O que são BDs? Um segundo corte – parte 1: O andarilho dos limbos






















por Ciro I. Marcondes

Dando sequência ao nosso altamente pessoal, idiossincrático e incompleto (reclamações e ausências são bem-vindas – na caixa de comentários) guia pra iniciantes em BDs, vou fazer um pulo ainda mais recortado para falar um pouco sobre um fenômeno que consumiu as HQs francobelgas nos anos 70 e se tornou influência maior para os quadrinhos adultos desde então. Aqui no Brasil, caras como Mozart Couto e Watson Portela rapidamente aderiram ao apelo sci-fi-erótico-lisérgico que o surgimento da revista (1975, França) Métal Hurlant disseminou no imaginário dos quadrinhos. A versão americana, Heavy Metal, (que sempre teve muito pouca relação com a equipe editorial que produzia a original francesa) acabou cristalizando o conceito e eternizando-o. Mesmo assim, esta mistura específica de subculturas pop é ainda signo de HQ europeia, e determina um ponto de virada retumbante na cultura da BD, engolfando outros países de língua latina, como Espanha e Portugal, definitivamente para dentro deste imaginário.

Mas em quê consiste? Bem, o recorte aqui será pontual e pessoal, podendo ser estendido ad infinitum, de acordo com a vontade deste resenhista de continuar escrevendo a respeito. A ideia de tragar as culturas sci-fi e de fantasia (sempre eminentemente britânicas e americanas – Júlio Verne e Georges Méliès à parte) para dentro do cânone dos quadrinhos nunca foi nova. Basta lembra Flash Gordon, Bucky Rogers, o próprio Superman (coisa derivada do sci-fi pulp em suas origens). O onírico/lisérgico já se anunciava desde os early comics, como comprovam Little Nemo, Félix, Mickey Mouse, etc. Além disso, evidentemente, a longa série de sci-fipulp da EC, qualquer coisa em Tintim, alguma coisa ainda em Mandrake, e até mesmo o Brasil entra no balaio com o sincretismo mecanoide que era Garra Cinzenta. Na Argentina, a partir de El eternauta, o gênero cria uma forte tradição.

Logicamente, tudo que ocorre nos anos 60 – direitos civis americanos, guerra do Vietnã, desbunde, flower power, panteras negras, maio de 68, summer of love, Bob Dylan, Beach Boys e Beatles, libertação da Argélia, descolonização da África, Che Guevara, crise dos mísseis, 2001, tropicalismo, feminismo, nouvelle vague, etc, etc, etc... – acaba por transformar (e transtornar) profundamente o artista dos anos 70, e creio que, nas HQs, Guido Crepax e sua Valentina acabam se tornando um paradigma para gerações de HQs europeias vindouras. Aquela coisa linda – belas, poderosas e libertárias mulheres; abuso de lisergia, drogas e psicodelia; as formas modernas de artes plásticas instiladas no conteúdo e na forma das HQ; e uma dose cavalar de mundos fantástico, sci-fi como leitura do mundo e influência do sonho e do delírio – se tornaria paradigma, ainda que, creio eu, poucos tenham chegado aos pés do mestre italiano.

Portanto, este é um mundo de vastidão cósmica e, no meu caso, vale mais fazer meu próprio guia do que sair por aí arrotando regras. Escrevo sobre quatro álbuns específicos que me impressionam, de autores fundamentais, em quatro posts, e defino aqui, agora, instantaneamente, os subgêneros que lhes cabem. Boa viagem intergaláctica!


1 -  Le vagabond des limbes (“O andarilho dos limbos”, de Christian Godard e Julio Ribera) e a space-opera interdimensional ou onírica: esta brilhante e longeva série francesa não é tão adulta quanto o material da Métal Hurlant. Surgiu nos anos 1970 pela tradicional editora Dargaud, e mistura fantasia científica (tipo Star Wars) com viagens astrais, outras dimensões e outros temas próprios ao campo do fantástico.


