Rapidinhas #18: Dia do Quadrinho Nacional 2023

Rapidinhas #18: Dia do Quadrinho Nacional 2023

Mais uma vez sob o ensejo do Dia do Quadrinho Nacional, esta edição das “rapidinhas” (pacote de resenhas curtas - ou nem tanto - da Raio) aborda a produção brasileira. Alguns autores são velhos conhecidos (aproveitem para clicar nos hiperlinks e conferir resenhas antigas para obras deles), outros estreiam por aqui. Uma de nossas intenções em 2023 é acelerar a prática do texto escrito novamente (sem abandonar o Lasercast, claro!), valorizando essa sofrível tradição em crítica de quadrinhos, que parece ter se tornado mais rara que encontrar um canguru no meio da floresta amazônica. E sem chatGPT, é claro! ;) (CIM)

por Ciro Inácio Marcondes, Marcão Maciel e Bruno Porto

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Rapidinhas Raio Laser #05

Machado escreveu, com aquela pomposidade tipicamente machadiana: "Estabelecei a crítica, mas a crítica fecunda, e não a estéril, que nos aborrece e nos mata, que não reflete nem discute, que abate por capricho ou levanta por vaidade; estabelecei a crítica pensadora, sincera, perseverante, elevada, — será esse o meio de reerguer os ânimos, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feitos; condenai o ódio, a camaradagem e a indiferença, — essas três chagas da crítica de hoje, — ponde em lugar deles, a sinceridade, a solicitude e a justiça, — é só assim que teremos uma grande literatura."

Bem, pomposidade à parte (Machado pode), e sem essa de "grande" literatura, as palavras do nosso autor predileto ainda ressoam para a crítica de hoje. Condenar o ódio gratuito, a camaradagem estéril e a indiferença blasé - é o que tentamos fazer por aqui (vejam bem, Machado condenava esse vícios no século 19). Logicamente, nossa crítica é de Internet, e não pretendemos exaurir nada. O texto tem de ser enxuto, e algumas generalizações precisam ser feitas. Mesmo assim, vocês devem ter notado um certo aumento de tamanho (e de maturidade) em relação às primeiras "Rapidinhas". É que nós respeitamos o que lemos. Respeitamos o trabalho do autor de quadrinhos no Brasil.

Dito isso, aquela coisa: quase tudo é bem novo, mas tem coisa velha (tipo um quadrinho do Gerlach de 2012 - mas é Gerlach, p*rra! Esse é outro que pode), pois nosso encalhe aqui parece interminável. Além disso, estreiam nesta seção dois dos nossos colaboradores mais novos, Lima Neto e Marcos Maciel de Almeida (sumidades da cultura de quadrinhos de Brasília). Aguardem mais resenhas e não deixem de mandar coisas pra gente. Lenta como uma lesma presa numa labirinto, a Raio Laser procura cobrir tudo que recebe. Para aparecer aqui, envie seu material para:

RAIO LASER

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Brasília-DF

Brasil

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Peace! (CIM)

por Ciro Inácio Marcondes, Lima Neto e Marcos Maciel de Almeida

PIMBA Nº 3 – Vários (Independente, 2016, 28 p.): aqui na Raio Laser, o Jornal Pimba já dispensa qualquer apresentação. Depois de passarem 2015 em branco, a equipe radicada em Brasília (Gomez, Mello e Sobreiro, esses apocalípticos), do jeito que deu, chupando cana e trocando pneu de carro ao mesmo tempo, lançou uma nova e linda edição do jornal de quadrinhos mais carismático do País (há outros, como o mais avant-garde Suplemento, ou o ótimo jornal de tiras Graphic, do guerrilheiro das HQs Mário Latino, ou o novíssimo Altamira). Como sempre impresso em uma cor dominante (desta vez amarelo) e layout despojado e eficaz, o Pimba retorna repetindo algumas pratas da casa (Góes, San, Valente, Belga) e traz novos convidados do indie brazuca que dão certo peso e responsa à publicação: Chiquinha e Pablo Carranza, por exemplo, coisas de espectros meio opostos, entregam folhas de quadrinhos despretensiosos, diria até dispensáveis (dado o potencial); bobos, mas não sem graça. Já a dupla Bruno Maron e Ricardo Coimbra, de lente e lápis afiados para um cinismo bruto (que a nossa geração merece ouvir), não parecem ter reservado seus melhores trabalhos para o jornal. Soou como improviso. Mais interessante, em quadrinhos, é a metacrítica feita por André Valente “Fazer quadrinhos vai destruir você, vai partir seu coração”. De fato, ao que parece, vai. Valente pega esta citação de Schulz e, num sentido mesmo charliebrownesco, constrói uma visão na verdade desoladora, neurótica e categórica sobre o ofício de fazer quadrinhos no Brasil. Resta pouca esperança, realmente, se o melhor de uma produção reside na autoparódia. Tudo fica em tom de despedida.

Assim como na edição 2, os quadrinhos oscilam, mas há muitos bons momentos em texto (e ilustração) para deixar o Pimba 3 mais interessante. Com maior participação feminina, temos, por exemplo, um conto de memória rural (mas de mentalidade urbana) exíguo e melancólico de Marcella Moraes; e uma ótima, satírica e perversa leitura de certa tosca mentalidade masculina por Maíra Valério. Temos Arnaldo Branco, que cria uma pequena exegese para o vício (viva!); temos um conto bastante prosaico (em tom de crônica, mas sem perder e verve de Literatura sobre o interior do Brasil) de Milton Sobreiro (o que dá um ar menos hipster pra coisa toda); e temos uma fritadíssima autorreflexão de Hector Lima sobre a adesão descontrolada e antissocial a produtos culturais de consumo, misturado a ciência contemporânea e Literatura de Internet (o que traz um ar pós-moderno). Não falta ao Pimba, portanto, gente talentosa. A minha impressão, no entanto, é que a editoração dessa p*rra funciona como uma invasão dos Piratas do Tietê, espécie de onda caótica de mentes tresloucadas sedentas por expressão, mas ainda assim se atropelando de ansiedade. (CIM)

Topografias – Bárbara Malagoli, Julia Balthazar, Lovelove6, Mariana Paraizo, Puiupo, Taís Koshino (Piqui, 2016, 60 p.): se pensarmos a topografia como o mapeamento de um território, este quadrinho tem dupla função: em primeiro lugar, é um radar para o melhor da produção feminina no Brasil atualmente, especialmente no meio indie. A ideia é realmente construir uma cartografia, indicar o caminho, levar a produção masculina pelas mãos e dizer: “fazemos bem e fazemos diferente”. Neste sentido (e sem querer avançar mais no chauvinismo da guerra de sexos), Topografias é um material aberto à experimentação e à sensibilidade radical, um tipo de autoria em quadrinhos que possui outro DNA, outras preocupações e prioridades. Em segundo lugar, a topografia (escrita do espaço) também diz muito sobre a qualidade artística do trabalho em si destas minas. Pouco preocupadas em construir narrativas funcionais ou numa “antiquada” produção mais tradicional de sentido, estas quadrinistas deixam o espaço falar (e também o espaço da página) como se fosse uma expressão em si, deixando balões de fala, texto e mesmo questões políticas em segundo plano.

