Rapidinhas #13 - Quadrinhos brasileiros para este Natal

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Natal chegando, e a equipe Raio Laser preparou umas “rapidinhas” indicando material nacional de excelente qualidade (e que pode ser presenteado por aí) para ser celebrado no fim de ano. Sem muita justificativa curatorial, espero que curtam! (CIM)

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QUADRADINHAS 2 (Lucas Gehre, LTG Press, 2019): Como definir as famosas “quadradinhas” de Lucas Gehre? Eis aqui um artista/artesão (no melhor sentido possível) que encontrou uma espécie de bonsai em quadrinhos, capaz de podar, diariamente, com pequenas diatribes de qualquer aspecto da vida e da realidade, um grid 3x3 (com algumas variantes) que expresse os aspectos mais fugidios da nossa existência. De fato, Lucas possui um olho para o invisível. O crescimento de uma planta, o voo de um avião, uma simples caminhada na calçada: tudo se torna insumo para um aperto no coração, para a sensação de que estamos deixando algo da vida para trás. Nesse sentido, não há o que escape das quadradinhas (e lá se vão mais de mil...). Nelas podem estar representados medos ínfimos, pequenas coragens, todo tipo de ansiedade. Em outros casos, são metáforas consistentes em quadrinhos que formam lindas parábolas, com balões e proto-histórias. Por vezes, Lucas faz uso da simples e pura abstração, que pode ser matemática, geométrica, cromática. Matizes que mudam. Um dia que anoitece. Um ovo que quebra. Em outros casos, são morfologias, analogias, do mundo animal, de pequenos objetos esquecidos, tal qual um Manoel de Barros pop e autoconsciente. Aliás, se é para citar grandes autores, por que não um Ozu? “Durante toda a minha vida filmando, tudo o que realizei foi fazer tofu todos os dias.” Lucas Gehre faz bonsais, faz tofu da matéria prima extraída de qualquer ínfimo rincão da realidade. Como se, para dar forma a uma quadradinha, a cada dia ele precisasse observar detalhes aleatórios dos diversos aspectos da vida. E, aliás, existe um outro profissional que passa os dias ligando um radar invisível à procura pela voz de certas “inutilidades”. Dizem por aí que a ele se dá o nome de poeta. (Ciro I. Marcondes)

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NOTAS DO UNDERGROUND (Pedro D’Apremont, Pé de Cabra, 2019): Um lançamento da editora paranaense Pé de Cabra, Notas do Underground, do quadrinista brasiliense Pedro D’Apremont, reúne HQs veiculadas originalmente no site da revista americana Vice, nas quais o autor narra uma série de desventuras vividas em shows de rock ou situações relacionadas a este universo. Muito da graça do quadrinho reside no perceptível talento de D’Apremont como contador de histórias e ilustrador de personalidade – que bebe de fontes como Peter Bagge, Daniel Clowes, Tim Lane, Laerte e Allan Sieber, todos grandes nomes dos quadrinhos que têm, ou tiveram em algum momento de suas trajetórias, o rock e a contracultura como referência recorrente. E a familiaridade do autor com esses temas lhe garante credibilidade para retratar – de forma afetiva ou mesmo para tirar sarro – o que se vê nas 48 páginas do quadrinho. Temos no gibi o sujeito que questiona seus gostos musicais que vão ao extremo; a banda de black metal que, ao se perder no bosque, precisa recorrer ao canibalismo; aquela inesquecível viagem de ácido; os incidentes vividos em um show que alcançam caráter de lenda urbana e ainda os rolês de amigos adolescentes descobrindo a vida frequentando o (sub)mundo do rock. Do bizarro ao documental, do autobiográfico ao surreal, Notas do Underground é divertido como o show de uma banda maravilhosamente horrível assistido em um local desagradável onde só se vende cerveja morna. Quem já esteve lá (e voltou na semana seguinte!) vai se identificar. (Pedro Brandt)

