ZIP 100: meus 15 quadrinhos favoritos

ZIP 100: meus 15 quadrinhos favoritos

O que eu vejo nos quadrinhos que se difere das outras formas de expressão? É uma pergunta dura, cheia de armadilhas, mas seu aspecto capcioso está, na verdade, correto: o quadrinho é a forma de arte que nos permite abolir uma linha distintiva entre as subjetividades infantil, adolescente e adulta. Permite uma formação cíclica, nietzschiana, de uma ética humana sem fronteiras disciplinares, institucionais. Charlie Brown, Mônica, Calvin, Mafalda: são crianças que rompem estes muros que nos formatam como “cidadãos”. E Crumb, Alan Moore, Al Capp, etc., são crianças grandes que imaginam e escrevem para nos alertar disso. E assim falou Zaratustra.

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Contatos imediatos: entrevista com Lourenço Mutarelli






















por Pedro Brandt

No começo da carreira, nos anos 1980, Lourenço Mutarelli teve dificuldades para publicar seus primeiros trabalhos. Nenhum editor queria suas histórias em quadrinhos. A ironia é que, pouco depois, ele se tornaria um dos mais respeitados autores brasileiros de quadrinhos. Tanto que, quando Mutarelli anunciou que deixaria de produzir HQs para se focar em seus livros (e em trabalhos para cinema e teatro), muita gente lamentou a aposentadoria precoce do paulistano. Por isso mesmo, existia uma certa expectativa a respeito de Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente, trabalho anunciado como sua volta aos quadrinhos.

Na verdade, o título ainda não é o tão aguardado retorno de Mutarelli ao formato. “Quando eu comecei a fazer os estudos em quadrinhos, vi que a história não ia ter fôlego para isso. Então eu fiz essa contraproposta para a editora (Companhia das Letras), de fazer uma história ilustrada. E eles aceitaram numa boa”, ele conta. Mais do que narrar um contato imediato de terceiro grau (em termos ufológicos, o encontro com extraterrestres), Lourenço Mutarelli, 47 anos, faz de seu novo trabalho uma reflexão sobre a memória e o passar do tempo.
No começo do livro, o narrador — anônimo — avisa que não foi testemunha do que será relatado nas páginas a seguir. Os pais do personagem passaram seus últimos dias juntos em uma vida tranquila e doméstica. Ela gostava de assistir novelas. Ele, de comprar máquinas de escrever e de costura para desmontá-las e depois montá-las. O homem também colecionava fotografias antigas compradas em uma feira perto de casa. A rotina do casal seria abalada pela morte súbita da senhora. Com a perda da mulher, o velho homem entrou em depressão.

Para ajudar o irmão em luto, o tio do narrador convida o viúvo para pescar em uma cidade do interior. Durante a pescaria, os dois avistam uma estranha luz no céu e a perseguem. Pouco depois, o pai do narrador some noite adentro. Quando reaparece, tem histórias surpreendentes para contar.
 
Interação

A leitura apenas do texto de Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente é rápida e pode passar uma impressão precipitada da obra, como se ela fosse uma história muito simples, banal. A posterior leitura das ilustrações, mais do que complementar o que está sendo narrado com palavras, funciona no sentido de causar sensações. Diversas imagens são apresentadas mais de uma vez, mas com alguma coisa diferente. Assim como uma foto desbotada, uma lembrança antiga ou as imagens criadas na mente quando se ouve uma história (ou ainda, quando elas surgem na cabeça fruto de algum delírio), as ilustrações de Mutarelli no livro são — além de um deleite visual — um convite à sugestão.

Assim como na leitura de uma história em quadrinhos, a participação ativa do leitor em Quando meu pai se encontrou com o ET… se faz necessária para preencher algumas lacunas e silêncios que Mutarelli espalha pelo livro. E é com o auxílio desse artifício — a liberdade para interagir com o que se lê — que a obra transcende as páginas.

Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente
De Lourenço Mutarelli. 112 páginas. Quadrinhos na Cia. (Companhia das Letras). R$ 44,50.