O resultado em geral é acima da média. Há uma forte pulsão expressiva na maneira como este coletivo representa suas ideias em quadrinhos. Em alguns momentos, porém, ainda resvalam em certos procedimentos naïve, e muitas vezes o texto mais atrapalha do que qualquer outra coisa. Vejamos o caso de Bárbara Malagoli: ela constrói um poderoso dispositivo visual inspirado em sci-fi, com trabalho de cores louquérrimo e embasbacante, mas há uma disjunção entre estas splash pages e os textos, que parecem excertos (pseudo) filosóficos (“É tudo um sonho, um sonho grotesco e tolo”) soltos, sem muita conexão com as imagens. Falta aquela “liga” que faria o quadrinho ressoar melhor na gente. Já Julia Balthazar se sai melhor ao apresentar uma simples tarde na piscina vivenciada por duas garotas apaixonadas, em sua exclusividade. Também há uma forte presença do espaço e das cores, como se a transmissão da impressão do sentimento se sobressaísse a quaisquer palavras (de fato os diálogos são vagos e não dizem muito).

A sci-fi também está presente nas contribuições sui generis de Taís Koshino e Puiupo. A primeira é a melhor participação da revista e talvez sua melhor história ever: numa turma de crianças telepatas praticantes de meditação, temos acesso a certo “museu do futuro”, que conta a história de nossa evolução (com bem-humoradas alterações). Koshino alterna bem a disposição entre um senso de humor muito próprio, questões sobre tecnologia, corpo humano e realidade virtual, além de um intrigante trabalho com cores e empaginação (e aqui o texto – paródia do cientificismo – funciona). Já Puiupo apresenta uma cena grotesca em sua visão freak, cronenberguiana, sexy de um jeito inimaginável. Não entendi muita coisa, mas há personalidade e imagens que não saem da cabeça. Por fim, Lovelove6 traz um trabalho bastante radical e pessoal, em tons (eroticamente bem pensados) de vermelho e roxo, também numa cena arquetípica de amor entre duas mulheres. A topografia em si da história é bastante marcante e virulenta, mas a mensagem do texto (“o ciúme é bastante antigo”) me pareceu meio moralista. Enfim, vale também destacar o belo trabalho de editoração de Lívia Viganó para este que é um dos mais bonitos e significativos lançamentos do ano passado. (CIM)

Cais – Janaína de Luna e Pedro Cobiaco (Mino, 2016): quando acordamos e relembramos acontecimentos ocorridos em nossos sonhos, nada parece fazer sentido. Ainda assim, quando estamos dentro da realidade onírica, tudo parece ter lógica, não é? Agora imagine poder ver um sonho estando acordado. Foi assim que me senti quando li Cais. Essencialmente intimista, a narrativa em primeira pessoa nos dá dicas preciosas sobre o inconsciente de Diana, a protagonista, mas deixa muita coisa em aberto. Confesso que tive de ler umas três vezes para sacar qual era a onda do gibi, mas isso não é um ponto negativo. Muito pelo contrário. Numa época em que a informação tem que ser cada vez mais objetiva e mastigada para agradar a leitores apressados, é saudável encontrar HQs que nadam contra essa corrente. 

A água, em suas diversas formas, é presença constante no gibi, assim como são as diversas metáforas que ajudam a entender (ou confundir) quem é Diana e qual a natureza de seu relacionamento com – eis um nome escolhido a dedo – Martin. As lentas idas e vindas do casal são a preguiçosa maré que vai embalar o ritmo desta HQ, que poderia se passar em qualquer vila litorânea do Brasil. A arte é um capítulo à parte. O belo contraponto em preto e branco deste Cais com o colorido esfuziante de Aventuras nailha do tesouro mostra que Pedro Cobiaco está à vontade em qualquer praia. Ouvi dizer por aí que pode ser que Diana volte num gibi de mais de cem páginas. Espero que o sonho se torne realidade. (MMA

Quadrinhos Insones – Diego Sanchez (Mino, 2016, 96 p.): não são poucos os motivos que nos fazem embarcar em vigílias involuntárias noite adentro. E embora tenha certeza de que o bem-estar social no mundo é um deles, a grande maioria das insônias são causadas por pequenos nós íntimos do dia a dia que nosso cérebro insiste em tentar desatar quando deitamos. E Quadrinhos insones, um apanhado da produção digital do quadrinista Diego Sanchez publicado pela Mino em 2016, é uma testemunha disso. O belo livrinho – que poderia ter uma produção mais modesta em consonância ao caráter despojado das narrativas – abre com uma pesada descrição da guerra civil no Camboja em 1975, mas rapidamente a narrativa histórica dá lugar a reflexões e micro-crônicas às vezes fantasiosas e muitas vezes íntimas e autobiográficas. A arte de Sanchez é uma delícia de se ver, algo como um Richard Sala hiper detalhado. E, no geral, o gibi proporciona alguns momentos de entretenimento belos e descompromissados. A bela “Escalas” e “O estranho caso da baía 4” são bons exemplos disso. Alguns continhos de uma página também seduzem pela capacidade de síntese. Quanto à linguagem, o grande destaque é o quadrinho sem título da página 50, uma perolazinha que traz ecos de Spiegelman e McCloud, que nos lembra novamente por que produzimos e lemos narrativas neste tipo de mídia.  O restante do quadrinho, entretanto, é prejudicado pela intimidade autobiográfica que esbarra em alguns lugares-comuns do modo de vida “indie”, tornando egocêntrico o que poderia ser distinto. Essa irregularidade do título, assim como seu caráter despojado, me fazem pensar em como ele seria melhor se lido com uma produção mais baixa – uma lombada canoa, papel jornal e algumas páginas a menos fariam deste Quadrinhos insones um sono mais agradável. (LN)

