O que são BDs? Um segundo corte – parte 1: O andarilho dos limbos
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por Ciro I. Marcondes
Mas em quê consiste? Bem, o recorte aqui será pontual e pessoal, podendo ser estendido ad infinitum, de acordo com a vontade deste resenhista de continuar escrevendo a respeito. A ideia de tragar as culturas sci-fi e de fantasia (sempre eminentemente britânicas e americanas – Júlio Verne e Georges Méliès à parte) para dentro do cânone dos quadrinhos nunca foi nova. Basta lembra Flash Gordon, Bucky Rogers, o próprio Superman (coisa derivada do sci-fi pulp em suas origens). O onírico/lisérgico já se anunciava desde os early comics, como comprovam Little Nemo, Félix, Mickey Mouse, etc. Além disso, evidentemente, a longa série de sci-fipulp da EC, qualquer coisa em Tintim, alguma coisa ainda em Mandrake, e até mesmo o Brasil entra no balaio com o sincretismo mecanoide que era Garra Cinzenta. Na Argentina, a partir de El eternauta, o gênero cria uma forte tradição.
Logicamente, tudo que ocorre nos anos 60 – direitos civis americanos, guerra do Vietnã, desbunde, flower power, panteras negras, maio de 68, summer of love, Bob Dylan, Beach Boys e Beatles, libertação da Argélia, descolonização da África, Che Guevara, crise dos mísseis, 2001, tropicalismo, feminismo, nouvelle vague, etc, etc, etc... – acaba por transformar (e transtornar) profundamente o artista dos anos 70, e creio que, nas HQs, Guido Crepax e sua Valentina acabam se tornando um paradigma para gerações de HQs europeias vindouras. Aquela coisa linda – belas, poderosas e libertárias mulheres; abuso de lisergia, drogas e psicodelia; as formas modernas de artes plásticas instiladas no conteúdo e na forma das HQ; e uma dose cavalar de mundos fantástico, sci-fi como leitura do mundo e influência do sonho e do delírio – se tornaria paradigma, ainda que, creio eu, poucos tenham chegado aos pés do mestre italiano.
Portanto, este é um mundo de vastidão cósmica e, no meu caso, vale mais fazer meu próprio guia do que sair por aí arrotando regras. Escrevo sobre quatro álbuns específicos que me impressionam, de autores fundamentais, em quatro posts, e defino aqui, agora, instantaneamente, os subgêneros que lhes cabem. Boa viagem intergaláctica!
2 – Ulysses (de Georges Pichard e Jacques Lob) e a mitologia científica: clássico da Métal Hurlant dos anos 1970, adapta a coletânea de mitos gregos feita por Homero para um curioso contexto em que os deuses – absurdamente cativantes e sensuais – têm o domínio de tecnologias e culturas sci-fi.
3 – Escala em Pharagonescia (Moebius) e a ficção científica lisérgica: juntamente com o roteirista Jean-Pierre Dionet e o quadrinista Phillipe Druillet, Jean Giraud (é, o Moebius mesmo) foi fundador da Métal Hurlant e é até hoje o maior mestre nesta miscelânia. Esta história compõe, junto com a série A garagem hermética, sua obra-prima. Moebius, com sua visão espacial individual e irrepetível, faz da sci-fi esteira para um mundo onde tudo é possível, motivado por “visões”, experiências místicas e psicotrópicas.
1: O andarilho dos limbos – Os demônios do tempo imóvel (Christian Godard e Julio Ribera)
Meus contos se desenhavam num conceito como esse, em que a humanidade, viajando pelo universo havia milhões de anos, encontra um sistema de planetas perfeitamente harmônico, socialmente e evolutivamente controlado por seus habitantes, altamente receptivo a visitantes longínquos. A gente chega lá e esculhamba com tudo, mas não é isso que quero dizer. Quero apenas lembrar meu fascínio pelo conceito do space-opera. Sua gama de combinações e possibilidades, sempre aberto à invenção; sua licença poética para não se preocupar (muito) com a coerência científica; seu namoro com a fantasia. É por isso que, antes de passar propriamente às HQs que possuem relação com o mundo da Métal Hurlant, resolvi falar sobre esta série infanto-juvenil (?) escrita pelo mestre Christian Godard (sem relação com Jean-Luc) e ilustrada no traço muito requintado de Julio Ribera. O andarilho dos limbos começou a ser publicado pela clássica editora belga Dargoud em 1975 e até hoje mantém certa regularidade, tanto no título principal quanto com spin-offs. É uma das mais longevas e melhores séries de Ficção-Científica em HQ e chegou a ser lançada em Portugal como O vagabundo dos limbos (cabe uma tradução do título para o português brasileiro) primeiro pela Livraria Bertrand e depois pela Meribérica-Liber.