ENTREVISTA: LOURENÇO MUTARELLI
 
Como é o seu processo para conceber as histórias que cria?
Quando eu começo a pensar na história, eu parto geralmente de algum argumento pequeno. Não é nem um argumento, é uma ideia que eu sinta que possa desenvolver. Quando é em quadrinhos, eu sempre começo a fazer uma pesquisa de imagens, tentar pensar como eu vou ambientar a história, e começo a fazer uns estudos. E a partir desses estudos, pensando no que é a história, eu tento encontrar uma técnica, uma forma de contar essa história.

Quanto tempo você levou para concluir o Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente?
Levou um ano. Eu terminei ele em maio, junho do ano passado.

Qual a técnica usada nesse trabalho?
Eu usei basicamente tinta acrílica sobre papel. Às vezes tem até algum filete em nanquim, mas aí é pincel, mais uma técnica de pintura. Eu achava a cor interessante nessa história, dar uma amortecida nas cores, o acrílico é uma cor muito intensa. Eu comecei a fazer alguns estudos cromáticos, uns estudos de cor e vi que era o caminho que eu queria seguir.

As técnicas são uma novidade pra você?
Sem dúvida. Eu tinha trabalhado em pouco coisa com tinta acrílica, nos trabalhos de faculdade. E nunca mais tinha mexido com acrílica. Como eu tenho um projeto que eu mais gosto, que eu venho fazendo, que são meus cadernos de… não são nem uns estudos, são meu laboratório, coisas que eu brinco… 

Sketchbooks? 
É, são sketchbooks. Eu não sei se são sketchbooks, eles são mais ou menos o que eles são ali. Eu tiro muita ideia dele. A minha intenção é gerar coisas ali, com cor. E eu tinha comprado há um tempo atrás alguns tubos de acrílica e estava usando nesse cadernos. Mas de uma forma bem… não é nada demorado, não tem que ter acabamento, é uma coisa muito rápida nesses cadernos. E aí, para esse projeto, para o processo desse trabalho, é algo muito mais elaborado, mais trabalhoso. E eu achei que o desafio também me estimularia a encarar esse trabalho.

É o seu primeiro trabalho colorido?
Nos anos 1990, começo de 2000 — 2000, eu acho — tinha o Cyber Comix, um site. Uma das exigências deles é que as histórias fossem coloridas. Então eu fiz uma série de histórias coloridas pra eles, que depois eu reuni num álbum, que é Mundo pet, uma coletânea dessas histórias. Aquela é a minha única publicação colorida.

Essa história tem algo de biográfica?
Como a narração é em primeira pessoa dá a impressão de ser uma história autobiográfica. Ela tinha uma frase no começo que deixava claro que não era, mas eu acabei suprimindo isso, para deixar essa dúvida. Ela não tem nada de autobiográfica — a não ser o uso da imagem de alguns amigos, como o Mário Bortolotto e o Paulo de Tarso, que eu usei como referência para uns personagens, e umas fotos da minha infância que eu misturei nas fotos que o velho colecionava. E o velho, o pai, tem a cara do escritor William Burroughs. Eu desenhei muito o Burroughs e um dia percebi que sempre misturo o rosto dele no do meu pai. E eles não tem nada a ver! A única semelhança é o lábio muito estreito, quase não tem o lábio superior.

E os seus pais estão vivos?
Só a minha mãe. Meu pai faleceu tem 10 anos — igual na história (risos). Eu falo que não tem nada biográfico, mas meu pai morreu há 10 anos. Mas não foi num asilo, não viu ET…

Acho que a frase que melhor resume isso é uma frase do Arquivo X
“A verdade está lá fora”. Eu adorava Arquivo X, é uma série que eu acompanhei muito nos anos 1990.

A frase que tem no poster do escritório deles é ainda melhor: “Eu quero acreditar”.
Ah, sim, é verdade! “I want to believe”. A gente passou o fim de ano num sítio, na casa de campo de um amigo, onde a gente sempre passa, e eu passei a olhar muito para o céu. Eu sempre olhei muito pro céu porque sempre me fascinou as tonalidades. Como eu levanto cedo, geralmente eu vejo o sol nascendo, é uma coisa que sempre me fascinou. Mas nunca estava procurando nada ou tinha esperança (de ver alguma coisa). E nesse final de ano, o meu filho me perguntou “você está procurando ET” e eu disse que adoraria ver (risos).