2015 – Antônio Silva, Augusto Botelho e Daniel Lopes (Org., MÊS, 2015, 152 p.): mais uma pira de Brasília, esta antologia é o resultado do trabalho de curadoria da galera da Mês, que em 2014 lançou religiosamente 12 zines (e repetem a fórmula em 2016). Em 2015 eles resolveram fazer diferente e financiaram no Catarse uma antologia a partir de uma convocatória. O resultado é um livro responsa com mais de 20 colaboradores e uma ampla diversidade de estilos. Alguns nomes (Diego Sanchez, Laura Athayde, Renata Rinaldi, Taís Koshino) são já conhecidos no meio indie, mas há muitos aventureiros também. Isto torna o conteúdo da revista irregular, como é de praxe neste tipo de publicação. Conhecendo o perfil editorial da galera, já se pode esperar da Mês um incentivo à experimentação, ao ato subversivo de romper certas barreiras que margeiam escapar dos quadrinhos. Artes visuais, colagem, fotomontagem, ilustração abstrata e rabiscos não são estranhos à mentalidade dos caras, assim como forte apelo ao nonsense  e quadrinhos que parecem pura zoação. Memes, enfim. Não sou contra essas coisas, mas é um terreno pantanoso. Dentro desta perspectiva, destaco a bela expressão de angústia juvenil de Gustavo Magalhães, em amplos quadros que dizem muito pouco, mas transmitem forte intensidade emocional: é uma equação precisa para se produzir bom quadrinho experimental.

Porém, mesmo com certa quantidade de coisas apressadas (e logo esquecíveis), 2015 tem quatro trunfos, que fazem a revista valer a pena. Em primeiro lugar, a história de abertura de Diego Sanchez: voo livre num surrealismo bem próximo dos sonhos (talvez tenha sido um), com sua arte em grande forma e sensibilidade na medida certa. É assim que se faz poesia em quadrinhos (e não recitando seu diário de adolescente junto a imagens expressionistas). É uma das melhores histórias que li dele. Em segundo lugar, a participação dos editores, bem mais calejados, com uma preocupação séria em se pensar a expressão em quadrinhos. Antônio Silva ainda vacila um pouco: sua história é tão doidona que parece ter sido desenhada em “escrita automática”. Mesmo assim, tem vigor nos movimentos, e intensidade. Lembra o estilo do querido Mateus Gandara. Já Augusto Botelho também oferece seu melhor trabalho até aqui. Ele conta a história (muda, profundamente inteligente e expressiva) de um menino (alter-ego?) numa praia que encontra um totem num barco e quer levá-lo para casa, mas a “entidade” não permite. Botelho trabalha bem o uso de luz, ângulos e expressões (seu traço está em consonância com sua geração, vide Pedro Cobiaco), e o sentido metafísico da história tem um quê de cabalístico, sem exageros. Por fim, temos a também muda história de Daniel Lopes, sobre o encontro entre um menino e um astronauta, também onírica (e esotérica), que remete ao ciclo infindável de nascimento e morte, com ótimas referências a 2001, Marco e até Incredible science fiction (da EC Comics – a famosa história do astronauta negro). O quadrinho de Daniel tem preciso timing, delicadezas e figuras de linguagem, revelando, assim como no caso de Botelho, exímio domínio da linguagem muda. Estes quadrinhos destoam muito do resto da edição, mostrando que estes caras estão prontos para saltos mais ambiciosos. (CIM)      

The Concept – Um quadrinho inspirado na canção da banda Teenage Fanclub

(Clube do Single Volume 1) – Fábio Lyra (Beléléu, 2014, 18 p.): eu havia criticado o estilo de Fábio Lyra em outra publicação, mas, como a vingança é um prato servido frio, preciso dar o braço a torcer aqui. Lyra bolou este projeto “Clube do Single”, que é o de escrever pequenas HQs inspiradas em canções, no formato físico de um single. A escolha para o primeiro projeto (lá de 2014) não poderia ter sido mais acertada: o Teenage Fanclub é das bandas que mais agregam loucos e apaixonados, desembocadouro para qualquer introvertido, indie ou ser antissocial dos anos 90. Há quem vire o nariz, mas o som deliciosamente melódico da banda, com as melhores influências (Beatles, Neil Young) e sem perder a personalidade discreta, tímida, mas generosa e cativante (capaz de transformar o rock numa crônica do cotidiano), este som é o de uma das minhas bandas favoritas. E The concept é, tipo, a melhor música do Teenage Fanclub. Pequeno épico do power pop, funciona como se o Big Star cruzasse com o Pink Floyd. E Lyra usa uma estratégia inteligente: ao invés de transcrever a letra da música para uma HQ, ele inventa uma história bastante diferente, sobre o encontro fortuito e fugaz entre dois jovens na madrugada (a garota como mote tanto na canção quanto na HQ), para procurar capturar o espírito (ou o mojo, ou sei lá o quê) da música na mídia quadrinhos. O traço de Lyra é bonito, e ele sabe tirar dos quadrinhos instantes que parecem paralisados na nossa percepção, memórias que ficarão para sempre. Assim, o Concept de Fábio Lyra é despojado e melancólico, mas que se vale de mini-emoções. Seria uma coisa assim, digamos, low-profile mas de bom coração. E não seria esta uma boa maneira de descrever o som dos escoceses? (CIM)    

Alvoroço – Diego Gerlach (Vibe Tronxa, 2012, 28 p.): pode ser dito com segurança que Diego Gerlach é um dos traços mais ativos do quadrinho nacional.  E em Alvoroço, gibi de seu personagem Boy Rochedo, se vê claramente também sua verve de artista gráfico. Do projeto da capa, de visível inspiração na produção gráfica de Emilio Damiani, até seu traço afiado que parece cortar a folha do papel, tudo expressa a psicodelia contundente como navalha que é marca do seu trabalho. Ao lado de uma produção gráfica mecânica e tradicional, Gerlach incorpora ainda uma tecnologia lo-fi nas suas retículas digitais e degradês deliciosamente piegas.

