MELHORES LEITURAS DE 2024, POR MARCÃO MACIEL

Minha lista de melhores de 2024 pode surpreender quem me conhece e costuma acompanhar o que escrevo na Raio Laser. Isto porque seria esperada grande presença de quadrinhos chilenos e desta vez só tem dois. O escasso número de artigos meus no blog passa a impressão de que estou numa fase monotemática e isso não deixa de ser verdade, já que, ultimamente só faço falar dos gibis e da cena quadrinística da pátria de Neruda. Mas bem, aparências podem ser enganosas e a lista abaixo mostra que consegui manter um bem-vindo ecletismo geográfico. Tem gibi do Canadá, do Brasil, da Espanha e até mesmo de centros não tradicionalmente lembrados quando o assunto é a nona arte. Falo, claro, da HQ turca Diário Inquieto de Istambul, fruto da sofisticada curadoria da editora Comix Zone, que arrisca investir em autores praticamente desconhecidos do público brasileiro. Ausência sentida talvez sejam os bons e velhos gibis de super-heróis. Não que eu tenha desgostado do gênero. Não sou do tipo que cospe no prato em que comeu, mas simplesmente não li nada que realmente valesse a pena mencionar. Enfim, chega de papo e vamos aos escolhidos, como sempre sem nenhuma ordem de preferência e com o aviso de que as listas de melhores da Raio fazem referência às leituras feitas durante o ano, seja o gibi de 1938 ou de 2024.

por Marcão Maciel

Clyde Fans – Seth (Drawn and Quarterly, 2021).

Acontecimentos dramáticos repercutem de maneiras diversas, de acordo com os envolvidos. Não foi diferente com dois irmãos diante do abandono praticado pelo pai, que tocava a loja de ventiladores da família. Abe, o mais velho, torna-se um mulherengo destruidor de lares, incapaz de se conectar emocionalmente. Já Simon, na verdade o alter ego de Seth, vem a se tornar um ser de pura introversão paranoica. A história conta a trajetória da loja de forma fragmentada e fora de ordem, num emaranhado de memórias que o leitor monta como um quebra-cabeças. Há diversas viagens aqui, físicas ou mentais, como uma sequência na mente de Simon que é pura poesia, digna da beleza que só os entusiastas de caminhadas silenciosas pela madrugada saberão apreciar. Repleto dos detalhes elegantes que apenas o olhar sensível de Seth para as coisas da vida é capaz de proporcionar, Clyde Fans é um memento à beleza da melancolia emanada pelas pessoas que vivem encerradas em si mesmas, mas em paz com a própria solidão.

Deus em Pessoa – Marc-Antoine Mathieu (Comix Zone, 2021).

Quais seriam as implicações políticas, sociais, econômicas e - principalmente - filosóficas da efetiva presença de Deus na Terra? Como a humanidade reagiria à chegada do “cara lá cima”? Esta e outras perguntas são respondidas de forma mordaz no gibi que inaugurou a era Marc-Antoine Mathieu no Brasil. A hiper exploração econômica da imagem de Deus, a necessidade de renovação das orações e cânticos (“Pai Nosso que estais no céu(?)”) e a cobrança a Deus por pedidos não atendidos são algumas das situações inusitadas que a descida do bom velhinho suscita. Claro que as boas e velhas dúvidas existenciais que assolam os filósofos desde tempos imemoriais não deixarão de ser feitas a Deus, que as responderá com um misto de ironia e sagacidade. Mas talvez nem mesmo Ele estivesse preparado para enfrentar aquela que se provaria sua nêmesis suprema: a justiça dos homens. O julgamento de Deus é um capítulo incrível da HQ, ainda mais pela participação, no júri, de H-1, o computador que reflete o pensamento de toda humanidade. Como produto estético, a HQ é puro deleite, com sua lombadinha arredondada e capa sensível ao toque. Por essas e outras, não deixe de conferir a representação de Deus feita por Marc-Antoine Mathieu: uma divindade espirituosa que não poupa sarcasmo ao contemplar a própria criação.

Diário Inquieto de Istambul – Ersin Karabulut (Comix Zone, 2024)

Curte histórias de cunho autobiográfico e com altas doses de informação histórica? Diário Inquieto de Istambul é para você. Iniciando o relato em sua infância, Karabulut mostra sua luta para permanecer fiel a seu sonho: tornar-se quadrinista profissional, mesmo contra o desejo da família. Em tons confessionais, em que faz questão de não passar pano para si mesmo, o autor turco mostra suas dúvidas e temores, enquanto vai galgando degraus rumo à popularidade. Em paralelo a isso, acompanhamos a trajetória – com crescente viés autoritário – da Turquia moderna, que passa a dar as costas para seu passado como estado laico, desde a eleição para prefeito de um certo Recep Tayyp Erdogan em 1994. A habilidade de Karabulut em ambientar e apresentar ao leitor a realidade de um país tão distante geográfica e culturalmente do nosso é um convite irrecusável e vai agradar quem busca fugir da mesmice de temas e cenários. A saga de Ersin e da Turquia não terminam aqui. Há previsão de novos volumes e ainda há tempo de embarcar nesta viagem, que só está começando.