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CARTAS PARA NINGUÉM (Diana Salu, Padê Editorial, 2019): A artista trans Diana Salu, via Padê Editorial (que publica textos de literatura LGBTQI+), nos entrega, com estas cartas, mais que um simples testemunho “delicado” e “íntimo” de sua subjetividade. Sim, há delicadeza e intimidade, mas me chamam a atenção três aspectos especiais: primeiro, o lirismo. Diana não teme o registro poético, e expõe suas questões sabendo que esta linguagem é a única que compele endereçamento a estas cartas cheias de drama, tristeza, tesão e também alegria de viver. Há poemas escritos, paisagens em quadrinhos, confidências, ilustrações. Em segundo lugar, Diana não se esquiva também de compreender seu discurso como parte de uma filosofia possível para o século 21: que inclua um entendimento do corpo e uma consciência de sua própria identidade. São lindas as passagens de imersão no mar, nas ruínas, no mundo vegetal, como se o mundo fosse carne a ser devassada. Por fim, o acabamento não apenas editorial (que inclui uma carta envelopada em quadrinhos), mas também de mistura de sensibilidades, entre versos, quadrinhos e desenhos, rompendo fronteiras esterilizantes das formas de comunicar e representar, especialmente quando já se parte da fronteira para o mundo. Daí estas cartas acabarem resultando num material autobiográfico que se dilui na alma, numa difusão boa e às vezes abstrata (Diana pinta/desenha de um jeito rabiscado e impressionista ao mesmo tempo) que mostra como nossa vida está inscrita nos mergulhos que demos, nas ruínas que visualizamos, nos corpos que tocamos. Em determinado momento, ela afirma “Eu busco sínteses, mas adoro detalhes.” Isso não parece incoerente com a própria maneira que essa dialética é resolvida no próprio texto de Cartas Para Ninguém: às vezes barroca, às vezes impressionista, Diana procura se explicar. O jeito que ela não faz isso é o que transforma sua escrita em arte. (Ciro I. Marcondes)  

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ASTEROIDES: ESTRELAS EM FÚRIA (Lobo Ramirez, Escória Comix / Ugra Press, 2018): Lobo Ramirez é o comandante-em-chefe da Escória Comix, selo responsável pelos quadrinhos bagaceiros mais alto baixo nível do país. Com linha editorial que prima pela insalubridade underground, a Escória é um oásis de transgressão num mercado dominado pela bundamolice generalizada. Além de seus talentos editorais ímpares, o sujeito é também um quadrinista responsa. Nascido em 1991, Lobo Ramirez é um punk que se recusa a viver em outra época que não os anos 80 do século passado. Seu universo é permeado por filmes de ficção científica barata, sem a porcaria dos efeitos digitais que defenestraram a imaginação do grande público, e Asteroides: Estrelas em Fúria, sua magnum opus. Não é para menos. Num futuro próximo, o salto ornamental feminino é um esporte de violência desenfreada que atrai multidões. Armas, ninjas, motos invocadas, comedores de merda, sexo com gnomos e muita porrada conduzem a narrativa plasmada pelo traço nauseabundo de Lobo. Mas não se engane: debaixo da pele fedorenta do quadrinista existe uma alma sensível que nos entrega um dos finais mais poéticos da HQ brasileira contemporânea. (Márcio Jr.)