2 – Ulysses (de Georges Pichard e Jacques Lob) e a mitologia científica: clássico da Métal Hurlant dos anos 1970, adapta a coletânea de mitos gregos feita por Homero para um curioso contexto em que os deuses – absurdamente cativantes e sensuais – têm o domínio de tecnologias e culturas sci-fi.


3 – Escala em Pharagonescia (Moebius) e a ficção científica lisérgica: juntamente com o roteirista Jean-Pierre Dionet e o quadrinista Phillipe Druillet, Jean Giraud (é, o Moebius mesmo) foi fundador da Métal Hurlant e é até hoje o maior mestre nesta miscelânia. Esta história compõe, junto com a série A garagem hermética, sua obra-prima. Moebius, com sua visão espacial individual e irrepetível, faz da sci-fi esteira para um mundo onde tudo é possível, motivado por “visões”, experiências místicas e psicotrópicas.

4 – Yragael ou la fin des temps (“Yragael ou o fim dos tempos”, de Phillipe Druillet e Michel Demuth) e a fantasia científica filosófica: nesta obra maior e megalomaníaca de Druillet e Demuth, os quadrinhos se tornam grandes painéis sobre os temas mais ancestrais, as guerras mais arquetípicas, os renascimentos mais mitológicos. 


1: O andarilho dos limbos – Os demônios do tempo imóvel (Christian Godard e Julio Ribera)

Novamente de volta aos bons anos 90 (segunda metade), cheguei a escrever uma boa quantidade de contos (pelo menos uns 20) baseados em um universo de ficção científica que eu mesmo criara (devo confessar que para jogos de RPG) – hoje tudo ilegível, salvo um conto e um outro incompleto, escrito já na fase “adulta”. Como jovem estudante de literatura e ávido devorador de Dostoievsky, Machado, Rosa, Kafka, Shakespeare e os gregos todos, podia parecer ainda estranha minha contínua adesão à literatura de ficção-científica (favoritos: Heinlein, Clarke, Silverberg), que certamente nutre alguma pobreza estilística (foda dizer, mas é verdade), mas compensa muito nos sistemas criativos, em alegorias intrigantes, em aventuras e mundos inesquecíveis. É este último nicho que engloba a space-opera, derivação bem pop do sci-fi que mistura geralmente universos vastos, incluindo muitos planetas e até galáxias (por abstruso que possa parecer, à luz da física atual, viajar de uma galáxia pra outra), polícias espaciais, impérios estelares, raças exóticas, culturas diversas alienígenas e quase sempre um twist de fantasia, preservando a beleza do inexplicado num mundo “cientificamente” dominado. Star wars acabou se tornando a mais famosa space-opera.

Meus contos se desenhavam num conceito como esse, em que a humanidade, viajando pelo universo havia milhões de anos, encontra um sistema de planetas perfeitamente harmônico, socialmente e evolutivamente controlado por seus habitantes, altamente receptivo a visitantes longínquos. A gente chega lá e esculhamba com tudo, mas não é isso que quero dizer. Quero apenas lembrar meu fascínio pelo conceito do space-opera. Sua gama de combinações e possibilidades, sempre aberto à invenção; sua licença poética para não se preocupar (muito) com a coerência científica; seu namoro com a fantasia. É por isso que, antes de passar propriamente às HQs que possuem relação com o mundo da Métal Hurlant, resolvi falar sobre esta série infanto-juvenil (?) escrita pelo mestre Christian Godard (sem relação com Jean-Luc) e ilustrada no traço muito requintado de Julio Ribera. O andarilho dos limbos começou a ser publicado pela clássica editora belga Dargoud em 1975 e até hoje mantém certa regularidade, tanto no título principal quanto com spin-offs. É uma das mais longevas e melhores séries de Ficção-Científica em HQ e chegou a ser lançada em Portugal como O vagabundo dos limbos (cabe uma tradução do título para o português brasileiro) primeiro pela Livraria Bertrand e depois pela Meribérica-Liber.

