“Sem dó” é a história de nossas avós em forma de quadrinhos
/por Maíra Valério
Por meio de quadros lentos e cheios de detalhes, Luli Penna nos leva para outro momento da história brasileira em Sem dó. Lançada em 2017 pela editora Todavia, essa é a primeira graphic novel — ou “romance gráfico” — da autora. A cada página, a obra transporta quem lê para uma época em que não existiam smartphones ou redes sociais: a interação entre as pessoas acontecia principalmente pelas ruas mesmo. A espera nos transportes públicos era contornada com a leitura de um jornal. Bilhetes furtivos simbolizavam a paquera dos apaixonados, que nem sempre podiam expor para o mundo o amor que sentiam. Como já foi dito aqui, os tempos eram outros.
O livro se passa em uma São Paulo do início do século XX e é um mergulho em segredos antigos, assim como a caixa de lata repleta de lembranças e ferramentas de costura que aparece entre um quadrinho e outro, ao lado de um rádio de pilha que toca antigas canções. Dolores — mais conhecida como Lola — é uma jovem arrumadeira que, entre o vaivém de chapéus, bondes e trilhos, encontra afeto nos braços de um desconhecido que ninguém sabe de onde veio ou para onde vai. Um romance tão intenso quanto misterioso se desenvolve ao longo de passeios que abrangem idas à parques e cinemas.
A autora, que além de quadrinista, é também cartunista e ilustradora, nasceu em São Paulo na década de 1960. Portanto, “Sem dó” é uma coleção de memórias que ela não viveu. No começo, o objetivo era desenhar as aventuras do avô que migrou para o Brasil no final do século XIX e era filho de um anarquista radical. Contudo, ao ouvir os relatos sobre as mulheres da família, o roteiro inicial acabou ganhando novos rumos. A dedicatória do livro, inclusive, vai para a mãe, para as tias, primas, avós e outras integrantes da família que, segundo Penna, “se casaram, não se casaram, se mandaram, tiveram filhos, aguentaram, não se aguentaram, se divertiram, viveram dias infelizes e dias felizes”.
Texturas e sensações se misturam a contrastes não apenas no preto e branco das imagens, mas nas situações que permeiam a vivência dos personagens. Experiências supostamente conjuntas englobam localizações distintas: patrões e empregadas, homens e mulheres, pais e filhos, irmãos e irmãs, ricos e pobres. Em entrevista ao Vitralizado, Penna falou sobre a chocante diferença entre a liberdade sexual dos homens e das mulheres que percebeu mais atentamente ao colher material para criar o livro. “Há um elemento na história que é o exemplo máximo dessa disparidade: o dispositivo, digamos assim, que facilita a vida de prazeres dos homens é exatamente o mesmo que põe fim aos prazeres das mulheres”, disse.
Toda feita em nanquim, a obra traz um traço primoroso e uma estética que carrega em si um pouco do cinema mudo. Anúncios e reportagens mostram hábitos e modismos de décadas atrás e ajudam quem lê a contextualizar os acontecimentos dentro dos valores do período. No coração da “locomotiva do país”, as mulheres representadas sequer podiam explorar livremente as próprias escolhas. O quanto as coisas mudaram? Trabalho e principalmente amor eram esferas controladas pela imposição familiar de decidir por elas o caminho “certo” a ser seguido. Entre tensões urbanas, aumento de consumo, carros que poluem e congestionam, “Sem dó” mostra também o que bate no coração das grandes cidades — e das grandes mulheres que acabam esquecidas, ofuscadas por homens que viveram histórias aparentemente mais emocionantes. Apenas aparentemente, no entanto.
Maíra Valério é brasiliense, jornalista, escritora, especialista em Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos, mestranda em Informação, Comunicação e Saúde e ama quadrinhos (menos os de heróis).