RAGU 8: TEMPERO EXPERIMENTAL PARA PALADARES ÁCIDOS

RAGU 8: TEMPERO EXPERIMENTAL PARA PALADARES ÁCIDOS

por Ciro Inácio Marcondes

O ragu é um molho feito com a redução extrema do tomate, e vai muito bem com a deglaçagem, com vinho tinto, da carne de porco na panela. Sabores fortes, amigo. Uma delícia dos paladares mais brutos que acompanha muito bem massas diversas. E esse Ragu é justamente o nome da já clássica publicação pernambucana que teve seus primeiros números no início dos anos 2000, e não saía desde 2009, quando foi publicado o número sete.

Pois a Ragu está de casa nova, e um novo número foi lançado em julho de 2021 pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), sob quíntupla editoria: Diogo Guedes (Cepe), os artistas João Lin e Christiano Mascaro, a tradutora e editora Dandara Palankof (também da Raio Laser) e o jornalista Paulo Floro (revistas O Grito e Plaf). O resultado é um livraço em Off-set cuidadosamente pensado para dar cabo das ansiedades estéticas, políticas e discursivas de pelo menos umas três gerações de artistas que se encontram aqui, na tábula rasa da experimentação.

Mas será mesmo uma tábula rasa? É certo que boa parte dos 41 artistas dispostos na longa e democrática perfilação da revista (com devida diversidade de gênero, raça, etc.) se dedicam a uma proposta outra do visível, esmigalhando disposições tradicionais de quadrinhos em estilhaços de linguagem, granadas conceituais, deformando tempo, espaço, narrativa, tudo. A capa e quarta capa, por exemplo, do artista alemão Henning Wagenbreth, funcionam como panópticos construtivistas com imagens sugestivas, sem ordem definida, numa livre associação de formas, palavras, gestos e ideias. Margeia o design, margeia um tipo de anti-publicidade, uma conflação do pop com a abstração.

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Rapidinhas Raio Laser #05

Machado escreveu, com aquela pomposidade tipicamente machadiana: "Estabelecei a crítica, mas a crítica fecunda, e não a estéril, que nos aborrece e nos mata, que não reflete nem discute, que abate por capricho ou levanta por vaidade; estabelecei a crítica pensadora, sincera, perseverante, elevada, — será esse o meio de reerguer os ânimos, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feitos; condenai o ódio, a camaradagem e a indiferença, — essas três chagas da crítica de hoje, — ponde em lugar deles, a sinceridade, a solicitude e a justiça, — é só assim que teremos uma grande literatura."

Bem, pomposidade à parte (Machado pode), e sem essa de "grande" literatura, as palavras do nosso autor predileto ainda ressoam para a crítica de hoje. Condenar o ódio gratuito, a camaradagem estéril e a indiferença blasé - é o que tentamos fazer por aqui (vejam bem, Machado condenava esse vícios no século 19). Logicamente, nossa crítica é de Internet, e não pretendemos exaurir nada. O texto tem de ser enxuto, e algumas generalizações precisam ser feitas. Mesmo assim, vocês devem ter notado um certo aumento de tamanho (e de maturidade) em relação às primeiras "Rapidinhas". É que nós respeitamos o que lemos. Respeitamos o trabalho do autor de quadrinhos no Brasil.

Dito isso, aquela coisa: quase tudo é bem novo, mas tem coisa velha (tipo um quadrinho do Gerlach de 2012 - mas é Gerlach, p*rra! Esse é outro que pode), pois nosso encalhe aqui parece interminável. Além disso, estreiam nesta seção dois dos nossos colaboradores mais novos, Lima Neto e Marcos Maciel de Almeida (sumidades da cultura de quadrinhos de Brasília). Aguardem mais resenhas e não deixem de mandar coisas pra gente. Lenta como uma lesma presa numa labirinto, a Raio Laser procura cobrir tudo que recebe. Para aparecer aqui, envie seu material para:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070

Peace! (CIM)

por Ciro Inácio Marcondes, Lima Neto e Marcos Maciel de Almeida

PIMBA Nº 3 – Vários (Independente, 2016, 28 p.): aqui na Raio Laser, o Jornal Pimba já dispensa qualquer apresentação. Depois de passarem 2015 em branco, a equipe radicada em Brasília (Gomez, Mello e Sobreiro, esses apocalípticos), do jeito que deu, chupando cana e trocando pneu de carro ao mesmo tempo, lançou uma nova e linda edição do jornal de quadrinhos mais carismático do País (há outros, como o mais avant-garde Suplemento, ou o ótimo jornal de tiras Graphic, do guerrilheiro das HQs Mário Latino, ou o novíssimo Altamira). Como sempre impresso em uma cor dominante (desta vez amarelo) e layout despojado e eficaz, o Pimba retorna repetindo algumas pratas da casa (Góes, San, Valente, Belga) e traz novos convidados do indie brazuca que dão certo peso e responsa à publicação: Chiquinha e Pablo Carranza, por exemplo, coisas de espectros meio opostos, entregam folhas de quadrinhos despretensiosos, diria até dispensáveis (dado o potencial); bobos, mas não sem graça. Já a dupla Bruno Maron e Ricardo Coimbra, de lente e lápis afiados para um cinismo bruto (que a nossa geração merece ouvir), não parecem ter reservado seus melhores trabalhos para o jornal. Soou como improviso. Mais interessante, em quadrinhos, é a metacrítica feita por André Valente “Fazer quadrinhos vai destruir você, vai partir seu coração”. De fato, ao que parece, vai. Valente pega esta citação de Schulz e, num sentido mesmo charliebrownesco, constrói uma visão na verdade desoladora, neurótica e categórica sobre o ofício de fazer quadrinhos no Brasil. Resta pouca esperança, realmente, se o melhor de uma produção reside na autoparódia. Tudo fica em tom de despedida.

Assim como na edição 2, os quadrinhos oscilam, mas há muitos bons momentos em texto (e ilustração) para deixar o Pimba 3 mais interessante. Com maior participação feminina, temos, por exemplo, um conto de memória rural (mas de mentalidade urbana) exíguo e melancólico de Marcella Moraes; e uma ótima, satírica e perversa leitura de certa tosca mentalidade masculina por Maíra Valério. Temos Arnaldo Branco, que cria uma pequena exegese para o vício (viva!); temos um conto bastante prosaico (em tom de crônica, mas sem perder e verve de Literatura sobre o interior do Brasil) de Milton Sobreiro (o que dá um ar menos hipster pra coisa toda); e temos uma fritadíssima autorreflexão de Hector Lima sobre a adesão descontrolada e antissocial a produtos culturais de consumo, misturado a ciência contemporânea e Literatura de Internet (o que traz um ar pós-moderno). Não falta ao Pimba, portanto, gente talentosa. A minha impressão, no entanto, é que a editoração dessa p*rra funciona como uma invasão dos Piratas do Tietê, espécie de onda caótica de mentes tresloucadas sedentas por expressão, mas ainda assim se atropelando de ansiedade. (CIM)

Topografias – Bárbara Malagoli, Julia Balthazar, Lovelove6, Mariana Paraizo, Puiupo, Taís Koshino (Piqui, 2016, 60 p.): se pensarmos a topografia como o mapeamento de um território, este quadrinho tem dupla função: em primeiro lugar, é um radar para o melhor da produção feminina no Brasil atualmente, especialmente no meio indie. A ideia é realmente construir uma cartografia, indicar o caminho, levar a produção masculina pelas mãos e dizer: “fazemos bem e fazemos diferente”. Neste sentido (e sem querer avançar mais no chauvinismo da guerra de sexos), Topografias é um material aberto à experimentação e à sensibilidade radical, um tipo de autoria em quadrinhos que possui outro DNA, outras preocupações e prioridades. Em segundo lugar, a topografia (escrita do espaço) também diz muito sobre a qualidade artística do trabalho em si destas minas. Pouco preocupadas em construir narrativas funcionais ou numa “antiquada” produção mais tradicional de sentido, estas quadrinistas deixam o espaço falar (e também o espaço da página) como se fosse uma expressão em si, deixando balões de fala, texto e mesmo questões políticas em segundo plano.

O resultado em geral é acima da média. Há uma forte pulsão expressiva na maneira como este coletivo representa suas ideias em quadrinhos. Em alguns momentos, porém, ainda resvalam em certos procedimentos naïve, e muitas vezes o texto mais atrapalha do que qualquer outra coisa. Vejamos o caso de Bárbara Malagoli: ela constrói um poderoso dispositivo visual inspirado em sci-fi, com trabalho de cores louquérrimo e embasbacante, mas há uma disjunção entre estas splash pages e os textos, que parecem excertos (pseudo) filosóficos (“É tudo um sonho, um sonho grotesco e tolo”) soltos, sem muita conexão com as imagens. Falta aquela “liga” que faria o quadrinho ressoar melhor na gente. Já Julia Balthazar se sai melhor ao apresentar uma simples tarde na piscina vivenciada por duas garotas apaixonadas, em sua exclusividade. Também há uma forte presença do espaço e das cores, como se a transmissão da impressão do sentimento se sobressaísse a quaisquer palavras (de fato os diálogos são vagos e não dizem muito).

A sci-fi também está presente nas contribuições sui generis de Taís Koshino e Puiupo. A primeira é a melhor participação da revista e talvez sua melhor história ever: numa turma de crianças telepatas praticantes de meditação, temos acesso a certo “museu do futuro”, que conta a história de nossa evolução (com bem-humoradas alterações). Koshino alterna bem a disposição entre um senso de humor muito próprio, questões sobre tecnologia, corpo humano e realidade virtual, além de um intrigante trabalho com cores e empaginação (e aqui o texto – paródia do cientificismo – funciona). Já Puiupo apresenta uma cena grotesca em sua visão freak, cronenberguiana, sexy de um jeito inimaginável. Não entendi muita coisa, mas há personalidade e imagens que não saem da cabeça. Por fim, Lovelove6 traz um trabalho bastante radical e pessoal, em tons (eroticamente bem pensados) de vermelho e roxo, também numa cena arquetípica de amor entre duas mulheres. A topografia em si da história é bastante marcante e virulenta, mas a mensagem do texto (“o ciúme é bastante antigo”) me pareceu meio moralista. Enfim, vale também destacar o belo trabalho de editoração de Lívia Viganó para este que é um dos mais bonitos e significativos lançamentos do ano passado. (CIM)

Cais – Janaína de Luna e Pedro Cobiaco (Mino, 2016): quando acordamos e relembramos acontecimentos ocorridos em nossos sonhos, nada parece fazer sentido. Ainda assim, quando estamos dentro da realidade onírica, tudo parece ter lógica, não é? Agora imagine poder ver um sonho estando acordado. Foi assim que me senti quando li Cais. Essencialmente intimista, a narrativa em primeira pessoa nos dá dicas preciosas sobre o inconsciente de Diana, a protagonista, mas deixa muita coisa em aberto. Confesso que tive de ler umas três vezes para sacar qual era a onda do gibi, mas isso não é um ponto negativo. Muito pelo contrário. Numa época em que a informação tem que ser cada vez mais objetiva e mastigada para agradar a leitores apressados, é saudável encontrar HQs que nadam contra essa corrente. 

