na boca do feiticeiro Mako, que se tornou uma espécie de narrador universal da trama.

Algumas referências das narrativas howardianas sobre Conan foram utilizadas, destacando-se as Crônicas da Nemédia que iniciam a aventura, bem como certas cenas e ideias paralelas. A invasão à Torre da Serpente no meio da trama muito se assemelha ao arco de A Torre do Elefante, quando Conan se aventurava como um ladrão para invadir o templo de um poderoso sacerdote.

A crucificação do bárbaro, mais especificamente em uma árvore cercada de abutres (e não há como não evidenciar a força primal bárbara de Conan, quando ele devora um abutre ao invés de ser devorado), muito se assemelha a uma passagem do conto Uma Bruxa Nascerá, o mesmo valendo para a passagem final, quando o espírito de Valéria salva Conan do golpe fatal de seu inimigo, cena essa retirada de A Rainha da Costa Negra, quando a personagem Bêlit fez algo equivalente.

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Muito se comenta sobre o filme de 1982 ser fiel ou não às narrativas howardianas, o que se torna ainda mais evidente quando se trata do personagem principal. Os fãs mais ardorosos usualmente ou idolatram o filme, considerando o bárbaro ali retratado o mais fiel possível (muito em razão do porte físico do ator principal) ou o criticam totalmente, taxando o personagem representado na grande tela como uma mera sombra obtusa do bárbaro criado por Howard.

Parece que as opiniões no geral, como é costume quando se trata de cultura pop, se encontram em uma dicotomia aberta, maniqueísta e pouco dialética, entre a idolatria ufanista e a crítica venenosa de um purismo exacerbado.

Ora, o personagem criado nos anos 1930 não teria como ser idêntico ao que está sendo representado no filme de 1982, ainda que existam alguns elementos comuns. O bárbaro Conan, em sua essência original (se é que podemos defender essa possibilidade) foi um personagem deveras autoral, parte de algumas idealizações de um autor muito vinculado a um dado tempo e a seu lugar de pertencimento (mais especificamente, o oeste dos EUA e o Texas em particular). Um autor que idealizava o modo de ser da barbárie de um jeito muito próprio e que criticava abertamente a civilização de uma forma muito peculiar. Isso talvez por um sentimento de crise poderoso que fazia parte da geração da Grande Depressão Econômica dos anos 1930.

O Conan de John Milius, por sua vez, mais parece a expressão de um sujeito em meio a uma trajetória de vingança pessoal do que o hedonista bárbaro às vezes melancólico que se contrapunha a uma civilização decadente e que se tornaria, em algum momento de sua vida, o rei de um dos seus mais importantes reinos: a Aquilônia.

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O Conan da grande tela segue o viés da “trajetória do herói” de Joseph Campbell e tal construção parece não haver no Conan de Howard, visto que nos contos literários ele possui muitas faces em fatos e acontecimentos sem cronologia temporal e sem uma trajetória organizada. Além disso, o Conan do filme de 1982 parece-nos também expressar o sujeito intencionado contra coletivos específicos, grupos religiosos fanáticos que se baseiam na manipulação contra a pureza da guerra e, claro, contra o poder das armas e do aço. É nesse ponto que entra o enigma do aço, tão exaltado no filme.

Nos parece que o ponto central do filme, além da supracitada vingança de Conan contra o antagonista Thulsa Doom e seus asseclas, é o significado de tal enigma. Os cimérios, povo de onde se origina Conan, parecem conhecer o segredo, como revela o pai do bárbaro logo na primeira passagem do filme.

O antagonista inicialmente estaria atrás deste enigma (levando-o a dizimar a vila de Conan), mas logo ele mesmo passaria a se valer do poder da carne, ou melhor, da manipulação sobre a carne humana via um fanatismo de cunho religioso. Em outras palavras, Thulsa Doom abandona a guerra primal para obter a exaltação cega dos fanáticos perante sua figura de messias.

Esse personagem não deixa de ser o civilizado que acredita em um mundo para além da guerra tribal bárbara (e talvez nesse ponto, o tema da civilização diante da barbárie aproxime aqui o filme das narrativas howardianas), e que se coloca como líder espiritual da humanidade, sendo o contraponto do bárbaro Conan e de seus irmãos cimérios, que vivem pela guerra e que forjam suas vidas e personalidades na busca pelo enigma do aço, tão caro aos seus ancestrais. Parece haver aqui uma espécie de pretensa “teogonia (origem dos deuses) no filme, pelo menos na explicação da relação entre Crom, o deus cimério, e seu povo como um todo.

Isso porque os cimérios conheceriam uma verdade transcendental, de que a razão de ser das coisas se encontraria na guerra aberta, no aço contra aço, na exaltação honesta da batalha tribal e não nas palavras civilizadas, com suas manipulações, seus falsos profetas ou messias, seu fanatismo pelo poder, sua busca pelo controle sobre outros homens e suas crenças que desvirtuam os civilizados. Crom seria a deidade indiferente no filme, tal e qual era nos contos howaridanos e, nesse ponto, a aproximação se faz presente novamente, ainda que dialética e circunstancial.

No filme, Crom teria desvelado o enigma do aço aos cimérios, um enigma que atestava o quanto seria o espírito do homem o verdadeiro condutor da espada e que, de tal forma, esse homem superaria todas as adversidades. Não seria preciso qualquer idolatria a um falso messias da carne para que o homem compreendesse a razão de ser das coisas. Seria imperativo, outrossim, apenas que ele acreditasse em si mesmo, que empunhasse o aço livremente e pelos motivos justos. Nenhum deus ajudaria nesse momento (e a fantástica reza final de Conan para Crom ressalta esse ponto), mas sim a mão que empunhava melhor e mais habilmente a espada ou, melhor dizendo, o aço.

Bem, filosofia à parte, não há como não compreender o quanto essas premissas fazem parte do constructo primal do filme de 1982. O quanto isso aproxima e ao mesmo tempo afasta o bárbaro cimério ali retratado do personagem criado no longínquo ano de 1932. Discussões à parte, todos esses pontos fazem do filme de Milius uma boa obra de entretenimento, bem como parte inerente da visão de mundo do diretor.

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Como um homem de armas e militarista convicto, não tinha como Milius deixar de exaltar o poder primal da guerra conduzida por homens retos e que jamais se valem de imperativos mesquinhos para adquirirem poder ou solucionarem seus problemas e adversidades. Conan é assim retratado como a mão que impunha a espada e o aço, assim como qualquer guerreiro-cidadão da época de Milius seria aquele que, pelos motivos certos, empunharia sua arma contra interesses mesquinhos.

O Conan de 1982 possui as premissas pessoais de Milius assim como aquele de 1930 possui a visão de mundo de seu criador, o que não poderia ser diferente. Isso não significa que inexista, da parte dos produtores do filme e de seus roteiristas, uma tentativa de encontrar aspectos originários e essenciais do Conan howardiano, tal como comprovam as referências citadas mais acima.

Vendo por esse prisma, a questão não é mais se o filme é ou não fiel às narrativas literárias originais howardianas, mas o quanto ele se torna um amálgama daquilo que Milius achava que seria esse personagem a partir de sua própria visão de mundo, igualmente autoral e específica. Gostar ou não do filme, sendo nós meros fãs ou não das narrativas originais howardianas de Conan, bem, isso já é uma outra história.