Gon vols 1-4 – Masashi Tanaka (New Pop, 2022-3)

Leitura perfeita para jovens e adultos, Gon é pura diversão e pancadaria descompromissada, que não se furta a mostrar momentos tão insólitos quanto singelos. Amigo dos indefesos e feroz com os fortões, Gon não foge de uma boa briga. Temperamental, este Giganotossauro não leva desaforo para casa e é capaz de causar um estrago daqueles quando está em seus dias de fúria. O gibi, totalmente mudo, leva Gon por cenários belíssimos, como o fundo do mar, cavernas labirínticas e montanhas inexpugnáveis, tudo ilustrado com uma perfeição embasbacante. No cotidiano de Gon, tudo pode acontecer. Até mesmo uma simples soneca pode se transformar numa batalha colossal envolvendo elefantes e búfalos, caso algum deles se atreva a incomodar o enfezado dinossaurinho. E ai de quem tiver a péssima ideia de querer fazer um lanchinho com seus amigos filhotes. O bicho (pré-histórico) vai pegar e vai ser tiro, cabeçada e bomba, ainda que os inimigos sejam pumas, ursos ou tubarões gigantes. Algum dia desses gostaria de ver um crossover entre Gon x Hulk! E se o Golias Esmeralda conseguir sobreviver ao primeiro round, já poderá se considerar um afortunado.

O Livro dos Pássaros – Lark (Arte e Letra, 2023)

Inicialmente publicada em tiras no Instagram, Livro dos Pássaros ganhou sua versão impressa no ano retrasado. Com fundo satírico e tratando de temas demasiadamente humanos como trabalho e relações sociais, Lark usa simpáticos passarinhos para representar a interação de figuras dignas de um episódio de The Office. A epopeia diária dos funcionários da Catch. co é mostrada em tons autobiográficos pela autora e todos que já tiveram experiências com dead-end jobs vão se identificar. O carro chefe da tira é o humor despretensioso da autora, que consegue segurar a onda do formato da publicação. Digo isso porque, assim como em outros quadrinhos digitais de sucesso, os criadores que postam em redes sociais devem navegar com cuidado a estreita linha que equilibra a trama principal com os bons e velhos punchlines nossos de cada página. Desnecessário dizer que Lark se sai muito bem na tarefa, seja por meio da presença de personagens carismáticos, que praticamente se escrevem sozinhos, ou pelas altas doses de cultura pop, prontas para brindar o nerd de plantão. Verdade seja dita, o livro dá uma bela caída do meio para o final, mas nada que impeça Lark de continuar alçando voos cada vez mais altos em sua promissora carreira.

Pluto vols 1-8 – Naoki Urasawa (Panini, 2017-9)

Astro Boy, a obra seminal do Deus do mangá Osamu Tezuka deixou uma marca indelével na vida de Naoki Urasawa. Tanto que este último resolveu recriar aquele universo, inserindo os personagens da série original numa moderna trama de mistério internacional. Só que as criações de Tezuka não terão vida fácil. Alguém está matando os robôs mais poderosos do planeta e vai ser um pega pra capar para conseguir descobrir e derrotar o responsável. Tecendo um suspense detetivesco que homenageia mestres do sci-fi como Asimov e Philip K Dick (alguém aí também sacou que o Gesight é o Deckard de Blade Runner?), Urasawa constrói uma história tensa, repleta de situações inusitadas. Os robôs de Urasawa elevam as três leis da robótica à última potência e reivindicam seu direito à humanidade, por mais nefastas que possam ser as consequências. Ambientada num cenário futurista de cair o queixo, Pluto é a bem-vinda atualização do clássico de Tezuka. E não à toa virou série na Netfrix. 