A água, em suas diversas formas, é presença constante no gibi, assim como são as diversas metáforas que ajudam a entender (ou confundir) quem é Diana e qual a natureza de seu relacionamento com – eis um nome escolhido a dedo – Martin. As lentas idas e vindas do casal são a preguiçosa maré que vai embalar o ritmo desta HQ, que poderia se passar em qualquer vila litorânea do Brasil. A arte é um capítulo à parte. O belo contraponto em preto e branco deste Cais com o colorido esfuziante de Aventuras nailha do tesouro mostra que Pedro Cobiaco está à vontade em qualquer praia. Ouvi dizer por aí que pode ser que Diana volte num gibi de mais de cem páginas. Espero que o sonho se torne realidade. (MMA

Quadrinhos Insones – Diego Sanchez (Mino, 2016, 96 p.): não são poucos os motivos que nos fazem embarcar em vigílias involuntárias noite adentro. E embora tenha certeza de que o bem-estar social no mundo é um deles, a grande maioria das insônias são causadas por pequenos nós íntimos do dia a dia que nosso cérebro insiste em tentar desatar quando deitamos. E Quadrinhos insones, um apanhado da produção digital do quadrinista Diego Sanchez publicado pela Mino em 2016, é uma testemunha disso. O belo livrinho – que poderia ter uma produção mais modesta em consonância ao caráter despojado das narrativas – abre com uma pesada descrição da guerra civil no Camboja em 1975, mas rapidamente a narrativa histórica dá lugar a reflexões e micro-crônicas às vezes fantasiosas e muitas vezes íntimas e autobiográficas. A arte de Sanchez é uma delícia de se ver, algo como um Richard Sala hiper detalhado. E, no geral, o gibi proporciona alguns momentos de entretenimento belos e descompromissados. A bela “Escalas” e “O estranho caso da baía 4” são bons exemplos disso. Alguns continhos de uma página também seduzem pela capacidade de síntese. Quanto à linguagem, o grande destaque é o quadrinho sem título da página 50, uma perolazinha que traz ecos de Spiegelman e McCloud, que nos lembra novamente por que produzimos e lemos narrativas neste tipo de mídia.  O restante do quadrinho, entretanto, é prejudicado pela intimidade autobiográfica que esbarra em alguns lugares-comuns do modo de vida “indie”, tornando egocêntrico o que poderia ser distinto. Essa irregularidade do título, assim como seu caráter despojado, me fazem pensar em como ele seria melhor se lido com uma produção mais baixa – uma lombada canoa, papel jornal e algumas páginas a menos fariam deste Quadrinhos insones um sono mais agradável. (LN)

2015 – Antônio Silva, Augusto Botelho e Daniel Lopes (Org., MÊS, 2015, 152 p.): mais uma pira de Brasília, esta antologia é o resultado do trabalho de curadoria da galera da Mês, que em 2014 lançou religiosamente 12 zines (e repetem a fórmula em 2016). Em 2015 eles resolveram fazer diferente e financiaram no Catarse uma antologia a partir de uma convocatória. O resultado é um livro responsa com mais de 20 colaboradores e uma ampla diversidade de estilos. Alguns nomes (Diego Sanchez, Laura Athayde, Renata Rinaldi, Taís Koshino) são já conhecidos no meio indie, mas há muitos aventureiros também. Isto torna o conteúdo da revista irregular, como é de praxe neste tipo de publicação. Conhecendo o perfil editorial da galera, já se pode esperar da Mês um incentivo à experimentação, ao ato subversivo de romper certas barreiras que margeiam escapar dos quadrinhos. Artes visuais, colagem, fotomontagem, ilustração abstrata e rabiscos não são estranhos à mentalidade dos caras, assim como forte apelo ao nonsense  e quadrinhos que parecem pura zoação. Memes, enfim. Não sou contra essas coisas, mas é um terreno pantanoso. Dentro desta perspectiva, destaco a bela expressão de angústia juvenil de Gustavo Magalhães, em amplos quadros que dizem muito pouco, mas transmitem forte intensidade emocional: é uma equação precisa para se produzir bom quadrinho experimental.

Porém, mesmo com certa quantidade de coisas apressadas (e logo esquecíveis), 2015 tem quatro trunfos, que fazem a revista valer a pena. Em primeiro lugar, a história de abertura de Diego Sanchez: voo livre num surrealismo bem próximo dos sonhos (talvez tenha sido um), com sua arte em grande forma e sensibilidade na medida certa. É assim que se faz poesia em quadrinhos (e não recitando seu diário de adolescente junto a imagens expressionistas). É uma das melhores histórias que li dele. Em segundo lugar, a participação dos editores, bem mais calejados, com uma preocupação séria em se pensar a expressão em quadrinhos. Antônio Silva ainda vacila um pouco: sua história é tão doidona que parece ter sido desenhada em “escrita automática”. Mesmo assim, tem vigor nos movimentos, e intensidade. Lembra o estilo do querido Mateus Gandara. Já Augusto Botelho também oferece seu melhor trabalho até aqui. Ele conta a história (muda, profundamente inteligente e expressiva) de um menino (alter-ego?) numa praia que encontra um totem num barco e quer levá-lo para casa, mas a “entidade” não permite. Botelho trabalha bem o uso de luz, ângulos e expressões (seu traço está em consonância com sua geração, vide Pedro Cobiaco), e o sentido metafísico da história tem um quê de cabalístico, sem exageros. Por fim, temos a também muda história de Daniel Lopes, sobre o encontro entre um menino e um astronauta, também onírica (e esotérica), que remete ao ciclo infindável de nascimento e morte, com ótimas referências a 2001, Marco e até Incredible science fiction (da EC Comics – a famosa história do astronauta negro). O quadrinho de Daniel tem preciso timing, delicadezas e figuras de linguagem, revelando, assim como no caso de Botelho, exímio domínio da linguagem muda. Estes quadrinhos destoam muito do resto da edição, mostrando que estes caras estão prontos para saltos mais ambiciosos. (CIM)      

The Concept – Um quadrinho inspirado na canção da banda Teenage Fanclub

(Clube do Single Volume 1) – Fábio Lyra (Beléléu, 2014, 18 p.): eu havia criticado o estilo de Fábio Lyra em outra publicação, mas, como a vingança é um prato servido frio, preciso dar o braço a torcer aqui. Lyra bolou este projeto “Clube do Single”, que é o de escrever pequenas HQs inspiradas em canções, no formato físico de um single. A escolha para o primeiro projeto (lá de 2014) não poderia ter sido mais acertada: o Teenage Fanclub é das bandas que mais agregam loucos e apaixonados, desembocadouro para qualquer introvertido, indie ou ser antissocial dos anos 90. Há quem vire o nariz, mas o som deliciosamente melódico da banda, com as melhores influências (Beatles, Neil Young) e sem perder a personalidade discreta, tímida, mas generosa e cativante (capaz de transformar o rock numa crônica do cotidiano), este som é o de uma das minhas bandas favoritas. E The concept é, tipo, a melhor música do Teenage Fanclub. Pequeno épico do power pop, funciona como se o Big Star cruzasse com o Pink Floyd. E Lyra usa uma estratégia inteligente: ao invés de transcrever a letra da música para uma HQ, ele inventa uma história bastante diferente, sobre o encontro fortuito e fugaz entre dois jovens na madrugada (a garota como mote tanto na canção quanto na HQ), para procurar capturar o espírito (ou o mojo, ou sei lá o quê) da música na mídia quadrinhos. O traço de Lyra é bonito, e ele sabe tirar dos quadrinhos instantes que parecem paralisados na nossa percepção, memórias que ficarão para sempre. Assim, o Concept de Fábio Lyra é despojado e melancólico, mas que se vale de mini-emoções. Seria uma coisa assim, digamos, low-profile mas de bom coração. E não seria esta uma boa maneira de descrever o som dos escoceses? (CIM)    

Alvoroço – Diego Gerlach (Vibe Tronxa, 2012, 28 p.): pode ser dito com segurança que Diego Gerlach é um dos traços mais ativos do quadrinho nacional.  E em Alvoroço, gibi de seu personagem Boy Rochedo, se vê claramente também sua verve de artista gráfico. Do projeto da capa, de visível inspiração na produção gráfica de Emilio Damiani, até seu traço afiado que parece cortar a folha do papel, tudo expressa a psicodelia contundente como navalha que é marca do seu trabalho. Ao lado de uma produção gráfica mecânica e tradicional, Gerlach incorpora ainda uma tecnologia lo-fi nas suas retículas digitais e degradês deliciosamente piegas.

Alvoroço conta o retorno de Boy Rochedo, invocado de sabe Deus onde, renascido de uma fumegante vagina de beijú (tapioca para os ocidentais). Um nonsense transpirante que não vê incômodo em não ter início ou fim, e está mais interessado em expressar a amoralidade mambembe de seu personagem. Essa amoralidade acidental contrasta com o início da revista e seu ar de manifesto, mas, na soma de tudo, o que há é uma sensação e “com o passar do tempo a sensação passa a importar muito mais que a própria resposta”.

Alvoroço é um gibi curioso, bate aquela familiar vontade de acompanhar para ver o que acontece. Mas Gerlach tem uma intenção artística e anárquica que dispensa essas estratégias tradicionais de “storytelling”. É a “vibe” que importa. Pelo menos, no caso de Gerlach,  a vaibe é boa e autêntica. (LN)

Quadrinhos Perturbados – João Rabello (Avocado, 2015): eis um gibi contendo tiras com um tipo de humor bastante peculiar. Fazendo uso de tiradas e trocadilhos – escritos ou imagéticos – João Rabello dá protagonismo às suas manias e obsessões, como piratas, crânios e bigodes. Sim, bigodes. É um tipo de humor que poderá agradar a gregos, mas não a troianos, devido ao fato de representar a particular maneira através da qual o autor enxerga a vida e os fatos cotidianos. Por meio de várias referências à cultura pop – especialmente personagens de HQ – Rabello dá voz a um universo essencialmente pessoal. Confesso que me identifico com o tipo de piadas nonsense que estão espalhadas pelo gibi, cuja leitura me remeteu a James Kochalka em seu "The Horrible Truth about Comics". Neste último, o autor norte-americano destaca um dos recursos mais importantes dos quadrinhos: sua facilidade em favorecer a expressão individual. Em sua HQ, Kochalka ensina que talento ou dom são meros coadjuvantes diante de uma das grandes forças da nona arte, que é a capacidade de difundir visões e opiniões de forma visceral, autêntica e direta. Seguindo – consciente ou inconscientemente – esta ideia, Rabello acerta ao se permitir trazer para a superfície sua visão de mundo e de humor. (MMA)

O Diabo e Eu – Alcimar Frazão (Mino, 2016, 64 p.): Eu amo country blues. Nada como se render à simplicidade de três acordes e à emanação de toda uma época. Música pura, de inconfessáveis verdades. Simples, mas que nos atinge de primeira. Lonnie Johnson, Leroy Carr, Blind Willie McTell, Big Bill Broonzy, Memphis Minnie. E Robert Johnson, é claro. Esses cantores ainda emocionam porque estão atrelados a uma realidade onde música e vida não podem ser separados. É esta realidade que Alcimar Frazão traz aos quadrinhos ao elaborar, de maneira radicalmente pessoal, a história de Robert Johnson e o pacto com o Diabo. 

O Diabo e eu é uma história muda, cheia de signos sinistros, legítima gothic south, onde nos sentimos imersos no mundo apodrecido dos pântanos e deltas nos Estados Unidos do começo do século XX. Frazão legitima o terror ao fazer reverência à tradição brasileira do gênero: Shimamoto, Rodolfo Zalla e Mozart Couto parecem influências. Além de trabalhar grafismos cheios de psicologia (como uma menina com cabeça de cachorro), o quadrinista ainda discute a ideia do Diabo, que aqui aparece (quase) como metáfora da podridão da sociedade americana pós-escravocrata, e o mal absoluto brota na imagem do pai de Johnson, facínora violento que prostituía a própria esposa. Tudo isso sem perder o horror literal (o diabo está mesmo lá) e associando o silêncio do texto em quadrinhos à tristeza inerente ao blues rural, como se este silêncio e a música pudessem dizer a mesma coisa, mas em meios diferentes. (CIM)

Lavagem – Shiko (Mino, 2015, 72 p.): este talvez seja o melhor trabalho do paraibano Shiko (ainda que eu goste muito do experimentalismo poético de Blue Note).

Lavagem guarda muitas semelhanças com O Diabo e eu: é uma história de assassinato num lugar “abandonado por Deus” com a presença de um Diabo personificado. Fórmula de terror e símbolos ocultos. A arte de Shiko, porém, é mais dinâmica e cinematográfica, com ótimo domínio do timing narrativo.

Lavagem também retoma nossa tradição de quadrinhos de terror, mas acrescenta algo de cinema novo (eu ouvi Portodas caixas?) e Brasil contemporâneo à coisa. É um sincretismo eficiente e Shiko mira direto no oportunismo dos pastores evangélicos (“sometimes satan comes as a man of peace”) para fazer sua interpretação do mal. Mesmo não sendo brilhante (ainda acho que o movimento no quadrinho e as expressões dos personagens podem ganhar mais vida), o autor aproveita bem a sua chance de socializar o horror com questões sobre opressão feminina, desemprego e pobreza no Brasil.

