LASERCAST #11 - ASTERIX E A REPRESENTAÇÃO RACIAL
/Asterix é sem dúvida uma das histórias em quadrinhos mais cultuadas de todos os tempos, no mundo inteiro - e a palavra-chave para este episódio é justamente "tempos". Naqueles em que a saga de resistência dos gauleses foi concebida, o questionamento às perspectivas naturalizadas do eurocentrismo e da superioridade caucasiana encontravam pouco espaço para florescer, senão nenhum. Ao longo das décadas que desembocaram em nossos tempos, aprendemos a questionar e refletir sobre os discursos que reverberam essa visão de subjugação - e o artigo da revista norte-americana Publishers Weekly sobre o relançamento de Asterix nos EUA e a representação dos negros em suas páginas é um exemplo disso. É a partir de sua proposta de uma releitura crítica desse clássico que trazemos o debate para este episódio do Lasercast. (Dandara Palankof)
Participam do debate: Dandara Palankof, Lima Neto, Bruno Porto. Convidados: Anne Quiangala (pesquisadora e influencer - http://www.pretaenerd.com.br/), João Pinheiro (autor de quadrinhos) e Nobu Chinen (professor e pesquisador, UFRJ, Observatório de histórias em quadrinhos da ECA-USP).
Edição: Eder Freire.
Disponível em: SPOTIFY, APPLE PODCASTS, GOOGLE PODCASTS, CASTBOX, ANCHOR, BREAKER, RADIOPUBLIC, POCKET CASTS, OVERCAST, DEEZER
Buscando evitar eventuais falhas de comunicação, selecionamos algumas imagens mencionadas pelos participantes neste episódio para ilustrar suas falas:
O pirata Baba é o personagem negro mais recorrente na série Asterix, aparecendo em 25 dos 38 álbuns canônicos produzidos entre 1961-2019. Assim como os demais personagens, suas características visuais pouco se alteraram com o passar dos anos, como pode ser conferido nestes exemplos de 1967, 1969, 1975, 1976, 1987, 1996, 2009, 2015, 2017 e 2019.
O trio principal dos piratas - o Capitão Barba-Ruiva, o perneta Três Patas (ou Três Pernas, dependendo da tradução) e o marujo Baba - são paródias de personagens de Barbe-Rouge, série de aventura criada por Jean-Michel Charlier e Victor Hubinon, publicada na mesma revista Pilote onde estreou Asterix.
A semelhança entre Baba e o outro único personagem negro em Asterix nos Jogos Olímpicos (1968), de Goscinny & Uderzo, fica patente por aparecerem nas mesmas páginas.
A falta de originalidade na representação visual dos personagens negros é transformada em piada no álbum seguinte, Asterix e o Caldeirão (1969), de Goscinny & Uderzo, quando um gladiador lamenta não ter entrado para o ramo da pirataria como fizera seu primo.
Mesmo contando com tipos físicos diferentes, os negros geralmente assumem papéis de gladiadores ou serviçais - principais funções dos escravos na época da República Romana. Contudo, Guarinello (2006, pp. 229-234) esclarece que “a escravidão antiga sempre conviveu com outras formas de dominação de pessoas e de exploração de trabalho dependente (...) A escravidão era, para os romanos dessa época, um fato normal da vida, como o trabalho assalariado é para nós.”
Como de fato acontecia na Roma Antiga, a série consistentemente apresenta os grupos de escravos com ampla diversidade de tipos, como visto nestas imagens de O Domínio dos Deuses (1971), Os louros de César (1972), ambos de Goscinny & Uderzo, e A Galera de Obelix (1996), de Uderzo.
Em O Domínio dos Deuses, o líder do grupo multirracial de escravos é o númida Duplicata, que recebe a poção mágica dos gauleses para se rebelar contra os romanos. Ele, no entanto, utiliza-a não para libertar-se à força mas para ter poder de negociação com seus captores, visando melhores condições de trabalho e sua libertação ao final da empreitada.
Embora não sejam retratados com vileza ou mesquinhez, são raras as aparições de personagens negros de forma neutra - como simples turistas (1968) - ou assertiva - como os eruditos escribas que exercem um papel fundamental na trama de O Papiro de César (2015).
Em Asterix e a Transitálica (2017, álbum inédito no Brasil), de Jean-Yves Ferri & Didier Conrad, duas personagens negras ganham destaque competindo em condições igualitárias na corrida de bigas que é o mote do álbum, com nomes, falas, e aparências e personalidades distintas.
Livros e textos mencionados no episódio:
A fantasia deles sobre nós: A representação das heroínas negras nos quadrinhos mainstream da Marvel (2017), de Anne Quiangala
Astérix ou la parodie des identités (2008), de Nicolas Rouvière
Aya de Yopougon (2006), de Marguerite Abouet e Clément Oubrerie
Black images in the comics (2003), de Fredrik Strömberg
Carolina (2016), de João Pinheiro e Sirlene Barbosa
Charles Schulz no divã: Exposição Good Grief, Charlie Brown! Celebrating Snoopy and the enduring power of Peanuts (14.02.2019), por Bruno Porto
Escravos sem senhores: escravidão, trabalho e poder no Mundo Romano (2006, de Norberto Luiz Guarinello
(H)afrocentric (2017-), de Juliana "Jewels" Smith, Mike Hampton e Ronald Nelson
How to Read a Racist Book to Your Kids (15.06.2012), por Stephen Marche
How (not) to Read Racist Books to Your Kids (17.06.2012)
How to Really Read Racist Books to Your Kids (22.06.2012), por Jeremy Adam Smith
Jeremias Pele (2018), de Jefferson Costa e Rafael Calça
O negro nos quadrinhos do Brasil (2019), de Nobu Chinen
Realismo capitalista (2020), Mark Fisher
Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador (2007), de Albert Memmi
Race and Representation: Relaunching Asterix in America (19.08.2020), por Brigid Alverson & Calvin Reid
Visual+mente #46 - Tintin e Racismo (03.11.2016)