Em Os demônios dos tempos imóveis, três aspectos me chamam a atenção. Primeiramente, no arco que inicia a história, o respeito à criação de culturas alienígenas sem o propósito de vincular isso necessariamente ao desenrolar da trama em si. Axle e Musky desembarcam em Omphale, “o planeta dos tempos imóveis”, supostamente perigoso porque não vinculado à Guilda, e lá se deparam com uma paisagem vulcânica, cheia de cavernas e gêiseres, habitada por estranha espécie, os Kanybs. Diante dos medos e boatos que Musky faz questão de informar ao leitor (“famosos por não obederecerem às leis da Guilda e pela prática do canibalismo”), Godard procura elaborar uma pequena “antropologia” como exemplo de criatividade em space-opera. Os Kanybs são criaturas quase ovais (ótimo design), como que feitos de pedra (tipo trolls), com olhos grandes e profundos, e que vivem em um andamento lento, praticamente incomunicáveis.
Kanybs: belas almôndegas |
Deparamo-nos, então, com uma fêmea (bem peituda) desligada do resto do clã, diante da carcaça de um macho morto. Logo descobrimos que as fêmeas grávidas são afastadas do grupo para devorar as carcaças dos mais velhos do clã, gestando o bebê para morrerem logo após o parto. Essa caracterização cultural dos aliens (claramente baseada em culturas indígenas) está longe dos requintes de detalhamento de um Gods themselves (Asimov - leia), mas a antropomorfização não chega a ser um problema especialmente se considerarmos que todo mote da série alegoriza uma exploração da vastidão interior humana, além de sua diversidade.
Esta passagem nos permite visualizar melhor todo o potencial de ilustração de Ribera, de traço fino e claro, usando linda paleta de cores frias, baseada em um estilo sci-fi de realismo clássico, mas com toda a deferência associada à cultura das BDs: sombreamentos quase obsessivos, planos distantes detalhados em minúcias e intensa imersão na concepção de cenários exóticos e verossímeis. Os “três monarcas” com que Axle se defrontará no labirinto são nada menos que três versões dele mesmo: uma, envelhecida e amarga, sem sua Quimera, rei de um mundo mortos-vivos; outro, um jovem petulante e excessivo, trivial e leviano; e por fim uma criança assustada, guardiã obcecada de uma loira linda e espectral, cercado por um exército de brinquedos. A variação onírica dos cenários permite a Ribera recriar a HQ na própria maleabilidade do universo dos sonhos, deixando sua atmosfera tenebrosa e fantasmagórica no primeiro monarca, psicodélica e bucólica no segundo, e neurótica, muito surreal, no terceiro.
Quimera: loiraça |
A busca por si mesmo acaba nos levando a uma terceira grande sacada deste álbum, que é a busca do herói por sua identidade temporal (nesse mesmo sentido, sempre vale ler a excelente história “Futuro imperfeito”, do Hulk de Peter David) enquanto desdobramento de sua busca por uma certa “Quimera”, idealizada, fantasmagórica, muda, e que nunca chega. Não custa aproximar essa relação da obsessão com a fantasia erótica e o sonho tanto com Little Nemo de McCay, que desperta a cada vez que seu sonho se aproxima de uma resolução, quanto com o famoso mito grego de Sísifo, que tem a pedra que carrega pela montanha derrubada sempre que se aproxima de seu destino final. Axle Munshine (como o nome diz), está em uma linhagem mais lunar de heróis românticos, influenciado pela tradição americana, mas subvertendo-a no sentido de que problematiza sua própria existência a partir de sua obsessão erótica e romântica, colocando-a acima da justiça e do “bem”. Pode-se ver que O andarilho dos limbos é um exemplo ideal para se argumentar que, na boa ficção científica, a viagem pela vastidão do cosmos é uma imagem para uma viagem pela vastidão de nós mesmos.
Próximo da série: Ulysses, de Georges Pichard e Jacques Lob.
A linda arte de Julio Ribera |