Você gosta de histórias de ETs?
É uma coisa que me fascinava quando eu tinha uns 14, 15 anos. E que ficou meio apagada, nunca tive mais interesse. E há algum tempo atrás, o Marçal Aquino — para quem eu dedico o livro — me contou uma piada que era sobre ET. Era uma piada bem boba, mas que tinha a frase “leve-me ao seu líder”, a frase clássica dos ETs. E isso ficou na minha cabeça. A partir daí, eu comecei a pensar na história, a fazer uma pesquisa maior sobre o assunto, a acompanhar um monte de séries de tevê a cabo, pesquisar imagens no YouTube… Eu adoraria ver alguma coisa. Nunca vi nada, não sei se acredito ou não, mas acho fascinante entrar num mundo que não fazia parte das coisas que eu questionava ou pensava.

Você ouviu falar do ET Bilu?
Eu estava dando uma oficina ano passado no Sesc, e uns meninos me contaram. Eu até anotei isso na minha agenda, para procurar, mas nunca fui atrás.

Já está trabalhando em um novo projeto?
Vou voltar para o meu projeto dos Amores Expressos.

Como está essa história?
Eu fiz um livro, mas a Companhia das Letras não gostou e pediu uma série de alterações. Eu alterei, mas depois… como ele estava previsto para o ano que vem, e eu vi que eles não gostaram muito… daí, andei pensando e vou reescrever. A história vai ser no mesmo cenário, mas com outros personagens. Vou manter só um capítulo do outro livro que eu escrevi.

E o filme do Dobro de cinco, por que não teve continuidade?
Fizemos um teaser, a princípio, para uma tv a cabo. Era para ser uma minissérie em alguns capítulos. Mas essa emissora, quando viu o teaser e teve contato com os livros, achou muito bizarro e desistiu. Eles tentaram com uma outra também não aconteceu. Aí veio a ideia de virar um longa, mas seria um projeto muito caro, então está engavetado.

Uma pena, porque esse teaser ficou bem legal
Até chorei quando vi, foi muito emocionante. A direção do Denison, o Grampá cuidou de toda parte visual, a maquiagem… Mas é uma coisa quase inviável, a maquiagem do Cacá Carvalho dura quatro horas e meia e acabou, ela é jogada fora.


Você acompanha alguma coisa de quadrinhos hoje em dia?
Não tenho acompanhado quase nada, e já faz muito tempo. Às vezes me mostram alguma coisa, mas muito pouco, não tenho acompanhado nada.

O que você gosta de fazer para passar o tempo?
Ouvir música e jogar paciência no computador.

Você ainda gosto dos compositores de vanguarda erudita?
Sim, tem umas duas décadas que eu venho mais focado nessa música. Glass, John Cage, György Ligeti, Arvo Part… tenho ouvido um cara que é bem obscuro, Harry Part, que é maravilhoso.

Você tem um traço bem pessoal, é até difícil perceber as suas influências…
A minha relação com as minhas influências nos quadrinhos nunca foi de tentar imitar esses caras. Tem caras que eram referências, por exemplo, Hal Foster, no Príncipe Valente, ou Hergé no Tintim… eles têm um trabalho tão bem resolvido no estilo deles… o Tardi ou Munhoz, que pra mim é o melhor. São caras que eu nunca tentei imitar. No começo do meu trabalho, quando eu não conseguia publicar, eu tentei fazer humor, e aí quando eu tentei fazer humor, eu me influenciei mais pelo underground americano. Mas foi uma fase inicial e depois eu voltei para o que eu já era. Eu costumo dizer que o estilo é a tua limitação, é o jeito que eu sei fazer. Eu tento experimentar sempre nesse meu processo, mas é por aí, eu gosto disso. Acho que eu sempre tive mais influências literárias e de artes plásticas.

Mudar de traço é se desafiar?
É uma busca mesmo. Mesmo nas histórias antigas, tem uma variação de uma para a outra. Em cada história, eu tentava encontrar um traço que eu acreditasse que ajudava a contar a história ou ambientar melhor essa atmosfera. Eu acho muito desagradável chegar numa coisa que deu certo e ficar insistindo nisso, é muito fácil você ficar numa coisa que deu certo.