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CESARIANA (Lucas Marques, Aerolito, 2018): Lucas Marques conseguiu uma façanha e tanto com este Cesariana, sua primeira graphic novel: trabalhar personagens e situações muito comuns a qualquer pessoa, mas desviando dos inevitáveis clichês, alcançando grande empatia com o leitor. A partir de suas próprias vivências de adolescência, o autor criou uma narrativa na qual apresenta três jovens colegas de escola, cada um vivendo dramas muito típicos da idade: inseguranças, dúvidas existenciais, problemas com a família e com os estudos. Lucas questiona sua fé como frequentador da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias; Cesar, por sua vez, encara uma fase de alienação e tumulto com os pais; enquanto Ana vive um relacionamento violento dentro de casa. Os amigos encontram pequenos alívios andando de skate, frequentando shows de rock, saindo uns com os outros ou cabulando aula. Acontecimentos que facilmente descambariam para o piegas são apresentados com comovente sensibilidade. A franqueza com que são conduzidos os episódios é algo quase tangível, como se tivessem sido transcritos para os quadrinhos com a honestidade sem filtros das páginas de um diário. Os diálogos, coloquiais, ajudam a dar humanidade e personalidade aos protagonistas. O drama é equilibrado com algum alívio cômico. A narrativa visual abraça a simplicidade, mas apresenta uma eficiência surpreendente. Cesariana flagra Lucas Marques, autor em franca evolução como desenhista e narrador, em momento imberbe de sua trajetória, com ilustrações sem muito rebuscamento, diamantes brutos, bem diferente da sofisticação (tendo o mangá como influência predominante) de sua atual produção. Leitura recomendada! (Pedro Brandt)

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VIDA BESTA (Galvão Bertazzi, Pé de Cabra, 2019): O que move a obra de Galvão Bertazzi é raiva e urgência. Se duvida, confira as tiras compiladas em Vida Besta. Galvão tem raiva de tudo. Dos advogados, roqueiros e hipsters. Dos evangélicos, religiosos e satanistas. Dos héteros e dos gays. Das redes sociais e de quem foge delas. Da cidade e do campo. Dos homens e das bestas. Dos adultos, velhos e crianças. De açaí. Galvão tem raiva até de si mesmo. Mas o que deixa o cara possesso é a mediocridade da classe média. A vida besta que esse povo leva – e do qual fazemos parte. (Eu me garanto, não sei você.) Para dar conta de tanta raiva, a saída encontrada por Galvão foi a urgência. Seus desenhos são taquigrafados. Encontros-relâmpago com o papel – ou a tela do computador, para agilizar ainda mais o processo. O grafismo como fio condutor de um discurso ácido e corrosivo. Se demorar um pouquinho mais, a celulose se dissolve, o PC entra em curto-circuito. Nessas, tem gradativamente encontrado maestria: todo o movimento possível e toda a emoção imaginável estão contidos em seus traços frenéticos. Esporro-síntese do mundo. Em cores. (Márcio Jr.)

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EX APPARATUS (Daniel Lopes e Rafael Triandopolis, Independente, 2019): “Nascido para sangrar”. Este é o lema das gangues de rua que farfalham pelas ruas de Neo Luddens, uma cidade devidamente paramentada com imaginário cyberpunk e controlada por autômatos, robôs e AIs que, além de tudo, possuem a capacidade de tomar posse do corpo humano. A resistência é pelo corpo, pelo direito da senciência, pelo direito de morrer. É uma premissa interessante, ainda que seja apenas esboçada neste primeiro volume do que promete ser uma série empolgante cujas raízes remetem a Akira, Blade Runner, Warriors, etc. E quem se responsabiliza por dar consistência visual a este cenário proposto pelo roteirista Rafael Triandopolis é o artista brasiliense Daniel Lopes, já experimentado na ficção científica com seu bem-sucedido Marco, o Macaco do Espaço. Aqui, porém, a space opera retrô dá lugar a uma arte bastante contrastada em preto e branco, muito eficiente narrativamente, com arrojado senso de movimento e velocidade, além de ótima caracterização de humanos e máquinas. Vale ressaltar a evolução no apuro visual dos desenhos de Daniel, que passam a reverenciar influências como as de Moebius e Katsuhiro Otomo, mas com uma personificação dos rostos que me lembrou Will Eisner e Milton Caniff. Logicamente, é um trabalho incipiente que ainda tem muito potencial para crescer, mas, desde já, capaz de provocar reflexões bárbaras sobre nossos dilemas contemporâneos, através de eletrizante aventura. (Ciro I. Marcondes)