Alvoroço conta o retorno de Boy Rochedo, invocado de sabe Deus onde, renascido de uma fumegante vagina de beijú (tapioca para os ocidentais). Um nonsense transpirante que não vê incômodo em não ter início ou fim, e está mais interessado em expressar a amoralidade mambembe de seu personagem. Essa amoralidade acidental contrasta com o início da revista e seu ar de manifesto, mas, na soma de tudo, o que há é uma sensação e “com o passar do tempo a sensação passa a importar muito mais que a própria resposta”.

Alvoroço é um gibi curioso, bate aquela familiar vontade de acompanhar para ver o que acontece. Mas Gerlach tem uma intenção artística e anárquica que dispensa essas estratégias tradicionais de “storytelling”. É a “vibe” que importa. Pelo menos, no caso de Gerlach,  a vaibe é boa e autêntica. (LN)

Quadrinhos Perturbados – João Rabello (Avocado, 2015): eis um gibi contendo tiras com um tipo de humor bastante peculiar. Fazendo uso de tiradas e trocadilhos – escritos ou imagéticos – João Rabello dá protagonismo às suas manias e obsessões, como piratas, crânios e bigodes. Sim, bigodes. É um tipo de humor que poderá agradar a gregos, mas não a troianos, devido ao fato de representar a particular maneira através da qual o autor enxerga a vida e os fatos cotidianos. Por meio de várias referências à cultura pop – especialmente personagens de HQ – Rabello dá voz a um universo essencialmente pessoal. Confesso que me identifico com o tipo de piadas nonsense que estão espalhadas pelo gibi, cuja leitura me remeteu a James Kochalka em seu "The Horrible Truth about Comics". Neste último, o autor norte-americano destaca um dos recursos mais importantes dos quadrinhos: sua facilidade em favorecer a expressão individual. Em sua HQ, Kochalka ensina que talento ou dom são meros coadjuvantes diante de uma das grandes forças da nona arte, que é a capacidade de difundir visões e opiniões de forma visceral, autêntica e direta. Seguindo – consciente ou inconscientemente – esta ideia, Rabello acerta ao se permitir trazer para a superfície sua visão de mundo e de humor. (MMA)

O Diabo e Eu – Alcimar Frazão (Mino, 2016, 64 p.): Eu amo country blues. Nada como se render à simplicidade de três acordes e à emanação de toda uma época. Música pura, de inconfessáveis verdades. Simples, mas que nos atinge de primeira. Lonnie Johnson, Leroy Carr, Blind Willie McTell, Big Bill Broonzy, Memphis Minnie. E Robert Johnson, é claro. Esses cantores ainda emocionam porque estão atrelados a uma realidade onde música e vida não podem ser separados. É esta realidade que Alcimar Frazão traz aos quadrinhos ao elaborar, de maneira radicalmente pessoal, a história de Robert Johnson e o pacto com o Diabo. 

O Diabo e eu é uma história muda, cheia de signos sinistros, legítima gothic south, onde nos sentimos imersos no mundo apodrecido dos pântanos e deltas nos Estados Unidos do começo do século XX. Frazão legitima o terror ao fazer reverência à tradição brasileira do gênero: Shimamoto, Rodolfo Zalla e Mozart Couto parecem influências. Além de trabalhar grafismos cheios de psicologia (como uma menina com cabeça de cachorro), o quadrinista ainda discute a ideia do Diabo, que aqui aparece (quase) como metáfora da podridão da sociedade americana pós-escravocrata, e o mal absoluto brota na imagem do pai de Johnson, facínora violento que prostituía a própria esposa. Tudo isso sem perder o horror literal (o diabo está mesmo lá) e associando o silêncio do texto em quadrinhos à tristeza inerente ao blues rural, como se este silêncio e a música pudessem dizer a mesma coisa, mas em meios diferentes. (CIM)

Lavagem – Shiko (Mino, 2015, 72 p.): este talvez seja o melhor trabalho do paraibano Shiko (ainda que eu goste muito do experimentalismo poético de Blue Note).

Lavagem guarda muitas semelhanças com O Diabo e eu: é uma história de assassinato num lugar “abandonado por Deus” com a presença de um Diabo personificado. Fórmula de terror e símbolos ocultos. A arte de Shiko, porém, é mais dinâmica e cinematográfica, com ótimo domínio do timing narrativo.

Lavagem também retoma nossa tradição de quadrinhos de terror, mas acrescenta algo de cinema novo (eu ouvi Portodas caixas?) e Brasil contemporâneo à coisa. É um sincretismo eficiente e Shiko mira direto no oportunismo dos pastores evangélicos (“sometimes satan comes as a man of peace”) para fazer sua interpretação do mal. Mesmo não sendo brilhante (ainda acho que o movimento no quadrinho e as expressões dos personagens podem ganhar mais vida), o autor aproveita bem a sua chance de socializar o horror com questões sobre opressão feminina, desemprego e pobreza no Brasil.

Lavagem satisfaz, mas também produz aquela velha sensação: “agora que já fez esse, vai lá e faz um melhor”. Ou seja: mais e melhor Shiko, por favor. (CIM)

Especial Editora Mino: 4 resenhas (padrão RL) + ótima entrevista!

por Ciro I. Marcondes (resenhas) e Pedro Brandt (entrevista)

Quiral

Na ativa desde 2014, a Editora Mino juntou em pouco tempo um catálogo admirável, com obras de novatos e veteranos produzidas com caprichado acabamento editorial (papel bom, capa dura, impressão de qualidade, etc.) e uma curadoria que foge de obviedade e é afeita ao risco. 

Além das obras resenhados abaixo, a Mino lançou recentemente Quadrinhos insones, de Diego Sanchez, e os primeiros títulos de autores estrangeiros pela editora: o perturbador Zonzo, de Joan Cornellà, e o divertido (e fofo!) Fungos, de James Kochalka. Em breve, chegam às livrarias O Diabo e eu, HQ inspirada na vida do bluesman Robert Johnson, de autoria de Alcimar Frazão, e Shaolin Cowboy, do monstro Geof Darrow.

Responsáveis pela Mino, o casal paulista Lauro Larsen e Janaína De Luna conseguiu realizar este que é sonho de muitos fãs de quadrinhos: abrir a própria editora e lançar títulos e autores nos quais acreditam. 