E quando você volta, efetivamente, para os quadrinhos?
Eu fiz algumas coisas em 2007, comecei um projeto novo totalmente experimental e em quadrinhos mesmo. Em algum momento eu devo voltar, mas queria encontrar uma forma nova, que fosse experimental, que me desafiasse a encontrar alguma coisa diferente do que eu fiz nesse anos todos.

Mundo de desgraçados: duas ou três coisas sobre um primeiro Mutarelli




por Ciro I. Marcondes

Levei a HQ Desgraçados, de Lourenço Mutarelli, para uma viagem em que realizaria prova para um processo seletivo bastante difícil. Como faz parte do primeiro ciclo de graphic novels do mais cult dos quadrinistas brasileiros (publicada pela Editora Vidente em 1993), era fininha e de rápida leitura. Boa para deglutir no avião e quem sabe produzir algo para a RL. Que catastrófico engano! Minha sorte foi ter lido no voo de volta. Desgraçados é da fase mais crua e indigesta deste excêntrico mestre, e sucede sua obra-prima mais perturbadora, a multipremiada Transubstanciação.


Certamente que uma HQ de tão doentio (todos sentidos) expressionismo, com cavalares doses de horror metafísico, não poderia ser uma leitura para descansar a cabeça. Mas a vida tem dessas lições de autopenitência, e com certeza estas experiências impensadas do acaso sempre aparecem para somar. Mutarelli, neste caso, é o próprio “abismo olhando de volta para você”. Vale explicar: Desgraçados é uma coleção de atrocidades brutais, rebaixando-se à mais abjeta miséria humana, com cenas de mutilação, suicídio, pedofilia, drogas pesadas, coprofilia e sadismo. Coisas que fariam arregalar os olhos dos realizadores de A serbian film. Certamente o título agressivo (minha mãe dizia que essa palavra – “desgraçado” – jamais devia sequer ser verbalizada), faz jus à exposição de miserabilia que se sucede. “A desgraça faz dos seres o que eles são”, diz a epígrafe do primeiro capítulo. Bem, como negar, não é mesmo?


Sexo em Mutarelli: "não se trata de vulgaridade" 
Por conta do forte impacto (pasoliniano, mas sem humor; sadeano, mas sem ser dionisíaco) que esta HQ enfia no leitor goela abaixo, acho que realmente não vale uma análise mais tradicional. A partir da expressão atormentada (ela foi escrita em um período controverso da vida do autor, que sofria de aguda depressão), impressões deste leitor. Em primeiro lugar, vale esquecer um pouco o traço mais fino e sofisticado (à Miguelanxo Prado) que Mutarelli desenvolveria mais tarde em suas obras mais consistentes e famosas, do detetive Diomedes (especialmente O dobro de cinco). Aqui, o uso do preto-e-branco, da deformação anatômica, da colagem e outros procedimentos mais “marginais” é intencionalmente grotesco, sem busca de qualquer elegância. A sexualidade é mostrada em corpos esquálidos, famélicos, flácidos, que despertam uma libido desesperada e incontrolável em quase todos os personagens. Não se trata de vulgaridade. Trata-se de outra coisa, uma essência erótica primitiva, claramente disposta a atravessar qualquer tipo de obstáculo, físico ou moral - disposta a sacrificar a saúde do próprio corpo, inevitavelmente.

Mutarelli vai prontificando a vida desses “desgraçados” – uma morfética que encontra o amor, depois se torna freira de um culto obscuro, depois psicopata; um loser que vê o pai se suicidar, se apaixona pela morfética, e termina, mutilado, no manicômio; um físico que se revolta contra Deus; a onipresença de uma figura diabólica – com passagens horripilantes do velho testamento, dando um tom de inevitável fatalismo à história. Acabam transbordando comentários sobre uma decadência social, urbana, científica, moral, religiosa (alô Bergman) de difícil solução, entre comentários desiludidos sobre o amor e o desejo. Derramando-se, no final (primoroso, vale dizer), pra um surrealismo (à Dalí) totalmente submerso no mundo dos sonhos, é difícil examinar o que o autor realmente queria dizer com tudo isso. Excelência dos grandes artistas, vale ressaltar.