Lavagem satisfaz, mas também produz aquela velha sensação: “agora que já fez esse, vai lá e faz um melhor”. Ou seja: mais e melhor Shiko, por favor. (CIM)

Rapidinhas Raio Laser #04

E as aguardadas quickies estão de volta, com pouca alteração no formato além do título em português (o que pareceu mais conveniente) e a estreia de resenhas rapidíssimas (para zines e coisas de leitura muito rápida). Lembrem-se: as resenhas são voltadas para o mercado (in)dependente e podem surgir coisas de anos anteriores que estavam encalhadas aqui. Muito do que a gente resenha nos foi enviado pelo correio. Então, não dê mole (se tiver coragem): mande seu material para a Raio Laser no seguinte endereço:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070

por Ciro I. Marcondes

Menina Infinito Nº 1Fábio Lyra (Beleléu, 2015, 36 p.): os quadrinhos de Fábio Lyra seguem um certo padrão: são singelos, com seu traço um tanto duro (sem sombras e gradações), entulhados de referências de bandas indie, noise e shoegaze dos anos 80 e 90, e um pouco lacônicos.

Menina infinita, sua nova série pela Beleléu, não foge à regra e, em meio a citações a Death From Above, Ride, Eugenius e Jesus and Mary Chain, somos inseridos dentro de uma apática festinha de apartamento marejada por este tipo de referência, com gente (já nem tão) jovem explorando as possibilidades afetivas deste ambiente já desgastado e um tanto melancólico, buscando romance xôxo e umas brejas quentes. Se o resultado não é ruim (há uma delicadeza e um humor sutil – para iniciados – que cativam), também carece de urgência. Muito curtinha, a revista não engrena não apenas pelo tamanho, mas pelo apego excessivo ao banal, algo que não acontece nos dramas íntimos de Adrian Tomine, ou nas tramas rocambolescas de Jayme Hernandez, que são claras inspirações.

Menina infinito ainda está longe de seus mestres, peca um pouco por uma quadrinização sem ambição e talvez tenha mais referências que conteúdo, mas ainda está na número 1, e, quando se trata de séries, sabemos que o piloto é sempre um parto difícil. A ver as edições restantes.

Baratão 66 – Bruno Azevêdo e Luciano Irrthum (Beleléu, 2013, 193 p.): em termos de romance gráfico, Baratão 66 é a grande pedida no quadrinho brasileiro contemporâneo. Não tem pra ninguém. Hilário, cheio de recursos, enraizado num ambiente profundamente brasileiro, esta HQ é tudo que o quadrinho de ativismo ingênuo, o quadrinho blasé/minimalista, o quadrinho punk/doido sem referência e o quadrinho sentimental-vinte-e-poucos-anos não são. Ou seja, o roteiro de Bruno Azevêdo, que gira em torno de uma família de mulheres que gerenciam um puteiro em São Luís, vai contra quase tudo que têm sido as tendências do quadrinho brasileiro. Do delineamento psicológico dos personagens, aos seus nomes, à composição dos coadjuvantes, ao timing do humor, à engenhosidade da trama, e até à multiplicidade de registros multimídia (cartas, fotos, postais), Baratão 66 dá o tom exato de como se fazer uma leitura do Brasil em quadrinhos. É o encontro de dois mundos: o da visita à cidadezinha brasileira e seu bestiário de putas, taxistas, michês, policiais e políticos mentecaptos, com uma problematização social do Brasil que está lá como substrato, mas não passa incólume, sempre em chave de ironia. Como se fosse o encontro de Angeli com Érico Veríssimo, ou algo que o valha.  Há baixaria na medida certa, há referências e easter eggs para os que gostam, e há uma arte meio inspirada em cordel, mas sem perder a leveza do pop, que não nos deixa desgrudar os olhos. Uma preciosidade talhada na safadeza e na estultice brasileiras. 

Aerolito Nº 2 e 3 – Lucas Marques, Bruno Prosaiko, Túlio Mendes, Cauê Brandão (Semear, 2014 e 2015, 48 p. cada): a Aerolito é uma nova publicação de jovens quadrinistas brasilienses interessados em narrativas de maior fôlego e histórias mais elaboradas, quase sempre com um pé no insólito e coisas extraordinárias, mas os temas variam bastante. Tive a satisfação de escrever a apresentação da número 1. O acabamento é ótimo, e as capas, paródias de pinturas famosas, são divertidas, cheias de cores e intenções vibrantes. Se na número 1 as histórias ainda careciam de maturidade e traziam um aspecto um tanto amadorístico, nos números seguintes há uma melhora realmente visível, mesmo que pontuada por growing pains, coisa de quem tá começando. O destaque vai para a qualidade autoral do traço carismático de Bruno Prosaiko, que trabalha histórias de verniz mais surrealista. Falta aos roteiros, porém, um equilíbrio entre ambição de (falsa) “profundidade” às histórias e um resultado efetivo nesse sentido. Mesmo “sérias”, estas histórias ainda soam infantis. Melhor partir logo para a fantasia juvenil e desvairada.

Também um tanto desequilibrado, Lucas Marques alterna o traço, o estilo e os temas a cada edição, dando a impressão de ser um artista um pouco desorientado na sua busca por um caminho, sendo confuso e poluído em “Mister Lonely”, mas acertando na mosca no traço limpo, caricatural e despojado na ótima “Rarimish, o messias”, a melhor história de todas as Aerolito. O humor pode ser uma boa. Já Túlio Mendes, atrás dos outros, precisa melhorar a ação e o dinamismo tanto dentro dos quadros quanto entre eles (e soltar o traço!), para fazer as histórias fluírem melhor, além de abandonar quaisquer pretensões de histórias muito “adultas”. Não é um desperdício do seu tempo ler o trabalho destes erráticos quadrinistas, mas há um salto ainda entre o que estas histórias oferecem por trás de sua suposta ousadia e a envergadura do projeto editorial. 

Pigmaleão – Diego Sanchez (Circuito Ambrosia, 2014, 52 p.): e eis que o quadrinista carioca Diego Sanchez, anos depois da “treta de 2012”, retorna às páginas de Raio Laser. Zoações à parte e zero de ressentimento de ambas as partes (o cara é gente boa), temos em mãos este delicado, intuitivo e esotérico Pigmaleão, um salto quântico em relação ao que ele havia apresentado em Peixe fora d’água. Aqui, temos uma história de requadros sem arestas cuidadosamente costurada em torno da iconografia do Tarô de Marselha, a partir de sonhos dentro de sonhos de um jovem processando um relacionamento irreparável em seu inconsciente profundo. Se o tema não é lá dos mais originais (o mito de Pigmaleão para a fantasia masculina da mulher ideal também acabou se tornando um clichê), Sanchez nos conquista com a beleza minimal de seus desenhos (lembra o francês Lewis Trondheim), com o movimento delicado e sinuoso das diagonais de seus quadros, com os intervalos e silêncios que exemplificam sua maturidade narrativa, com o erotismo refinado a partir do qual elabora afetos e mágoas. Memórias inventadas são um bom tema para um tipo de arte que embaralha imagens em diversos níveis e plataformas, e neste ambiente Sanchez encontra porto seguro para expiar seus tormentos e inquietações. 

Coral – Taís Koshino (Selo Piqui, 2015, 22 p.): seria injusto criticar Coral apenas pelo amadorismo de seus desenhos. Certo, Taís Koshino não é uma desenhista profissional, mas, até aí, críticas a um estilo rude e até grosseiro poderiam ser levantadas contra desde Gary Panther, passando por Arnaldo Branco, e até a Henfil ou Wolinski. A questão mesmo é que a excelência nos desenhos deixou de ser pré-requisito para se fazer quadrinhos, goste-se disso ou não.

Coral é o trabalho mais maduro da autora, em sua busca silenciosa por autoconhecimento, em sua experimentação com as divisões e cores dos quadros, com a espessura do lápis, tudo eivado com um tom escapista e melancólico. Temos, por exemplo, a bela exploração de um certo discurso indireto livre em quadrinhos, marcado pelos planos em primeira pessoa, que terminam num quadro magritteano. Sem estardalhaço e sem recursos apelativos, a autora vai cavando sua subjetividade radical na cena dos quadrinhos independentes brasileiros, por meio da poesia e da abstração. Mesmo assim, ainda falta a Coral um norte que a livre da esterilidade do teimoso dadaísmo aleatório e da aversão ao próprio leitor no momento em que a produção de sentido se faz mais necessária. E, neste caso, produzir uma arte simplesmente naïf não ajuda. 

Velhaco’s – André Aguiar (TocasTudios, 2013, 14 p.): Velhaco’s é uma aventura bate-pronto cheia de fuleiragem misturando universos do skate, do cyberpunk, do antropomorfismo, do videogame vintage, etc. A coisa é curta e rasante como um esporro, e o desenhista e roteirista André Aguiar não economiza nas tintas rabiscadas, como se se aproveitasse de uma arte-final de improviso, para narrar a história de dois maloqueiros na missão doida de salvar um gatinha de robôs, policiais, coisas assim. É como se o filme Warriorstivesse um spin-off underground na revista Animal. Se o resultado parece tolo e esquecível, é porque não tinha como ser diferente. O punk não pode ser eterno. 

GoróLuiz Berger (Org., Gordo Seboso, 2013, 76 p.): histórias de bebedeira. Esta simples premissa poderia ser motivo de esta publicação de 2013 ser nada mais que pura tosqueira. Porém, um bom punhado dos autores do gibi resolveu usar a birita como gatilho para criar situações pitorescas, histórias policiais e até reflexões existenciais. Editado por Luiz Berger, o rei da escatologia, Goró de certa maneira demonstra como o quadrinista brasileiro contemporâneo consegue se virar em qualquer situação, topar qualquer empreitada, transformar merda em ouro. Abraham Diaz, por exemplo, cria espécie de True Detective dos mendigos birituns numa história, cheia de recursos, de traição, espionagem e morte. Eduardo Belga tem aqui um de seus trabalhos mais impressionantes em quadrinhos, levando o conceito de “porre” para além de qualquer limite, num texto que nada deve a um Pedro Juan Gutiérrez. No final, esmagados pela night de sexo dantesco, pela consciência moral e pelo excesso de “Ph de buceta”, o leitor é esmigalhado junto com autor e personagens.

O quadrinista Victor Bello traz a melhor contribuição da revista, “Mijo de Cristo tem poder”, possivelmente uma das histórias mais profanas jamais publicadas. Com quadrinização minuciosa e bem feita (digna de um Daniel Clowes bananense), o autor conta a história de um padre que faz uma cachaça com o mijo de Cristo. Os detalhes são escrotérrimos, com gags infames em timing perfeito. Vale mencionar ainda a boa contribuição do americano Josh Bayer, que, numa história rabiscada e um tanto preguiçosa, recobra aleatoriamente sua relação com festas regadas a bebida e com o álcool em si. Segura o suficiente para trazer mais consistência à revista, que poderia dispensar algumas pin ups e outras histórias curtas e rasas que são puro filer. Mesmo assim, vale tomar uma cerva pra celebrar.

Know-Haole Nº 2Diego Gerlach (Vibe Tronxa, 2013, 14 p.): Gerlach é um quadrinista punk e sua linguagem é a da mais pura malacaiagem das ruas, uma coisa febril e violenta, onde os personagens parecem estar sempre sob efeito de tóxicos estimulantes, noiados e sem rumo. O leque de referências aparece por toda história dos quadrinhos e desenhos, com paródias de Droopy, Dick Tracy e Disney, passando por coisas mais underground. Gosto de dizer que ele dá a mesma pala crackeira do Gabriel Góes e seu irrefreável Kowalski, e também que me lembra a dupla espanhola Gallardo e Mediavilla, de Makoki, algo extraído diretamente da estética alucinada dos anos 80. E esta década é referência para Gerlach. Suas histórias são de encontros fortuitos e desvairados nas ruas, com tipos urbanos bizarros, linguagem de mala e abreviações de internet, e muito de suas qualidades está em embaraçar estas referências todas num estilo inconfundível.

Know-Haole 2 traz algum do seu melhor material, com as histórias entrecruzadas de Gilso, um cachorro de rua que se fode numa treta com outro mendigo; e a de Charlindo, um pato loser que tem um colapso nervoso ao tomar um choque elétrico. A história funciona como um furacão alucinado de visões turvas e impressões doentias das coisas. Mas atenção: é quadrinho de rua, é quadrinho de doidão. Sem pudores por aqui.

