LASERCAST #80: A ESTRANHA HQ DE DAVE SIM
/Qualquer um que botar as mãos em A Estranha Morte de Alex Raymond logo vai perceber que se trata de um dos quadrinhos mais rebuscados e ambiciosos já feitos. Coisa assim comparável a Asterios Polyp e ao trabalho de Chris Ware. Robusto em suas mais de 300 densas páginas, este romance gráfico mostra o quadrinista Dave Sim investigando, com técnicas até mesmo forenses, a história do fotorrealismo nos quadrinhos americanos, baseando-se na tríade Alex Raymond, Hal Foster e Milton Caniff.
Paralelamente, Sim realiza uma devassa da vida pessoal destes artistas, suas sutilezas enquanto sobreviventes no meio das HQs, e as muitas coincidências (como se fossem sincronicidades jungianas) que envolvem estas relações, o que ele chama de “metafísica dos quadrinhos”, talvez sem ter muita noção do que “metafísica” signifique.
Com essa já bastante específica premissa, o quadrinista canadense realiza um trabalho ensaístico muito elaborado, procurando mimetizar obsessivamente o estilo dos artistas retratados, passear por requadros antigos e esquecidos, intervir frontalmente quebrando muitas vezes a quarta parede, e inserir o leitor numa espécie de umbral comunicativo onde todo tipo de recurso pode ser sacado imediatamente, com o autor tendo absoluto controle de como o grande volume de informações do quadrinho é transmitido.
Sim vai descortinando uma hermética estrutura de camadas (às vezes meio paranoica, às vezes meio punhetística) procurando solucionar estas coincidências que culminam na questionável (do ponto de vista do relato “oficial”) morte de Alex Raymond por acidente de carro em 1956.
Dave Sim, pra quem não sabe, é o autor da série Cerebus, que durou décadas, sendo a mais longeva publicada por um só autor nos EUA. Importante para consolidação de um quadrinho alternativo e independente a partir dos anos 1980, Sim é também uma figura controversa e meio odiosa, famoso por sua deliberada misoginia, sua reputação de encrenqueiro, chauvinista e misantropo.
Bom, se você é daqueles que consegue separar a obra do artista, então vai encontrar em A Estranha Morte de Alex Raymond um quadrinho extremamente desafiador, que aos poucos vai deixando de focar nas minúcias históricas e estilísticas do autor de Flash Gordon para se tornar um meta-relato sobre as próprias obsessões de Sim, aqui estilisticamente desnudado por si próprio, talvez não tão intencionalmente.
A Estranha Morte de Alex Raymond foi produzido entre 2012 e 2021, em um processo longo e penoso, pois nesse ínterim Sim contundiu seriamente sua mão e ficou incapacitado de desenhar. Isso fez com que ele convocasse o artista Carson Grubaugh para completar o trabalho, o que ele chama de “versão de Carson”. E é esta versão que a editora goiana Go!!! Comics está lançando agora no Brasil, com acabamento luxuoso e vários paratextos interessantes, incluindo colaborações de Gonçalo Junior, Ricardo Leite e Delfin.
O Lasercast #80 (nos tornamos, enfim, octogenários!) convida, então, além dos tradicionais raiúcas, um time completo de quem trouxe esse quadrinho tão especial para o Brasil, e que trabalhou duro no complexo processo de adaptar os malabarismos visuais de Sim para o português: o tradutor e crítico Érico Assis, a letreirista e designer Marcela Fehrenbach, e o editor da Go!!! Comics, Sandro Bello. (Ciro Inácio Marcondes)
Participaram do episódio: Ciro Inácio Marcondes, Lima Neto e Bruno Porto.
Edição: Eder Freire.
Links do episódio:
Editora Go!!! Comics
https://gocomics.com.br/
Marcela Fehrenbach
https://www.instagram.com/marcelafdesign/
Érico Assis
https://ericoassis.com.br/
Virapágina, newsletter do Érico Assis
https://virapagina.substack.com/
Raio Laser | Resenha de A Igreja e o Estado, Volume 1 – Uma história de Cerebus, de Dave Sim, por Ciro I. Marcondes
https://www.raiolaser.net/home//2017/01/best-of-raio-laser-melhores-leituras-de.html
Raio Laser | Exposição Superheroes Never Die: Comics and Jewish Memories, por Bruno Porto
https://www.raiolaser.net/home/quadrinhos-e-judasmo-se-encontram-em-superheroes-never-die
Imagens do episódio:
Exemplos de letreiramento em perspectiva, e uma das páginas duplas mais trabalhosas (296-297).
Comparação entre o original e a versão brasileira de uma das aberturas de capítulo, cujo letreiramento exigiu um profundo trabalho de retoque das ilustrações.
Alguns das dezenas de estilos diferentes de letreiramento de quadrinhos produzidos para edição brasileira, emulando os das tiras originais.
Escolhas do que traduzir (e letreirar) e do que deixar no original.