"Excelência dos grandes artistas"

Louco de estimação
A única coisa que se pode perceber, no final das contas, é um certo (muito desregulado) sentimento de complacência que o autor repousa sobre seu protagonista quando este encontra alguma tranquilidade no manicômio, seja na figura autoritária, mas “piedosa” do psicanalista, seja na libertação pelo assassinato do mesmo, libertando também todos os outros gênios-loucos (o poeta Glauco Mattoso, amigo de Mutarelli, incluso) ao mesmo tempo. Essa relação com a loucura é o que sobra de sublime neste desfile dantesco. Não é à toa que saem da boca do psicanalista (que amestra a ideia mais genial da HQ: um “louco de estimação”) palavras do radical dramaturgo Antonin Artaud, com certeza a maior influência para esta obra: “Um louco é também um homem a quem a sociedade não quis ouvir e a quem quis impedir a implosão de insuportáveis verdades”.

Pensemos, portanto, que se Mutarelli cria um psicanalista que não acredita no próprio ofício, mas ao mesmo tempo se preocupa com seu paciente mesmo na hora de sua própria morte, ele adota a impensável atitude de viabilizar o caminho do infortúnio, fazendo questão de nos avisar que devemos dar chance ao extremo: deixar a loucura consumir os loucos, a psicopatia consumir os psicopatas, a desgraça consumir os desgraçados. Considerando a prolífica carreira e sucesso atual, nas HQs, literatura e cinema, deste autor sui-generis que é Mutarelli, convém, com satisfação, pensar que Desgraçados de alguma forma cumpriu sua tarefa de expurgar um pontinho de melancolia em sua mente. E não só na dele. 

The horror, the horror

As sombras, sempre





















por Ciro I. Marcondes

O expressionismo é um padrão visual e conceitual que, com o passar do tempo e diluição bem rala de suas origens, acabou deixando de ser uma estética completa para se tornar uma espécie de estilema. Digo isso porque, na maioria das coisas que vejo com influência expressionista, parece existir uma intenção bem explícita de parecer expressionista, como se identificar essa predileção fizesse parte do processo de entender estas obras. Isso faz com que sempre esses efeitos pareçam somente lisonjeiros ou até paródicos. Daí coisas como o cinema de Tim Burton ou boa parte desses filmes de terror asiáticos. Nos quadrinhos acho que o fenômeno se repete, sendo o estilema um conjunto de dados visuais bem fechado. A gente pode achar isso desde na clássica história de Spiegelman “Prisioneiro do planeta inferno”, que aparece também em Maus, até nas adaptações de Kafka feitas por Peter Kuper, legais, mas bem óbvias, apesar de um quadrinista como Mutarelli flutuar na direção de uma composição bem mais orgânica com o tema.

É aí que vejo o maior mérito (não pequeno, e não único) da graphic novel Três sombras, do francês Cyril Pedrosa, premiada em Angoulême e publicada aqui pela Cia. das Letras. Curiosamente famoso por animar Hércules e Corcunda de Notre Dame para a Disney (guardadas as proporções, a base do traço é a mesma de Três sombras), Pedrosa acabou escrevendo um conto de fadas não apenas com franca inspiração expressionista, mas que também traz o conteúdo essencialista de seu arcabouço estético e filosófico sem parecer estar fazendo um monte de citações inócuas. Três sombras tem muita força estilística e conceitual, e a beleza de sua história aproveita, de maneira muito pessoal, o fundamento expressionista sem recorrer a um estilema visual.


Vejamos: supostamente direcionado às crianças (talvez para causar-lhes pesadelos), Três sombras é uma HQ muito adulta, em que um pequeno núcleo familiar e rural, situado num tempo imemorial (mas que se assemelha à idade mercantil), que convive harmoniosamente em laços legítimos e comoventes, precisa lidar com a chegada de três viajantes (“sombras”), que nunca se aproximam, nunca se revelam, mas das quais sabe-se bem o propósito: vão levar o filho Joachim, para nunca mais trazê-lo de volta. A harmonia então transmuta-se num conto de angústia até que o pai, Louis, decide forçar a barra e carregar o filho para longe das sombras, saindo do pequeno geno da fazenda e abrindo os horizontes do filho e de si mesmo para “mares nunca d’antes navegados”, numa jornada sinistra com tipos cada mais estranhos e perversos entrecruzando-se no caminho dos dois. A jornada em busca da vida é também, portanto, uma jornada de descoberta, amadurecimento e enfrentamento.