A Última Bailarina – Guilherme de Sousa (Korja dosQuadrinhos, 2014, 52 p.): não é que este seja um trabalho especialmente ruim. Ele tem algum carisma e um conceito: três personagens pitorescos (um ursinho de pelúcia machão – onde eu vi isso? –; uma garota bailarina abobalhada e ingênua; e um unicórnio efeminado) precisam resistir a um apocalipse zumbi. Os desenhos são “fofos” (ainda que muito pobres em composição e cenário) e algumas gags funcionam (ainda que com problemas de ritmo), mas os problemas se sobrepõem: primeiro, QUEM aguenta mais histórias genéricas com zumbis, seja em chave de ironia ou não? Segundo: personagens grosseiramente estereotipados, sem se definirem enquanto adultos ou infantis. Terceiro: cacoetes de animação, com uma história que anda em círculos procurando preencher o espaço de 15 minutos de duração. Enfim, por quê lançar um livro luxuoso, com boa impressão e gramatura, com este material, eu tenho minhas dúvidas. 

Rapidíssimas (zines):

GaiolaMorgana Mastrianni

(Independente, 2013, 12 p.): misturando influências de expressionismo e teatro kabuki, a autora tece uma intrigante narrativa muda sobre máscaras (literais e metafóricas), tangendo o inconsciente feminino em eficiente simbolismo em quadrinhos.

Re/Forma – Luís Aranguri (Aparato/Independente, 2014, 10 p.): o quadrinho abstrato ainda é uma novidade conceitual no Brasil, mas o trabalho (simples e efetivo) de Luís Aranguri inspira a imaginar (guardadas as proporções) o que Kandinsky ou Mondrian poderiam ter pensado sobre o meio. Aqui, o autor provoca um esfacelamento gradual do espaço em quadrinhos a partir do próprio uso da leitura sequencial e de seus recursos, produzindo um quadrinho que se autossabota, um antiquadrinho.

Pirata Perna Curta

Nº 1 – Chico, Thiago Fagundes, Lucas Feat, Mayra (Pirate Books/Independente, 2015, 14 p.): à parte um bom conto cáustico de Lucas Feat, o material desse zine parece coisa de iniciante, um tanto insípido, lembrando tiras amadoras de Facebook, com pin-ups dispensáveis e quadrinhos muito destoantes entre si. A intenção é um espírito meio Mad, mas o resultado tá mais pra Will Tirando.

Quer Dançar? – Guilherme de Sousa (Independente, 2013, 32 p.): uma história muda e amalucada que envolve sexo casual, um feto largado no esgoto e a proliferação de uma raça de homens-crocodilo num estilo meio Marcelo Cassaro funciona muito melhor do que a empreitada mais “ambiciosa” do autor (acima). Eis o caminho. 

Geração Q: os novos quadrinistas brasilienses

por Ciro I. Marcondes

fotos João Luiz Marcondes

Brasília, minha cidade, definitivamente não é para principiantes. Acossada por chuvas violentas e incessantes no verão, que depois dão lugar a uma longa e sufocante seca que dura quase 6 meses, a cidade tem fama de inóspita, pouco prática, com pouca abertura a quem vem de fora, de difícil penetração. De fato, as dificuldades para se tomar contato real com Brasília vão além de um clima pouco convidativo ou dos endereços calculáveis, matemáticos, complicados para quem vem de cidades “orgânicas”. Por mais que recentemente a última geração de brasilienses esteja se mobilizando com grande esforço para tomar conta dos incríveis espaços da cidade, promovendo grandes festas abertas, gratuitas, com vibrante intensidade cultural (até o carnaval, antes insosso e deplorável, ganhou força e levou milhares de pessoas às ruas este ano), algo de misterioso ainda se preserva nos cidadãos brasilienses. Algo que penso pertencer a uma qualidade cultural intrínseca, rarefeita, difícil de detectar, quase somente percebido pelos mesmos, pequeno segredo de uma etnografia ainda por se fazer.

Origens modernas

Falo não apenas de timidez ou de um caráter reservado (o brasiliense tem fama de recluso, antipático, mas creio que seja mais timidez mesmo), mas de todo um universo secreto, que vibra dentro dos apartamentos, das repartições e das instituições culturais da cidade. Trata-se de um universo que não se abre facilmente, autopoiético (isto é: faz sentido somente para si mesmo), o que faz da cidade um lugar paradoxalmente provinciano e ao mesmo tempo cosmopolita: o cidadão brasiliense pode se recolher em seu universo particular, mas viajou o mundo (física ou virtualmente), sabe o que faz sentido política e culturalmente nos tempos atuais, projeta sua expressão numa interface digital que o faz se reconhecer como cidadão de si próprio e ao mesmo tempo de lugar algum. Por mais orgulho que tenha de suas origens modernas, de viver sob a sombra de uma arquitetura arrojada, de se reconhecer em certa identidade geracional, ele é desde sempre cético, ecumênico, até laico.

De fato, o visitante que chegar aqui e procurar a civilização de uma cidade “orgânica” não vai encontrar nada além de frieza e vazio. Vai visitar a esplanada dos ministérios, ver monumentos estéreis, raciocinar qualquer coisa relacionando o poder público à assepsia coletiva, andar um bocado e não chegar a lugar algum. Mas isso não é Brasília assim como um cartão postal não é uma cidade. Como uma mulher à moda antiga (desculpem aí feministas), Brasília se oculta, requer que seja seduzida. O visitante que souber entrar nestes meandros, conhecer os detalhes idiossincráticos dessa maçonaria de brasilienses, vai provar deste cosmopolitismo provinciano, entender a cabeça de seus habitantes, será inevitavelmente convertido. Brasília foi formada, como se sabe, por visitantes de todo o País, e assim continua sendo. Brasília é seus estrangeiros, catequizados. 

Brasília: seca e solidão

Apesar da gentrificação crescente da cidade, motivada por um cartel da especulação imobiliária (tornando-a superpovoada, violenta, vítima de mazelas metropolitanas), Brasília ainda pode ser reconhecida em suas formas culturais. Infiltrar-se no complexo sistema de relações interpessoais que encontramos por aqui requer, por exemplo, conhecer as alteridades da cidade demonstradas em um filme premiado como A cidade é uma só, do ceilandense Adirley Queirós. Ou em extremos musicais que passam longe do imaginário construído nos anos 80, como o rap de Gog ou o college rock do finado Prot(o), que segue vivo no coração dos brasilienses. É preciso entender um pouco como se mobilizam seus artistas plásticos, dramaturgos, atores, produtores culturais, poetas, DJs, pessoas que tracejam uma linha invisível de motivações que atravessam os muitos bares, cafés, cineclubes, galerias, parques e outros espaços que concatenam uma dimensão lúdica para Brasília.

Não surpreende, portanto, que, dos anos 2000 para cá, diante de uma renaissence cultural que vem sendo empreendida especialmente por gente jovem e disposta a chamar a cidade de sua, tenha florescido uma cena de quadrinhos em Brasília. Uma primeira leva, composta de gente que já se pode dizer veterana, acabou formando ao redor do chamado “complexo Laje” (uma casa na W3 Sul que serve de ateliê e escritório aos artistas) um forte de resistência em prol da ilustração e dos quadrinhos, gerando força em torno da marca “Samba”, que já rendeu várias publicações. Além dos três “samba boys” (Gabriel Góes, Lucas Gehre e Gabriel Mesquita), outros nomes interessantes vêm já ralando com quadrinhos há um certo tempo, como Evandro Esfolando e suas resenhas de shows em quadrinhos, André Valente e sua produção mezzo arté, mezzo paródica, ou Caio Gomez e o pessoal que fundou o Pimba, jornal em quadrinhos bem maneiro recém-lançado pelo “Sindicato” (outra “casa de artistas” na W3). O entusiasmo pelos quadrinhos vem de um consumo grande na cidade desde os anos 80 (que formaram essa galera) somado a uma libertação do curso de Artes Visuais da UnB em prol de um conceito mais amplo de arte, dentro do qual se incluem os quadrinhos. Assumir, dentro do curso de artes, o quadrinho como, digamos, uma “categoria primária” foi algo que foi construído de dentro para fora, a partir das demandas novas dos próprios alunos, o que faz com que hoje, por exemplo, um exímio quadrinista saído desta geração (Eduardo Belga) seja professor no Instituto de Artes.

Em 2013 tive a oportunidade de ministrar, dentro do curso de Comunicação na UnB, um curso completo sobre a História das Histórias em Quadrinhos, cujo programa se assemelhava mais ou menos a isso aqui. Poucas coisas em minha carreira como professor e pesquisador foram tão empolgantes quanto ministrar um curso de histórias em quadrinhos. São três as razões principais: primeiro, saber que você está trabalhando com um material cultural que é puro ouro: vasto, complexo, diverso. Em segundo lugar, saber que poucos sabem disso e que, para a maioria dos alunos, tudo apresentado se pareceria com o abrir de portas de universos inteiros de referências. Por fim, o modo alucinado e vívido com que fomos atravessando todas aquelas escolas de quadrinhos me fez não esquecer aquela turma e criar laços de amizade com eles e com sua produção.

Nesta turma, eu tinha alunos de cursos diversos: Cinema, História, Filosofia, Design, etc. Não posso me esquecer dos alunos dos outros cursos, especialmente os muitos de Comunicação, mas foram principalmente os alunos de Artes Visuais que deram caldo especial para aquela turma, por um motivo muito simples: eles faziam e queriam fazer mais quadrinhos. Obviamente seria arrogante eu dizer que minhas aulas deflagraram o processo todo em que mais de dez dentre aqueles alunos passaram a publicar quadrinhos com regularidade, fossem na forma de zines, fosse na Internet, fosse em outras plataformas (publicando com a geração anterior, inclusive). O fato é que as aulas serviram para congregar estes artistas semana após semana em torno do universo dos quadrinhos; serviram para catalisar o entusiasmo pelo ofício; serviram para configurar uma protocena que, hoje, um ano depois, se solidifica através de feiras de quadrinhos (há pelo menos uma por mês na cidade), projetos no Catarse, reportagens em revistas e jornais e, é claro, amadurecimento autoral e empreendimentos mais ambiciosos. Um exemplo disso é a grande popularidade da tira Batata frita murcha, cujos quatro integrantes pertencem a esta “Geração Q” (adoro dar nomes a essas coisas). Todos frequentaram minhas aulas. A tira, difundida via redes sociais, pode pecar por um certo pieguismo (vá negar!), mas é bastante original: cada um dos quadrinistas publica em um dia na semana, com uma cor específica, momentos frustrantes, insights ínfimos, pequenas delicadezas e afecções do dia-a-dia. Apesar do mote comum (que dá liga e unidade ao projeto), cada artista consegue, com histórias mínimas, manter a sua integridade autoral. Já tem mais de 23 mil fãs no Facebook, e contando.

É por isso e por outros motivos que posso dizer que: 1) sim, há uma nova geração de quadrinistas produzindo material autoral em Brasília, e esta geração se mescla com a imediatamente anterior, configurando uma cena que parece sólida (a ver), com certeza uma das mais férteis do Brasil. E, 2) posso afirmar que, diante deste cenário, a partir dos anos 2000, entender Brasília passa também por entender seus quadrinistas e a arte dos quadrinhos em geral, que já afirmei ser a mais importante para o século XXI. O quadrinho tem a virtude exclusiva de configurar o texto literário com a qualidade plástica, indiscernível, das imagens, produzindo um tipo de leitura de um hibridismo que é pura dinamite narrativa (Flusser diria: leitura em linha e de superfície ao mesmo tempo), em que o autor pode reinventar o meio a cada diferente investida. Logicamente, a capacidade que um meio como este tem de expressar a dimensão cultural profunda de uma cidade é muito grande. Brasília, a cidade que se vela, se revela por meio da melancolia, do experimentalismo ou da agressividade destes quadrinhos. Como a cidade que lhes abriga, estes quadrinistas não fazem arte de fácil deglutição, e por vezes se escondem por trás de aparente vacuidade. Para que eles possam se explicar, resolvi então convidar os quadrinistas desta novíssima Geração Q para responder quatro perguntas relativas ao mercado e à arte dos quadrinhos, precedidas por um comentário meu sobre a arte de cada um, ressaltando suas qualidades. Convido o leitor, pois, a conhecê-los. São sete entrevistas. Vá pela sombra.