T.A.T.T.O.O. – André Diniz (Darkside, 2022)

Tattoo é um mergulho na alma de André Diniz, na época em que sofria de depressão. Metamorfoseado num certo Ramses, tatuador de renome em SP, Diniz conta sua saga de queda e recuperação numa história tão dramática quanto verdadeira. A HQ é um retrato incomodamente preciso dos cruéis efeitos provocados pela traiçoeira doença.  A perda da memória, o medo do mundo exterior e a preguiça extrema no que se refere às relações sociais são apenas alguns dos sintomas provocados pelos questionamentos ininterruptos de um cérebro que nunca desliga. Neste cenário, até mesmo tarefas aparentemente simples, como responder um email, tornam-se trabalhos de Hércules, quase impossíveis. A epopeia de Ramses leva os leitores aos recônditos de uma mente esgotada, assolada por uma lama que só puxa para baixo. Desnecessário dizer que o gibi prende a leitura de uma maneira compulsiva/obsessiva quase doentia. Resumo da ópera: Tattoo é um vislumbre privilegiado de uma vida em processo de destruição e leitura obrigatória para profissionais da área de saúde mental e curiosos que queiram entender melhor a depressão pelo ponto de vista do paciente.

Telémaco vol. 1 - Kid Toussaint e Kenny Ruiz (Dolmen Editorial, 2019)

Se pudesse resumir esse gibi numa única palavra seria: vibrante. Cada quadro de Telémaco transpira frescor e energia. Sabe quando aparece um novo jogador que não se intimida com o tranco e já chega resolvendo a partida? É exatamente isso que a dupla Toussaint e Ruiz faz. Sem pedir licença nem benção a quem quer que seja, a dobradinha belgo-espanhola chega quebrando tudo numa história não contada pela mitologia grega. Telémaco, o impetuoso filho de Ulisses, parte em busca do pai numa odisseia particular que agregará aventureiros ao longo do caminho, criando uma espécie de “Turma Titã” do mundo antigo. Toussaint e Ruiz reinterpretam a colcha de retalhos dos mitos e preenchem lacunas na trajetória de personagens que ficaram longe dos holofotes. O roteiro afiado e os desenhos dinâmicos fizeram a ideia vingar e o gibizinho já tem três continuações na gringa. Dizem que a mitologia é a mais incrível das histórias já contadas. Se isso for verdade, Toussaint e Ruiz conseguiram esculpir um quadradinho na big picture da maior das sagas. E isso não é pouco.

Thor y la Mujer Aguila – Félix Vega (Planeta de Libros, 2022)

Inspirado no proto-descobrimento viking da América pelos idos dos anos 1000, Félix Vega traz um conto poderoso acerca da violência do colonialismo amparado pelo fervor religioso. A chegada dos vikings ao continente acende a briga pelo controle dos corações e mentes dos indígenas, encabeçada pelos católicos e pelos crentes nos mitos escandinavos. A tensão aumenta com a descida do próprio príncipe nórdico, Thor, ao centro da disputa, com seu posterior envolvimento com uma nativa dotada de poderes sobrenaturais. É a partir deste tabuleiro de tensões que Vega lança as bases para debater os limites da sanha catequizadora dos europeus, abordando temas como a querela entre monoteísmo, politeísmo e paganismo. Com uma pegada Métal Hurlant, Vega narra a história de um passado fantástico bastante verossímil. Destaque para a preciosa arte do quadrinista chileno, atenta para detalhes como o fenótipo dos deuses asgardianos, proporcionalmente mais corpulentos que os humanos normais, como apregoa a mitologia. Parte três de uma espécie de trilogia acerca de mitos originários das Américas, Thor y la Mujer Aguila foi precedido por Juan Buscamares (publicado no Brasil pela Conrad), que conta com personagens de cultura inca, e Duam: La Piedra de Luz, rica história sobre a cosmogonia mapuche, um dos povos originários do Chile. O material pode ser lido de maneira independente e mostra que não precisamos ir muito longe de nosso continente para encontrar contos milenares cativantes.

ZooLos 1-7 – Mario Sofrenia (Independente, 2023-4)

ZooLos (leia-se solos, em espanhol, ou seja: sozinhos) é uma antologia sobre a solidão nas grandes cidades. Por meio de animais antropomorfizados, Sofrenia recria uma Santiago no melhor estilo Bojack Horseman, repleta de personagens carismáticos com histórias pessoais tocantes. Cada capítulo é dedicado a um animal diferente, em histórias independentes que ocorrem num universo compartilhado. Profundo conhecedor do espaço urbano (o autor é grafiteiro altamente requisitado, com renome internacional) Mario também dá protagonismo à urbe como elemento aglutinador e divisor das relações sociais. Mas ZooLos mostra que esse processo não é unilateral: a metrópole molda e é moldada pelas milhares de almas que vagam por suas intermináveis avenidas e galerias. Ainda faltam dois capítulos para concluir a saga de ZooLos, quando Mario pretende lançar um encadernado compilando a série. E aí não vai ter mais desculpa para que esse comovente olhar sobre a vida na selva de pedra continue inédito no Brasil. Leia mais AQUI.