Em entrevista por e-mail, eles contam um pouco como foi colocar isso em prática (“As pessoas são apaixonadas por quadrinhos, mas não entendem nada de negócios. Tem que ter planejamento...”), comentam as escolhas do que publicam (“Porra, como é que sabe se determinado autor não vende se ninguém nunca o lançou de maneira decente?”), lembram como se iniciaram no mundo dos quadrinhos e ainda tecem palpites e arriscam previsões sobre o cenário nacional de HQ (“Acho que o futuro vai ser massa!”). (PB)

Caso queira enviar seu material para ser resenhado na Raio Laser, o endereço é o seguinte:

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CRÍTICA

Aventuras na Ilha do Tesouro

Pedro Cobiaco

(Mino, 2015, 144 p.): De certa forma, a graphic Aventuras na ilha do tesouro, de Pedro Cobiaco (filho do Fábio), e a série O beijo adolescente, de Rafael Coutinho, tratam da mesma reflexão: a difícil tarefa de esquadrinhar ou compreender as growing pains da nova geração de adultos (Y ou millenial) a partir de referências internas, de um pensamento endógeno a eles próprios. Ambos acabam recaindo em uma estrutura fabulística ou mítica, aproveitando elementos da cultura pop ligados a esta galera (os super-heróis no Beijo; uma coisa Alice meets Hora de Aventura no Ilha) para criar uma história eminentemente metafórica, mas ao mesmo tempo muito divertida, sobre este conflito de gerações. Ambos também carregam nas tintas psicodélicas para construir um imaginário vívido, elástico, com uma profusão intensa de camadas visuais e cores, dotando esta geração com uma racionalidade e intuição propriamente lisérgicas, algo que reverbera em suas ações políticas, sua sexualidade, sua identificação com o mundo. 

A grande diferença é que Coutinho, muito mais velho, faz algo mais pensado e intelectual, com referências à historiografia de ouro dos quadrinhos e uma trama elaborada a longo prazo, com arcos narrativos delineados e conflitos que se desdobram dentro de certos padrões de previsibilidade. É um experimento de epistemologias geracionais (por assim dizer) que se encontram, mas não se tocam: O beijo adolescente é a própria cidade de Kandor

que Coutinho cultiva dentro de sua redoma, e isso traz vantagens e desvantagens em relação a Aventuras na ilha do tesouro, que tem uma pulsão muito mais voraz e selvagem. Ler este trabalho se parece mais, na própria sensitividade da coisa, com uma projeção para dentro da cabeça dos millenials. Não é à toa. Cobiaco tem 20 anos de idade, e todo esse desaguar psicodélico se espraia em referências, possibilidades e desdobramentos estéticos. Trata-se de uma história livre, à deriva, desenfreada, por vezes sem lógica, sem função, afogada num oceano de emoções.

Mas, é claro, Cobiaco não é nenhum naïve. Está lá uma carga referências bem sacadas, de Magritte e  Hokusai a Lord of the flies e o supracitado Corto Maltese, como espécie de elo afetivo que une o aspecto metalinguístico da graphic ao coração de seu ímpeto aventuresco. Mas isso tudo não impede que a HQ pareça urgentemente autêntica e atual: na observação microdetalhada da linguagem dos quadrinhos, na submersão no caldeirão surrealista que é a experiência de lê-la, em seu conflito geracional atávico, na androginia queer de seus personagens. Porém, aquilo que, nesta HQ, de longe ultrapassa O beijo adolescente em urgência, de certa forma perde para a obra de Coutinho em meticulosidade, sobriedade, bom senso.

Explico: Aventuras na ilha do tesouro é um bildungsroman (romance de formação) gráfico. Esta formação aparece em duas frentes: por meio do Capitão, um personagem livre que vive, com outras figuras (jovens, modernas, encantadas e encantadoras), em uma ilha (espécie de Éden teen dos anos 2010) que é devassada por uma geração de velhos conhecida como “guarda real” e que acaba com o sonho “Lagoa azul + Tame Impala” que estava sendo construído por aquela sociedade de millenials. O Capitão então vai encontrar seus demônios existenciais, exilado, à deriva. Em outra frente, temos o próprio autor (na verdade uma ficção de si próprio), que aparece com uma espécie de máscara do Rorschach que reflete os movimentos emocionais dele a respeito da perda do pai (metafórico ou não), e os processamentos deste luto. Há inteligência metalinguística nesta parte, muito malabarismo visual e um ótimo dialogo geracional entre o próprio Pedro e seu pai, Fábio, um quadrinista mais clássico (veja a resenha abaixo). A fenda geracional, nas duas frentes, é claramente o que move as camadas simbólicas de Aventuras na ilha do tesouro

O que pega, por vezes, é que esse transbordamento todo, vertido em complexidade (todo um dispositivo de linguagem e camadas simbólicas) e pura emoção de artista (o jorrar psicodélico) deixa a história um pouco como um sujeito com DDA que não consegue se concentrar em nada. Há um momento em que o próprio Cobiaco, vertido como autor fictício, denuncia a farsa: “história egoísta que só faz sentido para mim”. Pode até ser, mas não precisa acusar. É inevitável, portanto, dizer o que já deve estar claro – esta graphic é um raio x desta geração no que ela tem de melhor e pior: expressão e vacuidade. Como os requadros do último capítulo (silenciosos, instintivos, aquecidos) denunciam, o processo todo de Aventuras na ilha do tesouro funciona como rito de passagem em todas as suas contradições, em brutal honestidade. Neste sentido, ler este trabalho em conjunto com O beijo adolescente funciona como estar dos dois lados de um espelho invertido, com uma geração ajudando a compreender os erros e acertos da outra. É um momento delicado e sensível (para não dizer apenas histórico) para a HQ brasileira.  

Quiral – Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho (Mino, 2015, 44 p.): Acompanho o trabalho de Damasceno e Garrocho desde os tempos do "Quadrinhos Rasos" e, desde que reclamei que o trabalho deles era “fofo” demais (o que de certa forma virou uma piada sobre certo tipo de quadrinho nacional), eles parece que resolveram entrar de mala e cuia nesta seara (vide Bidu: caminhos, Cosmonauta Cosmo, etc.). Nada contra, realmente, mas em Quiral a dupla, versátil e talentosa, mostra visível amadurecimento, mesmo que insistam em alguma meiguice um tanto piegas. Em primeiro lugar, temos uma narrativa dupla, o que é interessante por si: duas histórias (uma de um pirata solitário no passado; outra de uma jovem meio cientista e voluntariosa no presente) são contadas paralelamente, quadro-a-quadro, com design e coloração específica para cada. Em segundo lugar, o tom maduro na expectativa de inversão de valores: embora ambos os personagens vivam em ambiente praiano de caçadores de monstros gigantes (sim, uma coisa Pacific Rim misturado com A ilha do tesouro), o pirata, renomado matador destas criaturas, se sente solitário, exausto, inseguro. Já a moça, inquieta, inspirada pelas anotações do pirata no passado, pretende ousadamente seguir seu legado. São perspectivas invertidas.