As perguntas:

1 – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

2 – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

3 – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

4 – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

As respostas:

Lo-Fi Pedro D’Apremont

Lo-Fi é o nome da empreitada de Pedro D’Apremont, o mais rabugento, antissocial e irascível quadrinista desta geração. Com um traço carregado de personalidade, indefectível a cada nova produção (influência de indie comics, coisas como Seth e Dan Clowes), seus quadrinhos são os únicos no Brasil a misturar elementos como sátiras de black-metal, pós-música e deuses nórdicos obscuros em histórias de terror, além de putaria e sarcasmo. Pedro tem o mérito de manter um cast fixo em seus gibis, dando continuidade às histórias, com personagens absurdos e carismáticos, como o deus-doidão Shiva, um pé-inchado de moletom sem calça (ou seja: nu na parte de baixo) tocando o terror por onde passa. A segunda edição da Lo-Fi é de um primor tão grande que nem parece um zine. Corra atrás. (CIM)

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Pedro D’Apremont – Faço quadrinhos independentemente se isso é uma atividade rentável ou não, faço HQs porque sempre amei lê-las e sempre tive vontade de contar historias de um jeito gráfico. Além do mais, quadrinhos são um meio artístico de baixíssima responsabilidade financeira. Os materiais usados nos desenhos são geralmente muito baratos, você não precisa contratar outras pessoas para te auxiliarem, você pode reproduzir seus gibis em “xeroxes” que cobram 10 centavos por impressão... Apesar de você não conseguir viver de quadrinhos, pelo menos é possível você não gastar quase nenhuma grana fazendo-os, ao contrário do que acontece em outras formas de arte como cinema, escultura ou mesmo música. Mesmo quando a sua intenção é fazer um produto mais “profissional”, por assim dizer, o custo desse objeto, seja ele um gibi ou um livro, será muito mais barato do que, digamos, um disco ou um longa-metragem.

Deuses nórdicos e black metal

A trava que enfrentamos no mercado brasileiro agora não se deve a uma falta de qualidade ou variedade de trabalhos que temos aqui dentro do país, mas mais a uma falta de editoras de grande e médio porte que publiquem obras de cartunistas autorais e talentosos em grande tiragem e com boa distribuição. Enquanto contarmos apenas com a Quadrinhos na Cia (da Companhia das Letras), a Zarabatana e a Conrad, não teremos uma catálogo grande de quadrinhos acessíveis ao grande público, disponível em varias lojas distribuídas pelo país inteiro. Da mesma forma, enquanto os quadrinhos publicados em larga escala oferecerem um espectro limitado de temas, gêneros, traços e narrativas, o grosso da população brasileira ainda tratará essa forma de arte como mero entretenimento descartável e serializado.

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Shiva: doidão

Pedro D’Apremont – Essa é difícil! Hehehe. Acho que eu tento sempre dialogar com aspectos aparentemente contraditórios nos meus trabalhos: quero que minhas historias sejam bem-humoradas, mas que tratem sobre assuntos pesados ou perturbadores ao mesmo tempo; que sejam simples, mas que possuam algum tipo de informação ou mensagem que não esteja visível se lidas de um jeito superficial. Acho que justamente por causa dessas intenções meu traço fica entre o cartunesco sintético e o realismo, sendo esse realismo bem relativo, hehe.

Talvez por isso eu goste tanto dos quadrinistas americanos independentes, ao estilo do Daniel Clowes, Robert Crumb e outros caras como Joe Matt e o Seth. Eles conseguem balancear todo drama, peso e seriedade dos seus quadrinhos com humor sutil e um pouco de de autoironia. Mesmo quando eles fazem alguma historia escrachada (principalmente o Crumb), eles conseguem dosar o humor no nível certo pra que o resultado não seja um besteirol tosco. O foda é que eles fazem isso parecer a coisa mais fácil do mundo! 

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Pós-música

Pedro D’Apremont – Dentro dos quadrinhos gosto principalmente da cena independente norte-americana. Parece que desde o final dos anos 80 houve uma onda forte de cartunistas maravilhosos que nunca acabou ou ameaçou entrar em hiato. Adotei o Daniel Clowes como meu mestre supremo já há algum tempo, mas ando lendo muita coisa de gente como Charles Burns, Noah Van Sciver e de alguns canadenses como o Seth (que eu já mencionei) e o Chester Brown. Fora isso, muitos amigos e colegas meus como o Góes e o André Valente, junto com os caras da Gibi Gibi e da Revista Samba têm me influenciado muito e me forçado a trabalhar cada vez mais e melhor. Principalmente a dupla Góes e Valente têm uma qualidade de desenho, traço e humor que eu invejo e aspiro a alcançar. É interessante ver o quanto o quadrinho brasileiro renasceu e adquiriu uma riqueza e refinamento em tão pouco tempo! Acredito que nós temos alguns dos melhores cartunistas e algumas das melhores publicações do mundo hoje em dia, assim como já os tivemos no passado, na geração do Angeli e do Laerte.

Alguns gêneros musicais como Black Metal, Noise, Dark Ambient e Punk também me inspiram e me ajudam a entrar no clima de algumas das minhas historias. A temática tratada nas letras desses estilos (principalmente sexo e violência) e a forma como esses temas são tratados também tem a ver com o que faço nos meus quadrinhos.  Tenho a impressão que grande parte das coisas que fiz nos meus gibis foram movidas por uma tentativa de recaptar um sentimento ou uma sensação que tive quando assisti um filme ou ouvi algum disco. Com música isso ocorre de um jeito quase imediato, pois quase sempre trabalho ouvindo algum álbum no som do escritório aqui de casa, mas lembro, por exemplo, que fiquei vários meses obcecado com Twin Peaks (tanto o seriado quanto o filme, mas principalmente o longa-metragem). Por muito tempo tentei reproduzir as emoções que essa obra me passou, às vezes procurando outras coisas que me trouxessem esse sentimento de volta, às vezes tentando passá-lo para os meus próprios quadrinhos. Isso é só um episódio, mas durante toda a minha vida eu passei por situações onde fui arrebatado por algo que eu não conseguia botar em palavras e tentava resgatar esse algo fazendo um desenho solto ou uma historia. De certa forma é sobre essa relação entre arte e nostalgia que a HQ “Érico”, que eu fiz pra Lo-Fi 2, fala. Se eu consegui me expressar bem ou não, isso já é outra historia, hehehe.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Pedro D’Apremont – Vejo o quadrinho como uma forma de arte como qualquer outra, e não como sub-gênero da literatura ou das artes plásticas. Acho que se os cartunistas, assim como os editores, tratassem as HQs como expressões artísticas autônomas, que não devem nada à prosa, as chamadas “narrativas gráficas” e “romances gráficos” seriam tratados com muito mais respeito, principalmente no Brasil.

A Ética do Tesão na Pós-Modernidade e Garota Siririca LoveLove6

É possível que você já conheça o trabalho de Gabriela Masson ou seu codinome, Gabi LoveLove 6. Ela certamente é a garota produzindo quadrinhos mais conhecida de Brasília, já despontando com seu estilo minimalista, de poucos quadros, mensagens subliminares e linguagem onírica abordando o mundo da sexualidade e da afetividade em seus dois volumes do zine

A ética do tesão na pós-modernidade.

Porém, é com a série Garota Siririca, publicada no portal da Revista Samba, que ela se projetou nacionalmente. Fortemente engajados em um feminismo que procura libertar através de um conhecimento completo do corpo feminino, os quadrinhos dela são monocromáticos, visualmente didáticos, mas charmosos, encantadores. Seus temas demolem tabus, cobrindo cada aspecto da sexualidade feminina, e às vezes resvalando também em pequenas narrativas próximas a Dykes to watch out for, de Alison Bechdel. Seu trabalho mais emocional, cheio de sutilezas, pode ser visto também em Batata Frita Murcha. (CIM)

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Gabi LoveLove6 – Pessoalmente creio que os quadrinhos sejam uma poderosa ferramente de comunicação e atualmente são o meio pelo qual melhor expresso o que desejo comunicar ao mundo. Percebo que graças à Internet, em especial às redes sociais, o consumo e contato com quadrinhos tem aumentado, possibilitando, por exemplo, cada vez mais projetos a serem financiados coletivamente em plataformas como o Catarse. Essa barreira entre quadrinhos e arte tem se flexibilizado cada vez mais a partir de experimentações narrativas e gráficas dentro do suporte dos quadrinhos. Mais lentamente, o tema tem sido introduzido na academia em áreas de comunicação e artes visuais. Acredito que sejam necessárias mais pesquisas sobre quadrinhos no ambiente acadêmico. Também uma maior produção de quadrinhos independentes e nacionais para maior expressividade do mercado frente à indústria de quadrinhos. Uma formação e mentalidade mais empreendedora dos próprios autores é necessária para que possam articular melhor sua circulação e construção no mercado independente em relação ao público, distribuidores, editores, produtores...

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Gabi LoveLove6 – Quadrinhos autobiográficos, sobre sexualidade, relações interpessoais e sentimentos, sob uma perspectiva feminista. Meus quadrinhos orbitam em volta destes temas. Graficamente as experiências variam de acordo com a circulação, público, temática que viso para cada projeto. Escolho abordar estes temas pois acredito que tenham importância política e que possam estimular reflexões acerca das circunstâncias sociais em que estamos submersos.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Gabi LoveLove6 – Atualmente consumo especialmente quadrinhos, fanzines e outras publicações independentes e nacionais. Também consumo livros de educação com abordagens feministas ou políticas, como os dos autores Guacira Lopes Louro e Paulo Freire. Os quadrinhos de colegas e autores de possível contato direto me influenciam fortemente especialmente em relação às experiências e métodos gráficos que utilizo na minha produção. As pesquisas em educação e política me ajudam a desenvolver as temáticas que aprecio.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Gabi LoveLove6 – Penso que, a depender da narrativa e visualidade de um determinado quadrinho, as barreiras que dividiriam este meio de outros, legitimados pelo mercado de arte, se tornam nebulosas e podem ser ultrapassadas. Porém, os autores não estão especialmente preocupados em serem acolhidos por este mercado específico, uma vez que existe um menos expressivo porém crescente mercado voltado aos quadrinhos e publicações independentes. Creio ainda que possuam preocupações acerca de desenvolver um trabalho artístico que gere reflexão e experiência sensitiva tanto quanto os artistas legitimados pelo mercado.

Lovelove 6: sutilezas

Cesariana – Lucas Marques

Lucas Marques é um caso único na HQ brasiliense de hoje em dia. Ele escreve e desenha um romance gráfico autobiográfico, fortemente influenciado pela escola indie americana (Charles Burns, Craig Thompson, etc.) que vem sendo publicado na forma de um zine muito caprichado em fascículos, Cesariana.

Delicada e ao mesmo tempo sombria, a história toca a trajetória de três adolescentes num cenário típico de classe média baixa brasiliense, com surpreendente maturidade narrativa e questionamentos de ordem filosófica (a existência de Deus, o valor do Bem, fronteiras éticas, growing pains, etc.).

Lucas pretende concluir a história em 5 edições e estamos prestes a ver nascer a terceira. Esperamos que o ótimo nível se mantenha.(CIM)

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Lucas Marques – Se eu fosse me ater a um retorno econômico certamente eu não escolheria o quadrinho como profissão. Porque além de exigir muita dedicação e tempo no processo, não são muito valorizados no mercado brasileiro e muitas vezes nem em outros países mais culturalmente abrangentes. O que me leva a insistir nessa forma de expressão é uma espécie de sentimento de fidelidade. Os quadrinhos são os responsáveis por me fazer despertar interesse pelo mundo e pela arte. Antes do meu envolvimento com os quadrinhos eu não tinha muitas coisas que me estimulassem a querer fazer algo. Mas nessa forma de linguagem eu encontrei algo muito essencial, algo que se adequava perfeitamente ao que eu julgava ser a minha forma de expressão. Me atrai muito as possibilidades do que posso fazer com imagens e palavras, é como se eu tivesse uma liberdade expressiva ilimitada e isso é muito estimulante para mim. Embora, eu também tenha muito interesse por animação e cinema.