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SHOUJO BOMB (Renata Rinaldi [Org.] e diversas artistas, Tinta de Raposa, 2019): Organizado pela quadrinista de Brasília Renata Rinaldi, Shoujo Bomb não é inteiramente brasiliense (tem colaboradoras de vários lugares), mas concentrou sua produção por aqui, e é um projeto bastante original: reunir quadrinistas brasileiras que trabalham especificamente com o gênero shoujo. Na verdade, o shoujo não é especificamente um gênero. A maioria das pessoas pensa que ele se limita a histórias “tolas” de garotas apaixonadas e garotos delicados em idade escolar. Porém, sem definir um ambiente fixo (pode haver shoujo de fantasia, humor, esportes, etc.), ele se caracteriza mais como uma demografia: é feito por mulheres, para mulheres jovens, tweens, na pré-adolescência e um pouco adiante. O livro compila seis contos em quadrinhos de autoras diferentes, quase todas fugindo do estereótipo escolar e buscando jornadas de autoconhecimento e transformação para essas meninas, como se se endereçasse a jovens mulheres que precisam aprender a reconhecer seu potencial interior e lugar na sociedade. Dentro das semelhanças destas abordagens, há variações: Renata Rinaldi desenha com extrema fofura. Seus quadrinhos têm um “jeito moleque”, e sua história recria as origens do jogo de Bete, buscando pluralidade na competição entre meninos e meninas. Gostei também do apelo onírico, com inteligente enfoque na busca pela autorrevelação, da artista de Maceió Mari Petrovana, que ilustra com mais detalhamento, realismo e elaboração. Já a história de “bruxaria do bem” de Cah Poszar tem estilo mais anguloso e sombreado, com linhas mais espessas e forte caracterização das personagens. Em geral, Shoujo Bomb serve como um belo passaporte para jovens garotas entrarem no mundo dos quadrinhos. (Ciro I. Marcondes)

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CIDADE DE SANGUE (Márcio Jr., Julio Shimamoto, MMarte, 2018): Parceria entre o roteirista (e homem de múltiplos talentos e realizações) Márcio Jr. e a lenda viva dos quadrinhos brasileiros Julio Shimamoto (80 anos e contando), Cidade de Sangue é uma eficiente HQ de terror/policial. A graça desse tipo de narrativa reside em conseguir manipular os clichês para entregar ao leitor o mínimo de surpresa ou, ao menos, uma condução interessante até a última página. Nesse sentido, Cidade de Sangue satisfaz com um roteiro clássico, que acena para o romance noir, aparentemente despreocupado em reinventar a roda: Carlão é um jornalista da editoria de polícia, cansado dessa vivência próxima de crimes e mortes em uma calorenta e violenta Goiânia. A rotina do protagonista é sacudida quando ele conhece sua nova colega de trabalho, a jovem e misteriosa fotógrafa Paulinha. A condução da narrativa, a cargo de Shimamoto, é o principal atrativo do quadrinho, com páginas que parecem expurgos vindos diretamente dos piores pesadelos. As ilustrações foram feitas de maneira artesanal, utilizando papel de fax e ferro de solda. O estilo barroco do desenhista contribui, com seu preto e branco quase expressionista, para uma constante sensação de incômodo – amplificada pelo vermelho berrante inserido nas artes por Tiago Holsi. Entusiasta dos antigos quadrinhos brasileiros de terror, Márcio Jr. elaborou um roteiro que presta uma homenagem a essa “cena”. O terror costuma colocar os protagonistas em situações limite, sem chance de fuga. E aqui, Márcio Jr. não alivia, com uma história cruel, que poderia ser inspirada em fatos reais. Disseram por aí que Cidade de Sangue daria um bom filme. Prefiro imaginar como ficaria sua versão no saudoso programa televisivo Linha Direta. (Pedro Brandt)