Quiral é delicado, sim, com cores amenas e uma beleza contemplativa no leiaute suave das páginas. Apesar de ser uma história de monstros e piratas, não há ação, apenas saudade e sonhos perdidos, e esta vocação, apesar de óbvia para o trabalho dos autores, é trazida à tona aqui com refinamento e bom gosto. Vejam bem a sacada (não genial, mas de tocante simplicidade e bem trabalhada): piratas e monstros gigantes são elementos de quadrinhos “masculinos” estilo filme high-concept de Hollywood. Os autores apenas conjuraram a mágica de encantar esse mundo estéril e brutalizado com um pouco de humanidade. Aquela coisa: extrair, dos estereótipos, arquétipos desconhecidos. Nosso herói é solitário por ser herói, por estar além, por não conseguir se comunicar com qualquer um que retenha suas expectativas. São ideias singelas, desenvolvidas com quase monástica simplicidade, o que torna o quadrinho edificante (e por isso ainda um tanto pueril), mas domado. No final, Quiral até diz a que veio, mas de uma maneira muito minimalista e rápida. Parece o rascunho de um sonho. Uma fantasia de um quadrinho mais robusto, autoral e consistente.  

Goela Negra – Lelis e Ozanam (Mino, 2015, 104 p.): Estações de trem, minas de carvão, abatedouros, moinhos, espeluncas, bares, rostos humanos (muitos rostos humanos): que diabos Lelis não consegue ilustrar, olhando em fotografias ou não, com seu traço de lavagem vertical, de expressão quase pura? Muito diferente de outras obras consagradas, cheias de cores amalgamadas (como Saino a percurá e Clara dos Anjos), em Goela negra este que é um dos nossos maiores ilustradores utiliza o pincel seco em preto e branco para retratar, em escalas narrativas bastante definidas, a tenebrosa realidade dos carvoeiros no norte da França entre o fim do século XIX e os primeiros anos do século XX. Com roteiro, digamos, “correto”, cheio de inferências e bastante engajado do francês Antoine Ozanam, o álbum acompanha a trajetória de Marcel, um operário fodido que vai se jogar numa Paris surreal e enlouquecida pela ganância, pelo crime, pela luxúria, etc., reverberando ecos da revolução industrial e de uma possível revolução anarquista.

Goela negra é uma saga de tom moral e cíclico, tempestuosa e às vezes redundante, cheia de menções a fatos históricos. Os rastros de uma extensa pesquisa podem ser percebidos por toda parte. Se não fosse a arte espectral de Lelis, que contamina cada polegada do quadrinho com a imundice da poluição das carvoarias, é capaz que o roteiro, bem caretinha, se revelasse enfadonho demais. Este álbum é uma prova da qualidade mista, indiscernível, dos quadrinhos enquanto mescla de arte, narrativa e palavra. Se Goela negra resultaria apenas em mais um filme mediano inspirado em Germinal, o mesmo não ocorre aqui (em quadrinhos) porque a arte de Lelis adiciona um componente que não é apenas a beleza visual: é drama, são sentimentos, são intenções verdadeiras, são nuances inalcançáveis pelo texto. É importante frisar sempre a qualidade narrativa da arte nos quadrinhos (e não apenas em sua parte sequencial), e Lelis inflama esta obra com (literalmente) um retrato poderoso de uma sociedade desigual, economicamente complexa, eticamente chegando ao seu limite e na fronteira de uma ruptura ideológica brutal que resultaria no colapso da Primeira Guerra Mundial. Se o texto realista de Ozanam parece fora de moda ou incapaz de dar conta das questões que invoca, temos a sorte de contar com Lelis para retificar estes problemas com uma arte em seu ápice. 

Mayo – Fábio Cobiaco (Mino, 2015, 88 p.): O veterano Fábio Cobiaco (pai do Pedro) resolveu transformar sua empreitada mais longa e ambiciosa em uma minuciosa examinação da era de ouro dos quadrinhos. A história de piratas Mayo, que se passa em Santa Catarina no início da colonização do Brasil, é toda contada em tiras de quatro ou cinco quadros (com eventuais surpresas), a narrativa é atomizada, os personagens se envelopam em arquétipos. O resultado é semelhante ao que o brasiliense Daniel Lopes alcançou com Marco, o macaco do espaço, mas muito mais autoral. Cobiaco cita explicitamente um estudo quase obsessivo da Caniff (Terry e os Piratas) e Pratt (Corto Maltese) para compor a trajetória de uma pirata amaldiçoada, irremediavelmente obstinada, que atravessa o Sul do Brasil em busca de um tesouro que não revela ser exatamente o que seus marinheiros pensam. 

Diferentemente da verborragia quase institucional de Caniff (ainda que fosse um mestre na sutileza da empaginação) ou do aspecto zen beatnick de Pratt, Cobiaco imprime muita virulência e força gráfica em sua narrativa. Seu estilo aqui, ainda que magistral na ilustração dos cenários fantásticos e da vegetação selvagem que os piratas atravessam, é rasgadamente abstrato e propositadamente confuso quando se trata de mostrar os personagens. Por que isso? A impressão que fica é a de que Cobiaco tem consciência sobre um aspecto psicológico de sua HQ, um aspecto denso como a vegetação que vira obstáculo para os seus personagens: a revoada de nanquim e o chapadíssimo preto-e-branco, que deixam cenário, homens e mulheres se confundirem, produz, na recepção estética do leitor, o desconforto que sentem aqueles piratas diante do caos de uma terra nova e primitiva. Aqui, o clássico (histórias de piratas!) adquire senso moderno (diria modernista) com uma profunda mistura da experiência visual da HQ (radicalmente desfigurada) com a experiência existencial dos personagens (literalmente desfigurados).