Acho que para que o quadrinho adquira esse status de arte ou uma maior relevância no mercado - que ao que me parece tem acontecido, embora bem ao poucos - é preciso amadurecer o que se entende por essa forma de expressão, tanto o público, quanto os editores e até mesmo os próprios autores.  Aqui em Brasília, onde moro, parece que se você não está estudando para um concurso ou se iniciando numa profissão mais prática e de retorno financeiro imediato, você é uma espécie de idiota. Não estou dizendo que o que essas pessoas pensam a respeito disso não têm qualquer fundamento e que elas fazem isso por pura maldade, isso é apenas um reflexo do que a dinâmica socioeconômica lhes impõe. O fato é que geralmente se tem uma ideia muito limitada do que é cultura e da importância que ela tem na nossa sociedade. Em algum lugar que não me lembro onde ouvi dizer que a etimologia da palavra “cultura” está ligada ao processo de cultivar o plantio, preparar a terra, as sementes e esperar que ela dê frutos. Assim, temos que entender que cultura é algo indissociável de tempo, de amadurecimento. Se o nosso mercado econômico e o nossas políticas entendessem e valorizassem esse processo, acho que os artistas não teriam tantas dificuldades de sobreviver nesse meio.

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Lucas Marques – Não sei definir o tipo de quadrinho que faço, consigo identificar algumas influências nele, mas não saberia defini-lo. Acho que essa parte de classificação, definição e identificação de tendências deve vir mais pela crítica e pelo público do que pelo próprio autor. Ao menos eu, em meu processo criativo, busco me desvencilhar de classificações, muitas vezes só vou descobrir depois o porquê do que fiz. Como sou um autor iniciante ainda estou buscando desenvolver e amadurecer meu estilo, acho que ele ainda está em processo.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Juventude brasiliense

Lucas Marques – Busco consumir todo tipo de bem cultural que me leve a um experiência estética interessante. Os que mais tenho acesso são livros, quadrinhos, filmes e música. Geralmente nos livros, quadrinhos e filmes eu vou buscando por meio dos autores e diretores, e na música pelo gêneros e músicos que me agradam. Na literatura eu gosto muito dos clássicos, embora me falte muita coisa para conhecer, tenho um apreço muito grande pela literatura russa. Dos escritores contemporâneos que posso dizer que conheço alguma coisa, gosto muito de Gonçalo M. Tavares: é um escritor que adquiriu um prosa muito concisa e segura e um olhar muito sóbrio para as coisas que descreve. Nos quadrinhos o que mais leio são os formatos graphic novel e autobiográficas, mas procuro conhecer um pouco de tudo, embora tenha um bloqueio muito grande em ler super-heróis. Tanto no cinema, como na literatura e nos quadrinhos que são meios que lidam com a narrativa, o que eu busco é  alguma originalidade ou inovação na forma de se narrar e apresentar eventos ou ideias. Acho que o cinema influenciou muito minha forma de lidar com a narrativa, porque por muito tempo me envolvi de uma forma ou de outra com essa área, fazendo storyboard, direção de arte ou mesmo só assistindo. Aprendi a escrever roteiro no modelo cinematográfico e é o modelo que também venho usando nos quadrinhos, pelo menos os mais longos. E no “Cesariana”, meu quadrinho em produção, me baseei muito em vídeos de skate que via na adolescência.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Lucas Marques – Uma coisa que observei e aprendi durante o meu curso (Artes Plásticas) é que o termo “arte” na forma como utilizamos não é nada além de uma espécie de carimbo para qualificar algo, atribuindo-lhe um status social. É uma palavra que empregamos para legitimar ou não um tipo de material criado dentro de nossa cultura. Penso no quadrinho simplesmente como um meio, um meio de se transmitir algo com uma quantidade de recursos ilimitada, mas com suas especificidades, como em qualquer outro meio. Embora ele também possa ser diversas outras coisas, entre elas arte.

Pequi – Taís Koshino e Lívia Viganó

O trabalho constante e cada vez mais misterioso desta dupla de autoras recebe as recompensas e sofre com as intempéries de se fazer quadrinhos extremamente experimentais. Carregados de non-sense, minimalismo pueril (doodling), tiradas sarcásticas e coisas que se parecem com algo que Liniers faria após um colapso mental, os quadrinhos destas garotas passam por experiências de linguagem, trocas sensoriais, jogos de palavras, ou puro e simples mergulho no absurdo. Podem ser encontrados em vários zines publicados desde 2011 (incluindo Pequi 1 e 2), e também em um site muito maneiro com várias séries online. Para alguns leitores, o tom autista das tiras pode levar desde ao desdém até à mais legítima revolta. Eu, no entanto, recomendo fortemente a tira Vida difícil. Certamente é uma das coisas mais lúdicas produzidas por aqui. (CIM)  

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Taís Koshino e Lívia Viganó – Por que tentar outra carreira? Para nós, seguir fazendo quadrinhos é um risco necessário.

O interesse por quadrinhos no Brasil, com a chegada das graphic novels, tem aumentado, as produções têm crescido, estão surgindo novas feiras e festivais voltados para a produção independente (onde realmente há possibilidades de algo novo). É assim, aos poucos que vamos avançando.

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Taís Koshino e Lívia Viganó – Não sei defirnir os quadrinhos que faço, eles surgem a partir de uma angústia de dizer e produzir algo. (Taís) O estilo às vezes se estabelece como uma resposta à narrativa.(Livia)

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Taís Koshino e Lívia Viganó - Recentemente entramos em contato com vários quadrinistas diferentes, variados formatos de zine. É sempre bom estar aberta a novas referências, sejam elas pinturas, quadrinhos, enquadramentos num filme, ou a própria vida. (Taís e Livia)

De quadrinhos, estou pirando mais num finlandês, o Roope Eronen, e no Yuichi Yokoyama, um artista japonês do alternative manga. (Taís)

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Taís Koshino e Lívia Viganó - Quadrinhos são arte.

Pequi: pegada dadaísta

Vudu Comix – Mateus Gandara, Heron Prado, Vitor Vitali

A Vudu Comix é um selo de quadrinhos voltados principalmente para o insólito, o horror, o humor negro e o fantástico. É uma das únicas iniciativa de “gênero” na HQ brasiliense contemporânea. Quem encabeça esta empreitada é Mateus Gandara, um quadrinista de traço vigoroso e sutileza poética, que melhora a cada produção lançada. Há um salto, por exemplo, entre os rascunhos de lirismo intimista em As sessões, o senso de aventura e horror gótico tresloucado em Flagelos Noturnos e a dimensão existencial primitiva, quase religiosa, em Mondo Colosso, seu melhor trabalho.

Sendo um dos desenhistas de maior personalidade da cidade, ele cada vez mais avança também na sofisticação narrativa, dispensando balões e transformando a leitura de seus quadrinhos em um processo de deslindar as possibilidades visuais de seu trabalho.

Por mais que a Vudu hoje conte apenas com a presença de Gandara, ela já teve outros colaboradores. Heron Prado, dono da tira mais non-sense e ácida do Batata Frita Murcha, é um ilustrador caótico, de desenhos rascunhados e cheios de hachuras, bom para histórias de bas-fond perturbador, caso da recente Breve, ou de suas próprias tiras publicadas no portal da revista Samba, a série Futuro de pretérito, um inventário de situações absurdas e possibilidades surrealistas. Outro nome de destaque que colaborou com a Vudu é o do roteirista Vitor Vitali, um dos mais novos nessa galera. Ele escreveu tanto Breve quanto Mondo Colosso, a primeira com pegada noir terceiromundista, e a segunda com visão mais holística, cheia de recursos de perspectiva e ponto-de-vista, aprofundando-se em possibilidades narrativas. Tem potencial, especialmente pela parca quantidade de roteiristas especializados em quadrinhos hoje em dia no Brasil. (CIM)

A colossal

Mondo Colosso

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Mateus Gandara – Particularmente, não pauto minhas escolhas de acordo com as consequências que elas podem acarretar. Já fiz isso durante um longo tempo, talvez durante toda a minha vida. Não faço isso mais. No ano passado, estive muito próximo de encerrar minha temporada nesse mundo, e isso me fez reavaliar minhas prioridades. Entre elas, quais concessões deveria fazer, no tempo que me restasse, e quais não. Nunca mais abrirei mão de fazer o que eu gosto por qualquer outro motivo que não seja o da sobrevivência, ou da manutenção da minha felicidade. Depois do amor pela vida, pela humanidade e pelo Led Zeppelin, tem o amor aos quadrinhos. Abaixo disso está todo o resto. Tenho tempo, vontade e recursos. O que me impede de só fazer o que eu gosto nessa vida tão breve? O julgamento alheio? Meu próprio julgamento? Foda-se o julgamento! Viver está além disso. E eu estou vivo. “Não me comprometo, nem mesmo em face ao armagedom!”

E tem mais: se os quadrinhos ficarem entre eu e a minha vida, fodam-se os quadrinhos também!

Para que os quadrinhos se estabeleçam no Brasil - cultural e economicamente - é preciso, nesse momento de pioneirismo, que venham à tona o máximo de quadrinistas que for possível. Todos eles, eu diria. E com coragem. É preciso que os desenhistas parem de ficar batendo punheta em casa - com seus caderninhos de desenho geniais que só os amigos veem, com seus blogs que nunca são atualizados, com suas histórias de amor e suas tragédias particulares - e comecem a desenhar aquelas histórias incríveis que eles pensam há anos, escrever aquele roteiro genial que você contou pra teu amigo deixando ele com fogo nas calças, sentar com outros quadrinistas e aprender como se faz um quadrinho, ensinar a fazer, montar um pdf, fazer um orçamento numa gráfica e imprimir um quadrinho! Eu garanto que poucas coisas são tão emocionantes na vida de um desenhista, do que ver uma história tua impressa. Ainda que seja curta. Ainda que você não tenha dado todo o sangue. Mas tá lá. E aí não tem mais volta, você vai querer mais. E então a gente começa a formar um público. Daí, um mercado.

A(o)s punheteir@s, reitero que o que eu disse anteriormente foi dito com todo o amor que posso lhes transmitir, do fundo do meu coração. De um punheteiro para o outro. O primeiro passo para deixar de ser um punheteiro, é reconhecer-se como tal. Sem julgar, só reconhecer. É isso que tu é, um descascador - uma máquina de procrastinação. E está tudo bem. Quem nunca procrastinou que atire a primeira pedra. Mas só que tu sabe desenhar e escrever, e gosta disso. E acha que é bom nisso. Então seja o punheteiro que escreve e desenha. Não julga, só faz. E faz porque gosta, não porque acha que é bom. Isso vem depois. Continua, desenha até o fim, nem que seja uma história de uma página só! Imprime, distribui. Sem nunca julgar, mas ouvindo as críticas com atenção. Vai desenhando, vai fazendo outras histórias, outras maiores. Então o processo começa a te consumir. E aí vai ficando menos deprimente ser um punheteiro. Tu até tira um tempo pra uma punheta, porque então você até precisa de uma! Depois você vai numa gráfica qualquer e imprime umas 100 cópias da tua revista. Nem começa com o papo da grana! Vende tuas revistas. Pronto!

Flagelos Noturnos

E então você passa a ser uma pessoa saudável, que faz o que gosta e que pratica uma atividade sexual perfeitamente saudável e comum, nas horas vagas. Quem sabe não se assume um quadrinista? Quem sabe até não melhora tua vida?

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Mateus Gandara – São quadrinhos narrativos lineares, a princípio, que contam histórias com início meio e fim, e com esmero visual - tendo em vista minhas influências e os mais de dez anos de estudo de desenho.  São quadrinhos com argumento enxuto, que dão maior enfoque às sensações que ao discurso. São dinâmicos e soturnos. Tematicamente, sinto que ainda não me defini completamente, mas seria algo abrangendo fantástico/sci-fi/terror/drama. Tenho vários outros projetos em gêneros diversos, com temas mitológicos, policiais e documentais, mas ainda não os botei na lenha, portanto não posso definir qual seria meu gênero predileto. Isso é até um tanto irrelevante, na verdade. Adoro todos os gêneros narrativos, e pretendo explorar todos eles. Pra mim, uma história tem que ser bem contada, independente do gênero, e que tenha nela algo de vivo, que nos faça sentir vivos, ou que nos atente pra vida. Que pulse por si, como algo vivo.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Mateus Gandara – Minhas maiores inspirações para os quadrinhos, na verdade, estão no cinema. Gosto de quadrinhos que têm aspecto de filme. Gosto de síntese; de questões complexas resolvidas em gestos, situações, imagens ou com poucas palavras. Gosto do charme dos filmes europeus pós segunda guerra, e da intensidade do cinema norte americano dos anos setenta. Atualmente está difícil de gostar de cinema (no que faz referência aos quadrinhos), os EUA estão muito repetitivos! Gosto de filmes românticos. Simplesmente amo tudo do Hayao Miyazaki!