A qualidade gráfica do trabalho de Pedrosa é exasperante e exultante. Logicamente está presente um alfabeto expressionista básico, com contrastes de luz e sombra, mas o autor sabe bem subvertê-lo e deixar sua influência mais transparente. Ao contrário da angulação excessiva, tradicional nos decalques do estilo (imagino que a origem de tudo ainda seja a tosqueira que é O gabinete do Dr. Caligari), Três sombras é uma obra de fluxo livre, bem mais simbolista, alternando figura e fundo, eliminando as fronteiras entre os requadros, com linda modulação de movimentos e matizes de giz e grafite que se adaptam às tensões emocionais das cenas. Este era um dos princípios tanto das encenações teatrais expressionistas (basta pensar nas obras de Wedekind ou Strindberg) quanto na pintura expressionista do fim do século 19, que deu origem a tudo: o expressionismo não é uma deformação óptica (como o impressionismo ou esses decalques), mas sim uma visão produzida a partir das ambiguidades internas do indivíduo, uma expressão do “eu”. Em uma Europa perturbada por longa sequência de guerras e com a arte entrando em crise profunda, a busca por uma essência gutural, longe da técnica, que retomasse nossa animalidade intrínseca, acabou sendo fundamental para abalar a noção iluminista de indivíduo que até então vigorava.  É por isso que, mais do que uma estética manjada de embelezamento gótico, o expressionismo é também uma filosofia em si, e suas obras narrativas são sempre alegóricas. De Da aurora à meia-noite a um filme como Nosferatu (Murnau), a histórias projetadas são transvisualizações (o que nos leva a pensar em como este conteúdo ajudou a fomentar a psicanálise ou o surrealismo) de nossas próprias funções mentais, e assim acontece em Três sombras.

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O que temos nesta HQ seria uma redução bem primal de certas angústias básicas e inevitáveis, num conto de fadas que ao mesmo tempo não deixa de ser uma aventura encantadora. O medo da morte, medo do crescimento, do envelhecimento, da fragmentação familiar, de perdermos nosso Éden originário (a infância, a família), de encararmos o lado torpe do mundo, etc., são temas que vão tomando estas formas oníricas, e a de se estar sonhando também é uma sensação que Três sombras nos transmite. A saída deste Éden (útero) primaveril e telúrico de pai e filho leva a um mundo de extorsão, repleto de canalhas, dissimulados, cretinos e psicopatas. Louis acredita que a força inesgotável de seu amor paternal é suficiente para vendar os olhos de seu filho para esta realidade inevitável, mas o roteiro de Pedrosa nos mostra que a persistência é também um ato dilacerado e inútil. O luto pesado, portanto, diante da morte ou do crescimento (growing pains), é algo graficamente e simbolicamente traduzido nas páginas de Três sombras. Este luto, natural a cada um de nós, é a metáfora que reside na sombra expressionista, para a qual sempre olhamos de um jeito torpe, difuso, à meia-luz.

Esta redução a arquétipos, tão mitologicamente proposta pelos pintores e dramaturgos alemães que previam uma grande transformação da psiquê humana com a virada daquele século, tem sempre na figura sinistra da morte uma concentração simbólica maior. Em Três sombras, quando a morte aparece, é para, como sempre, reafirmar seu caráter de inexorabilidade, sua emulsão sem fim de angústia, ainda que de forma plácida. Ela surge apenas para afirmar que “não pode revelar” o que há do outro lado da travessia, da mesma maneira que faz no clássico filme O sétimo selo, de Bergman, quando afirma ao cavaleiro Antonius Block “não saber” o que acontece com as almas depois que elas partem. Este filme, não por coincidência, parte do mesmo princípio de originalidade de Três sombras: investe num profundo mergulho do inconsciente expressionista sem citá-lo, sendo-o sem procurar sê-lo. É o grande mérito de artistas cada vez mais raros que, de fora do ambiente histórico e cultural que gerou esta forma de expressão, conseguem pensar, naturalmente, de forma expressionista. Três sombras, uma grande HQ, acaba de entrar para um clube seleto.              

As sombras, sempre