Vale lembrar a inteligência de Cobiaco no diálogo com o material clássico – não apenas Caniff e Pratt, mas também Charlier em Barba Ruiva, Bourgeon em Os Passageiros do Vento, Mozart Couto, Jayme Cortez, etc. –, que, francamente, pouco aparece nos novos autores de HQ brasileira, mais influenciados por outras mídias e por outras HQs contemporâneas. Mesmo com esse visu retro-modernista, Mayo é uma interessante história de aventura, exemplarmente bem pesquisada, com personagens carismáticos na medida certa, paradoxalmente modesta em sua proposta de fabulação. Alguns podem achar os desenhos irregulares ou abstratos demais; outros, a história um pouco juvenil e simplória. A mim agrada a mistura de Brasil com Conan; de Van Gogh com Alex Raymond.

ENTREVISTA

No perfil da editora no Facebook encontra-se a seguinte frase: “Indo onde nenhuma outra editora jamais esteve”. Apenas uma frase de impacto ou vocês realmente acreditam que a Mino tem um diferencial em relação às colegas de mercado editorial? E que diferencial seria esse?

Lauro: É claro que é um trocadilho meio esdrúxulo com o lance da vaca abduzida e uma piada infame com Star Trek, mas talvez tenha um pouco de verdade nisso. Pelo menos, na nossa intenção. É só olhar nosso catálogo. No primeiro ano, lançamos 11 títulos. 10 deles, 100% nacionais. E com um uma qualidade gráfica que raramente vemos, principalmente em autores nacionais: a maneira de trabalhar os títulos e, principalmente, os autores, a maneira de se posicionar, tentamos fazer diferente. Até na obsessão com o nosso catálogo. Se estamos conseguindo é outra história, mas existe uma intenção, sim, em ir além.

Sanchez

Pelos lançamentos da Mino até o momento é possível perceber uma certa ousadia editorial, já que nem todos os títulos da editora tem cara de best seller. Como vocês, internamente, encaram essas tomadas de decisão?

Janaína: Pra nós isso é muito tranquilo. O potencial de venda não é o primeiro motivo para lançarmos um título. Na verdade, nem o segundo. Não que vender não seja importante. Temos a preocupação de fazer vender os livros que lançamos, e não de lançar livros que vendam. Sem contar que às vezes somos surpreendidos. Livros que todo mundo acha que vai estourar de vender, às vezes não vão tão bem quanto se espera. E às vezes títulos que ninguém imagina, vende pra caramba. Quando eu falo que vendemos mais Diego Sanchez que Mike Deodato, as pessoas acham que estamos brincando. Mas é verdade.  Não que o Deo não venda. Ele vende bem. É que ninguém imagina que o Sanchez venda tanto. Mas na Mino ainda não tivemos nenhuma bola realmente fora. Todos os títulos foram no mínimo como esperávamos. As surpresas foram só boas, mas sabemos que vamos ter um fracasso retumbante a qualquer momento e estamos preparados. Faz parte. Por isso que lançamos coisas que realmente gostamos e trabalhamos para fazer os títulos serem um sucesso.

Harmatã, de Pedro Cobiaco

Lauro: Olha só, não sei se tem essa de não ter cara de best seller. O mercado editorial de quadrinhos no Brasil é tão, mas tão pequeno, que muita coisa não é nem ventilada. Tem um monte de certezas que ninguém sabe de onde as pessoas tiram. “Quadrinho nacional não pode ter um bom acabamento, tem que ser barato”, “tal autor não vende”. Porra, como é que sabe se determinado autor não vende se ninguém nunca o lançou de maneira decente? Quando resolvemos fazer relançamento de material independente, falaram que era furada. Surpresa: em um ano tivemos que reimprimir todos os relançamentos. O Harmatã, do Pedro Cobiaco, tá indo para a terceira reimpressão. Isso é demanda reprimida, isso é encontrar as brechas e trabalhar duro. Nego reclamava para cacete, “gibi nacional de ‘desconhecidos’ em capa dura”? BOA SORTE!” Estamos aí mostrando que muitas vezes no nosso mercado falta é um pouco de coragem.

Temos percebido que a autoindulgência e o corporativismo são características que estão se tornando frequentes entre muitos autores independentes (especialmente entre os novatos). Vocês concordam com essa percepção? 

Lauro: De fato é uma questão, mas não sei se existe uma resposta simples para essa autoindulgência, existe um grande número de fatores que acho acabaram desaguando nisso. Um seria uma sensível falta de uma crítica especializada, gente que se debruce sobre esses trabalhos e sirva como baliza para uma garotada. No vácuo da falta de uma crítica mais seria e responsável, proliferam blogs e afins bastante corporativistas que acabam criando grandes bolhas de nada. Acaba que um leitor curioso que queira começar a ler quadrinhos pode ficar perdido porque, segundo a crítica especializada, na sua grande maioria, todo quadrinho é bom. Aí fica difícil! Pode afastar um monte de gente que, estando sem norte, acabe comprando um monte de coisas bem duvidosas.

Janaina: Mas vamos parar pra pensar: não existe crítica no Brasil, né? Tirando uma coisinha ou outra, simplesmente não existe. Começa pelo fato de que a grande maioria das pessoas que fazem “crítica” de quadrinhos trabalham de alguma forma para a “indústria de quadrinhos”. Aí não dá. Que isenção uma pessoa que trabalhe na Panini, tem pra falar da Panini? E não só isenção, como ele vai meter o cacete? Não dá. Com quadrinho nacional, pior ainda. Sem contar que tem um povo que tem uma ideia maluca de que apontar problemas em determinado título é jogar contra quadrinho nacional. Isso é loucura. Existe textos que são maldosos e desnecessários, eu entendo que não valha a pena ficar apontando o quão ruim é um quadrinho de determinado moleque iniciante. Porém, não se pode falar nem de caras consagrados e coleções de sucesso com grandes editoras por trás. Acho ridículo.

Todo editor começou como leitor. Qual a formação de vocês enquanto leitores de quadrinhos?

 O que gostavam de ler na infância e adolescência? Quem eram seus autores e títulos favoritos? Esses gostos permanecem hoje em dia? O que têm lido e gostado ultimamente?