Tem o Masamune Shirow (Ghost in the Shell) e o Katsuhiro Otomo.

Considero Akira uma leitura obrigatória pra quem pretende fazer quadrinhos. Assistir ele também, várias vezes.

As sessões

Quanto aos quadrinhos, Frank Miller é incontornável; se você não vai a ele, ele vem até você. É uma das minhas primeiras referências em quadrinhos, com o Cavaleiro das Trevas e o Ronin, que eu li pela primeira vez quando tinha uns 14 anos. Alan Moore e Grant Morrison para  aprender a ser prolixo sem ser insuportável, além de suas histórias inesquecíveis – Watchmen e Grandes Astros Superman. Moebius, Dave McKean, David Mazzuchelli, Simon Bisley, Liberatori para inspirar o desenho. Neil Gaiman.

Lobo Solitário pra aprender a fazer quadrinhos, e ainda aprender alguma coisa decente para a vida. Acho o Eisner chato, apesar de sua importância para que a linguagem dos quadrinhos fosse elevada a um patamar de seriedade, em um contexto sócio/cultur... CHATO!! A não ser pelo Spirit! Spirit, sim!

A literatura é crucial para quem faz quadrinhos. Alguns autores como o Tolkien e o Asimov engrandecem muito a criatividade de uma pessoa. Adoro os livros do Mutarelli. Um deles, o Miguel e seus Demônios, me deu muita vontade de transformar em quadrinhos. Quem sabe? Tem o Cervantes, que dá uma aula de humor, dentre outras variadas qualidades da narrativa escrita. Saramago tem um estilo original (que é tipo escrever errado) que dá muita fluidez pra sua narrativa, e isso é muito importante nos quadrinhos. Gabriel Garcia Marquez, óbvio. Dashiel Hammett, Edgar Allan Poe, Jonathan Lethem e Chuck Palahniuk como maiores incentivos para os pretendidos romances policiais. Leio muito de mitologia grega e história antiga em geral. Nada é mais inspirador do que ler sobre as civilizações antigas. Sou apaixonado pela pré-história.

Em um primeiro momento, tudo o que um artista (qualquer pessoa, na verdade) consome, que seja de ordem cultural – livros principalmente -, irá ampliar as fronteiras de sua criatividade, irá expandir também sua capacidade imaginativa e apurar seu gosto por tudo quanto existe na vida, caso já não o tenha desperto. O que desperta aí é sua consciência - que é algo liberto e não algo inato. É adquirida por mérito. Uma vez desperta a consciência de um artista, tudo o que há - e muito do que não se sabe ao certo se há realmente - lhe servirá como base para a criação.

Acima de todos, eu tenho como a maior inspiração para a criação artística, quiçá para toda a vida, o filme Os Sete Samurais, de Akira Kurosawa. Ali está tudo o que eu pretendo enquanto artista, tudo em que eu acredito enquanto ser consciente e tudo o que eu considero importante saber sobre o mundo.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Eu não penso nisso. Mas tenho certeza que deve culminar em um acalorado ensejo intelectual pelo o qual eu não tenho o menor interesse. Não acho que “ser arte” ou não importe muito pra qualquer coisa que “seje”.

A arte de Heron Prado

Mês

– Daniel Lopes e Augusto Botelho

Escrever, editar e publicar um zine por mês. Com este foco em mente, Daniel Lopes e Augusto Botelho realizaram o empreendimento laborial mais extenso nos quadrinhos de Brasília em 2013.

Mês teve doze edições, cada uma delas com o nome do mês de lançamento. Em 2014, via Catarse, eles reuniram todos os zines em um box-set com coisas extras. A qualidade dos zines cresce a cada edição, sendo muito tímida e amadora no começo, e se tornando mais ambiciosa, experimental e autoral no final. Geralmente Mês traz vários convidados, alguns totalmente dispensáveis e outros que também estão listados neste texto. O que é vital para a identidade e sagacidade do zine, no entanto, é o trabalho de seus editores-quadrinistas. Daniel Lopes, um disciplinado desenhista interessado pela história dos quadrinhos, nos apresenta a ótima série Marco, o macaco do espaço, formatada em tiras à moda da era de ouro, com ecos de Flash Gordon e Planeta dos Macacos, sendo ao mesmo tempo homenagem e revisão destes imaginários. Esta HQ não é apenas space-opera de aventura ligeira, mas também revisão de ideias sobre solipsismo, psiquismo, política, história, etc. Seus desenhos são elegantes e simples, com ótimo design de personagens. Já Botelho, dono de um traço mais barroco, mistura de influência de BD adulta com HQ brasileira dos anos 80, faz transparecer estes aspectos também em seus temas. Sua principal contribuição é a história longa O aguardado, mostrando uma surreal aparição do Rei Sebastião nos dias modernos, como espécie de Ronin (Frank Miller) abrasileirado, ecoando o sentido político manifestado nos protestos de 2013. Uma dupla cuja maturidade artística ainda está em processo, mas que não deve parar de trazer novidades de agora em diante. (CIM)

Daniel Lopes

Marco: referência à era de ouro

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Daniel Lopes – Acho que o negócio mesmo é arriscar e fazer o que gosta. Levei muito tempo pra começar a fazer quadrinhos, justamente pela insegurança de arriscar, por não achar que está bom o suficiente, sobre o que é um bom desenho, etc. Aqui em Brasília, conhecia já alguns casos de pessoas fazendo quadrinhos mas acho que quem realmente arriscou foi a galera da Samba, e um somatório de coisas fez o projeto ir pra frente. A qualidade gráfica, das histórias, da impressão, a situação local. Hoje dá pra ver que o público está crescendo, tem mais gente também consumindo quadrinhos, gente que antes não consumia. E tem mais gente arriscando a fazer. Essas coisas já estão acontecendo, e aos poucos vamos avançando.

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Daniel Lopes – Faço quadrinhos há um ano apenas, acho cedo pra dizer. Mal comecei a me encontrar no tipo de história que quero fazer, ou o que quero dizer com elas. Na maioria das histórias curtas fico bastante na experimentação, testando a empaginação, adequando o desenho ao clima da história. A história mais longa que fiz foi "Marco, o Macaco do Espaço". Fui fazendo aos moldes das tiras clássicas, como Flash Gordon, e lançando em capítulos mensais. Gostei muito de fazer essa história e pude encher ela de referências, que vão desde desenhos animados e filmes de ficção científica que via quando era criança até teosofia e ufologia. Se pudesse resumir, diria que essa história é um mashup de várias coisas que eu gosto, não há nada de muito novo. Gosto dela também por não ser uma história que se leva muito a sério, acho despretensiosa. Agora no começo do ano participei do 24 horas de quadrinho, uma versão nacional do exercício proposto pelo Scott McCloud. Essa coisa meio louca de ir fazendo sem pensar muito acaba por te denunciar, você expõe suas falhas, fica muito claro pra quem conhece de onde você tá tirando a solução pras coisas. No meu caso, acho muito forte essa questão da referência, o que produzo está muito ligado com o tipo de coisa que consumo, seja no desenho ou no roteiro. Por um lado essa contaminação é produtiva, alimenta as ideias, mas tem de se tomar cuidado com isso e buscar uma autonomia.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Daniel Lopes – Sem dúvida influenciam. Leio majoritariamente quadrinhos, gosto muito de Moebius, Manara, Enki Bilal e esse pessoal da Heavy Metal/Métal Hurlant. Pra mim estão entre os melhores no desenho. Gosto também das histórias da geração britânica de roteiristas da Vertigo no final dos anos 80, Alan Moore, Neil Gaiman e Grant Morrison. Se pudesse, gostaria de escrever histórias entre essas duas vertentes. Leio também alguns mangás, hoje em dia menos, mas melhor selecionados. O fato de começar a fazer quadrinhos me fez procurar muito os independentes. O contato direto com o trabalho dos colegas sem dúvida é uma grande influência. A gente vai trocando ideia direto, conversando sobre o processo, é bastante motivador. É também uma realidade próxima da nossa, é gente começando também e tentando, testando. O contato com o público ajuda bastante a entender o que funciona ou não. Assisto muitos filmes também e leio alguns livros, a busca pela literatura é uma coisa recente pra mim. Mas pra mim essas referências são mais pro texto. Acho que muito da imagem dos quadrinhos tem essa influência direta do cinema e da televisão, nosso olho é bastante educado por essas imagens. As vezes acho que isso limita um pouco o que podemos fazer com os quadrinhos, por isso tenho tentado buscar mais referências na ilustração, que explorem os recursos gráficos.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Daniel Lopes – Tenho como formação as artes visuais, e dentro da academia há um senso comum de que quadrinhos não é arte. Arte sempre foi essa coisa elitizada, e a instituição acaba por dizer o que é arte ou não. O fato de quadrinhos ser um produto da indústria cultural só agrava as coisas, há sempre esse estigma de ser múltiplo, barato, descartável, e do outro lado todo o fetiche se constrói sobre a aura da obra de arte. Mesmo que na arte contemporânea muitas dessas questões sejam colocadas em cheque, ainda há esse pensamento conservador e segregador em relação ao que está fora e dentro da galeria. Parafraseando uma frase genial do Liniers, "se você faz quadrões é um artista sério".  É muito mais uma ideia fixa do que preconceito, visto que muitos dos professores do departamento consomem quadrinhos regularmente. Lembro de um episódio em que um professor falava sobre Winsor McCay e o colocava como "diferente" dos outros quadrinistas, como um "artista". Realmente McCay foi um autor que praticamente esgotou em termos de recursos gráficos na sua época, mas essencialmente o que faz ainda é quadrinhos, então se ele é um "artista" por que não dizer que faz "arte?". Acho que há sim grande parte da indústria de quadrinhos que considero descartável, como a maioria dos quadrinhos de super heróis e mangás shonen de hoje. É muito delicado fazer esse julgamento pois há várias questões de subjetividade e empatia do leitor com os quadrinhos que lê, e acabamos por repetir o mesmo crivo opressor da instituição. Mas há uma galera mais crítica que realmente explora a linguagem dos quadrinhos, que talvez se aproxime mais dessa discussão autorreferente das artes, como o Chris Ware, com Building Stories e David Mazzucchelli, com Asterios Polyp, pra citar alguns. Talvez esse seja o grande atrativo do mercado alternativo e quadrinhos autorais. Acho que hoje em dia é onde se acha mais coisas diferentes. Tem muita coisa boa surgindo por aqui, muita gente se publicando pela Internet, explorando os recursos gráficos no virtual e no impresso. Acho os zines FABIO, do André Valente e do Gabriel Góes, geniais, foram a minha escola da autopublicação. É interessante ver essa cena do zine ganhar força ao mesmo tempo que se utiliza de alguns recursos que conferem um determinado valor artístico pra coisa, como as impressões em papel diferente ou a tiragem numerada. Acho que gosto de como há um mercado que se sustenta pelas bordas do sistema, parasitando e ao mesmo tempo questionando.

Marco fritando

Augusto Botelho

Augusto Botelho – Antes de começar a responder as perguntas eu gostaria de deixar claro que a minha

 experiência com os quadrinhos, enquanto meio e enquanto mercado é bem recente, de pouco mais de um ano, e acho que boa parte do que penso a respeito de ambos ainda se encontra em um estágio bem inicial de amadurecimento. Se conversarmos com autores já mais experientes talvez muito dessa minha visão já seja algo passada ou ainda ingênua. De qualquer forma, o processo é esse de ir construindo mesmo e acho que é só trocando ideias que vamos construir uma reflexão maior sobre esses temas, então vamos lá:

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante dessas dificuldades, por que tentar essa carreira? O que você acha que tem de acontecer pra avançarmos nesses méritos?

Bom, a vontade de trabalhar com quadrinhos vem principalmente de uma paixão pela mídia nutrida desde moleque. Os quadrinhos se encontram entre os principais produtos que consumo e definitivamente são o principal motivo de eu ter continuado desenhando.

Existem vários extratos diferentes dentro do mercado dos quadrinhos. Talvez pra gente entender melhor seja bom fazer algumas distinções e olhar pra cada um separadamente. Existe um mercado comercial, representado principalmente por grandes editoras, que têm os recursos necessários para distribuir revistas por todo o país, ter publicações com regularidade fixa e etc. Essas grandes editoras detêm um certo monopólio do que é publicado e a esmagadora maioria do que lançam nas bancas são os quadrinhos estadunidenses de super-herói, mangás dos mais comerciais e afins.

Botelho: estilo barroco

Dentro desse mercado comercial existe também um pequeno grupo de editoras menores que têm publicado quadrinhos europeus, asiáticos e outros com uma pegada mais autoral, mas geralmente de autores clássicos ou já consolidados. Acredito que principalmente pelo fato dessas editoras não terem condição de distribuir na mesma escala que as maiores, elas têm focado os lançamentos em edições mais caras em capa dura ou de luxo para livrarias, atingindo a um público mais específico que vai de quadrinistas a estudantes universitários e pessoas mais velhas com uma estabilidade financeira maior e que já consomem quadrinhos. Então, apesar de darem uma diversificada no mercado, acabam ficando meio restritas pelo fato de que seus produtos não são muito acessíveis.

Existem também algumas publicações que vêm de editais públicos, mas tenho a impressão que é ainda uma iniciativa bem tímida por parte do poder público e que a maior parte das publicações são adaptações de clássicos literários direcionadas para uso didático em escolas.

E, por fim, existe a cena independente nacional, onde os autores não só fazem suas histórias, como editam a publicam suas revistas, vendem, distribuem e tudo mais. Costumam circular em feiras, organizadas pelos próprios autores ou entusiastas, e têm um contato mais direto com o seu público. Além de criarem redes entre os autores, que realizam trocas e fazem os trabalhos de uns e outros circularem através do País. Essa cena está passando por um momento muito rico, com novos autores e autoras surgindo a toda hora, em um movimento crescente da cena como um todo.

Ufa! Enfim, acho que o caminho mesmo é o de aumentar em todos esses nichos o espaço pra diversidade. Diversidade de autores, propostas, formatos e etc. É difícil furar o bloqueio das editoras, que dificilmente vão publicar autores que já não estejam consolidados, então acho que o caminho é a gente fortalecer cada vez mais essas nossas redes, tentar chegar em públicos diferentes e não se acomodar em pequenas zonas de conforto que possamos ter conseguido, ou venhamos a conseguir. Acho que nesse sentido iniciativas como a zine XXX são extremamente necessárias, para diversificar tanto os autores e trabalhos que circulam nesse meio, quanto o público que o consome. Em poucos meses de existência já deu pra sentir o impacto que foi a zine XXX e como ela realmente responde a uma necessidade que estava ali e que os autores (grifo no O) não estavam dando muita bola.

Talvez valha algum tipo de iniciativa conjunta dos autores para cobrar maior espaço dentro de investimentos públicos e afins, mas não sei quais seriam as perspectivas reais disso.

O aguardado

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por esse estilo?

Augusto Botelho – Acho que a minha experiência com quadrinhos ainda é bem pequena então não me sinto muito seguro pra afirmar que os quadrinhos que faço são de determinada forma ou definir um estilo porque não vejo isso como algo já definido neles. Estou ainda experimentando os tipos de desenho; composição; formas narrativas, descobrindo muitas coisas. Acredito que ainda tem muita água pra correr até eu realmente ter um estilo definido. De qualquer forma, desse um ano e pouco trabalhando com quadrinhos, algumas coisas já começaram a aparecer. No âmbito do desenho comecei trabalhando com um traço mais cheio de informação em desenhos com bastante tracejado e hachuras ou trabalhando com o pincel seco e lápis. Enfrentei algumas dificuldades quanto à clareza narrativa com tanta informação e passei por um processo de limpeza do traço. As últimas histórias foram feitas numa desenho mais linha clara, com algumas sombras em preto. No momento estou querendo juntar as duas coisas de alguma forma, voltar pro traço sujo, em especial o de pincel, mas tentar ser mais sintético e deixar áreas maiores de respiro.

Quanto à temática, até o momento meus quadrinhos têm ido por uma linha meio regional, meio fantástica, com alguma coisa de aventura. Inicialmente nos quadrinhos mais curtos fiz coisas relacionadas ao ambiente e à cidade onde vivo, e depois comecei trabalhando com adaptação de um conto do Cyl Gallindo, escritor pernambucano, o que me levou mais pra essa onda regionalista. Acho que estou variando entre essa pegada regional e uma outra de pequenas crônicas urbanas, relativas a essa experiencia da cidade. Coisas de paradas de ônibus, pichação, etc. Acho que o principal motivador dessas temáticas são as coisas que gosto e me influencio e as questões que acho importante trabalhar, eu tenho um envolvimento muito grande com o debate político (político num sentido amplo do termo, não apenas o universo de eleições, cargos políticos, etc) e acho que isso acaba aparecendo, de forma mais ou menos evidente, no meu trabalho.

Uma coisa que já percebi ser característica da minha forma de trabalhar é em geral fazer os desenhos, definir a composição da página antes de ter o texto. E várias ocasiões, em especial nas tiras do

Batata frita murcha, eu começo desenhando e o quadrinho vai se definindo a partir do desenho. O que o traço me sugere eu vou dando a forma e de um quadro pro outro o mesmo processo. Mesmo quando tenho uma história mais linear eu costumo ter em mente mais ou menos o rumo de pra onde as coisas vão, definir os thumbnails, desenhar e no final colocar o texto. É legal porque às vezes os desenhos acabam mudando o rumo da história ou ela se constrói a partir deles.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Augusto Botelho – Bom, depois dos gibis da Turma da Mônica, as primeiras coisas que peguei para ler foram quadrinhos de super-herói, que consumi durante bom tempo, então eles estão em algum lugar nas minhas referências com certeza. Volta e meio ainda vejo o que sai nesse mercado, mas olhando mais algumas séries fechadas do que as revistas mensais. Acho que um pouco do meu gosto por histórias de aventura e afins, que acabei fazendo, vem em parte daí. Mas, acho que minhas principais referências em quadrinhos são de quadrinhos europeus de autores como Hugo Pratt, Milo Manara e Moebius.   Dentro do cenário do quadrinho americano trabalhos como Sandman, do Neil Gaiman, e O Retorno do Cavaleiro das Trevas, do Frank Miller, foram marcantes. Acho que a maneira como o fantástico é trabalhado em Sandman é algo que me atrai muito, bem como nas histórias do Corto Maltese, do Pratt (em especial nas últimas). Vejo bem claramente n"O Aguardado" (meu primeiro trabalho longo e o que estou finalizando agora) essa pegada de misturar algo do campo das lendas dentro das coisas cotidianas. Tem uma série de quadrinhos do Manara chamada As Aventuras de Giuseppe Bergman (alterego do autor), que são especialmente marcantes por uma pegada bem onírica, fantástica, às vezes até surrealista e ao mesmo tempo uma certa ironia, um sarcasmo com relação ao próprio autor e à cultura ocidental que é um exemplo que tenho sempre em mente de como tratar questões políticas e ao mesmo tempo conciliá-las com uma tendência que é um pouco natural minha ao delírio. Gosto bastante também do trabalho do Oesterheld e do Breccia, na Argentina, mas conheço pouco ainda dos quadrinhos de lá, gostaria de conhecê-los mais.

Estando há um ano e pouco trabalhando e me inserindo dentro desse meio do quadrinho independente estou em um momento de muitas descobertas dentro da produção nacional, principalmente a atual e isso tem sido uma grande influência com certeza. A possibilidade de conversar com os autores, trocar referências, enfim, esse contato direto é muito frutífero. Temos conhecido muita gente massa com trabalhos incríveis nas viagens pra feiras em outros estados e a experiência tá sendo muito boa, muita coisa sendo digerida ainda, mas já dá pra citar aqui os trabalhos do pessoal da SAMBA; Vudu Comix; do Sindicato; várias das autoras que conhecemos através da zine XXX, bem como os coletivos Loki. e Invisible (ex-Libre!). Um autor que volta e meia eu estou olhando é o D'Salete, tenho o quadrinho Encruzilhada dele sempre por perto. Acho que o que quero seguir em termos de desenho depois de terminar "O Aguardado" é bem por ali, o preto e o branco bem contrastados mas com uma sujeira do pincel seco rolando ali pelo meio. A temática das histórias, pequenas crônicas urbanas de pessoas comuns também fala muito pra mim. Acho que não é à toa que quando fiz a "Risco" (história publicada na zine de Julho, cujo personagem principal é um pichador) o traço foi um traço mais sujo, no pincel.

Dentro desse cena nacional sinto que ainda tenho muito o que conhecer e ando buscando, desde o trabalho dessa galera ao de autores já clássicos, como Laerte, Fabio Zimbres e outros. Conheci recentemente através de uma publicação da Ugra o trabalho do Henry Jaepelt, que me atraiu muito pelo desenho e pela pegada surrealista.

As influências se dão de diversas maneiras. Às vezes por querer fazer igual, às vezes tentando fazer igual e vendo que aquela não é a sua pegada também (como é um pouco a minha relação, por exemplo, com o trabalho do Moebius, que já tentei muito copiar até ver que não era por ali).

Fora os quadrinhos, me influenciam bastante filmes em geral e música, brasileira em especial, de hoje e de ontem. Como falei na pergunta anterior acho que um pouco da literatura regionalista e trabalhos de autores como Suassuna também estão em ligação direta com meu trabalho mais recente.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Augusto Botelho – Acho que os quadrinhos são um potente meio de expressão e isso é facilmente constatado simplesmente dando uma olhada no que já foi produzido dentro dessa mídia. No último século não faltam exemplos de quadrinhos que exploram as mais diversas questões, experimentando com formatos, temáticas, estilos, linguagem e afins. Como toda mídia, divide características com outras mídias, mas tem outras características bem próprias. Compara-se muito o quadrinho com o cinema, por exemplo, e as duas mídias realmente têm muito em comum (até por serem ambas fruto da sociedade industrial e por terem em comum o representar do tempo, movimento, etc). Mas mesmo essa representação do tempo e do movimento se dá em cada uma de forma muito diferente. No cinema as imagens se sobrepõem no tempo, causando no olho do espectador a ilusão do movimento, no quadrinho elas estão colocadas espacialmente em sequência. Essa diferença muda muito o modo de fruição da imagem, fazendo com que, no quadrinho, o tempo do leitor seja  infinitamente mais relevante que no tempo do filme. E por conter o elemento visual, esse tempo também não é o mesmo do texto pois o leitor pode se manter em um quadro por conta do elemento visual, e ir e vir pela obra. O Underground, (segundo volume do "Promessas de Amor a Desconhecidos", do Pedro Franz), por exemplo, vem dentro de um envelope e as folhas não estão grampeadas, permitindo que o leitor posse se movimentar pela obra através de múltiplos caminhos e tempos. O trabalho meio que assume de vez que o autor não vai ter o controle sobre o tempo e o processo de leitura do seu público e é um exemplo interessante de como explorar isso.

Botelho em pala à Moebius

O que eu vejo mesmo entre os quadrinhos e os trabalhos que circulam em galerias, museus e outros desses espaços institucionais do mercado de arte é mesmo uma diferença de nicho de mercado. São nichos de mercado diferentes, com funcionamentos específicos, pré-requisitos e exigências diferentes e que atendem também, em parte, públicos diferentes. Lógico que eles possuem intersecções e talvez a tendência é isso só aumentar, à medida que cada vez mais artistas têm se utilizado do múltiplo, do livro objeto ou do zine como forma de aumentar a circulação do seu trabalho para além dos espaços expositivos; e também quadrinistas têm levado seus trabalhos para outros espaços de circulação ou incorporado vários elementos desse campo neles.