Lauro: Na verdade, fui alfabetizado pelo meu avô com quadrinhos do Fantasma e do Tarzan. Desde então, li basicamente tudo que eu conseguia pôr a mão. Na infância, o que virava a minha cabeça era Conan. Cara, eu amava o Conan do Gil Kane, Fantasma do Team Fantomen (que eram os responsáveis pelas criações de histórias para os títulos escandinavos do Fantasma), principalmente da dupla Norman Worker e César Spadari. E, talvez, a minha grande paixão dessa fase, os títulos de terror da D-Arte: Shimamoto e Colin até hoje estão entre meus quadrinistas prediletos de todos os tempos. Depois disso acho que tenho que citar a Animal. Nem tenho como calcular o impacto da revista na minha formação. Em uma época sem internet, aquilo tudo era simplesmente GIGANTESCO! Poder encontrar todos aqueles trabalhos em uma banca sebosa no ABC paulista... Continuo lendo tudo que eu consigo colocar a mão. O que tenho curtido muito atualmente: coisas do Box Brown, acho que ele caminha rapidamente para virar um gigante. Os dois últimos gibis lidos foram o Sacred heart, da Liz Suburbia, uma história bem honesta sobre toda a estranheza adolescente e esse pequeno holocausto que todo mundo passa. Li a edição impressa da Fantagraphics, mas dá para ler integral no site dela. O outro foi o Black is the color, da Julia Gfrörer, esse li online mesmo, uma sufocante história de marinheiro. Tô de cara com ela, louco para ler outros quadrinhos dela!

Janaína: Eu fui uma leitora voraz desde a infância. Mas como eu tinha uma biblioteca enorme na minha casa, acabava lendo o que tinha lá. E eu lia de tudo, quadrinhos ou literatura. Na infância, lia muita Luluzinha, Recruta Zero e sou completamente apaixonada por Carl Barks até hoje. Lia um monte de coisas diferentes, tinha muita coisa de contracultura, coisas clássicas. Tinha uns quadrinhos alternativos mexicanos, de Corto Maltese a Little Nemo. Passando por terror brasileiro, como Cripta e umas revistinhas de sacanagem. Isso antes dos meus 11, 12 anos. Fui crescendo e lendo Animal, Laerte, Glauco, Angeli. Os primeiros quadrinhos de super-herói que li foram aqueles clássicos que a Globo lançou uma época. O primeiro arco do Sandman, Elektra, Cavaleiro das Trevas, Piada mortal. Fui meio diferente, só conheci esses quadrinhos depois de velha. Deve ser por isso que minha relação com quadrinho de herói seja diferente. O que eu lia na infância era Crumb.

Quais editoras, brasileiras e estrangeiras, vocês admiram e por que?

Lauro: Brasileira tem a Veneta que é de primeira. Rogério é foda. Ele é o cara que queremos alcançar. A cenoura na frente do cavalo. Ainda bem que ele é velho e deve morrer logo (hehe).

Goela Negra

Janaína: A Bolha tem um cuidado tão grande e uns títulos fantásticos. Traduções incríveis e um acabamento gráfico que dá vontade de comer os livros. A Balão faz um trabalho muito bom também. Nem falo do acabamento, são livros mais simples. Porém o Kroll é extremamente competente e as edições saem redondas. Pena que esse ano eles quase não estão lançando nada. Lá fora, Coconino, Retrofit, Fantagraphics, são tantas...

Qual o caminho para se tornar editor de quadrinho no Brasil? Mais do que gostar de quadrinhos, é necessário saber gerenciar um negócio – qual foi a escola de vocês nesse sentido? E o que vocês diriam para quem quer se tornar editora de quadrinhos no Brasil, que dicas dariam?

Janaína: Acho que isso faz uma puta diferença. Eu já tive duas empresas antes, uma por bastante tempo e outra que eu vendi há pouquíssimo tempo. Então essa parte do planejamento, a parte do negócio mesmo, pra gente é bem mais fácil. Acho que esse é um dos problemas que muita editora de quadrinhos enfrenta. As pessoas são apaixonadas por quadrinhos, mas não entendem nada de negócios. Tem que ter planejamento, controle contábil e todo feijão com arroz que todas as outras empresas têm que ter se quiserem ser saudáveis. Não tínhamos experiência direta como editora, porém, eu sou roteirista de formação e Lauro é designer. Então sabemos o que estamos fazendo. O beabá mais braçal do dia a dia de uma editora aprendemos rápido. Nos preparamos para isso e temos amigos que são incríveis.

Quiral

A Mino paga as contas de vocês? Ou é necessário manter uma outra profissão para se sustentar?

Janaína: A Mino já é lucrativa, sim. Acabamos revestindo grande parte desse dinheiro na própria Mino. Acho que dá pra viver de quadrinho, sim. Temos, pessoalmente, uma estrutura bem pesada. Dois filhos em colégios, casa, carros. Não é fácil, mas dá. Como Lauro tem um ótimo emprego, ele se divide entre os dois lugares. Eu até o meio do ano passado tinha outra empresa, mas vendi e agora dedico todo meu tempo à Mino. Pra gente, por enquanto, está sendo uma boa equação.

Qual o palpite de vocês sobre o futuro da produção de quadrinhos no Brasil? (* a pergunta permite devaneios, fiquem à vontade)

Janaína: Às vezes, fico super empolgada. Acho que tudo vai dar certo. Que os quadrinhos estão bombando. Às vezes, fico meio desanimada. Acho que ficou muito mais fácil fazer quadrinhos e tem muita gente boa fazendo. Tem uma galera nova que tá surgindo que dá orgulho de ver. Porém, temos um longo chão pela frente. Só que mais quadrinhos não significa necessariamente quadrinhos melhores. Acho que a saída é o profissionalismo. É ficarmos cada vez mais sérios. Fazer melhor, estudar mais, nos aprofundarmos mais. O mercado precisa ficar mais profissional em todos os sentidos. Vivemos outro momento. O modelo que tínhamos, e que deu super certo no passado com os quadrinhos de larga escala, com poucas exceções, não é mais viável. Temos que criar um novo modelo. E acho que tá indo. Aos trancos e barrancos, mas tá. Quadrinho alternativo tá meio na moda. Só desanima um pouco às vezes a frivolidade e pouca seriedade que muitos autores dão para suas obras. É quase só hype. Só que aí vemos um Felipe Nunes, um Cobiaquinho, uma Bianca, Mazô, Portugal, a Julia, que é incrível, tantos outros que mal saíram das fraldas e estão tão a fim de mergulhar de cabeça e pensar essa parada seriamente que aí meu coração se enche de esperança.  Acho que o futuro vai ser massa!