Apesar de não ser tão chegada aos excessos de sexo, filosofia e lisergia que caracterizaram a geração da Métal Hurlant, O andarilho dos limbos fez parte da ascensão deste então novo gênero das BDs que valorizaremos neste corte. Mesmo assim, não é uma HQ pudica e busca lindo equilíbrio entre um imaginário infanto-juvenil (tipo Salgari, Stevenson, Swift, etc.) e uma possibilidade de leitura adulta. O álbum que comento aqui, Os demônios do tempo imóvel (Les demons du temps immobile) foi publicado em 78 e é um dos mais líricos da série. O herói em questão é Axle Munshine, espécie de Flash Gordon sagitariano, antigo conciliador (portanto, embaixador e explorador) da Guilda galáctica que acaba se tornando foragido e pária. Axle então viaja através do cosmos em sua nave (hoje kitsch), o Golfinho de prata (ah! Os anos 70...), juntamente com seu sidekick andrógino Musky, um menino(a) preso na idade 13 anos (há 300 anos), física e mentalmente. O motivo do banimento de Axle é sua persistência em invadir o mundo dos sonhos (que, segundo o mote geral da série, deve se manter separado) para buscar uma figura hipnótica e irresistível, uma beldade loira convenientemente apelidada “Quimera”, levando-o constantemente à fronteira entre o real e a fantasia. Axl é irascível e fatal como um Príncipe Valente, mas ao mesmo tempo obstinado e enlouquecidamente apaixonado, como um Dom Quixote.


Kanybs: belas almôndegas
 Em Os demônios dos tempos imóveis, três aspectos me chamam a atenção. Primeiramente, no arco que inicia a história, o respeito à criação de culturas alienígenas sem o propósito de vincular isso necessariamente ao desenrolar da trama em si. Axle e Musky desembarcam em Omphale, “o planeta dos tempos imóveis”, supostamente perigoso porque não vinculado à Guilda, e lá se deparam com uma paisagem vulcânica, cheia de cavernas e gêiseres, habitada por estranha espécie, os Kanybs. Diante dos medos e boatos que Musky faz questão de informar ao leitor (“famosos por não obederecerem às leis da Guilda e pela prática do canibalismo”), Godard procura elaborar uma pequena “antropologia” como exemplo de criatividade em space-opera. Os Kanybs são criaturas quase ovais (ótimo design), como que feitos de pedra (tipo trolls), com olhos grandes e profundos, e que vivem em um andamento lento, praticamente incomunicáveis.

Deparamo-nos, então, com uma fêmea (bem peituda) desligada do resto do clã, diante da carcaça de um macho morto. Logo descobrimos que as fêmeas grávidas são afastadas do grupo para devorar as carcaças dos mais velhos do clã, gestando o bebê para morrerem logo após o parto. Essa caracterização cultural dos aliens (claramente baseada em culturas indígenas) está longe dos requintes de detalhamento de um Gods themselves (Asimov - leia), mas a antropomorfização não chega a ser um problema especialmente se considerarmos que todo mote da série alegoriza uma exploração da vastidão interior humana, além de sua diversidade.

Assim, o prosseguimento da história nos leva a um segundo atravessamento que chama a atenção: Axle e Musky entram em uma caverna e se encontram com o xamã espiritual e governante dos Kanybs, o único capaz de falar a língua geral. Cobrando um antigo favor, Axle insiste ao xamã que o deixe adentrar num certo “labirinto dos três monarcas”, uma espécie de portal interdimensional que o levará a um universo de tempo estático e transversal, arriscando ter sua consciência aprisionada e seu corpo esvaziado. Este arco concentra quase todo o volume da história, e nos revela o grau de obstinação de Axle para encontrar sua Quimera, ao mesmo tempo em que, no timing da HQ de aventura, precisa enfrentar seus próprios “demônios” (enriquecendo o trocadilho do título, certo? Os demônios, afinal, não eram os Kanybs).

Esta passagem nos permite visualizar melhor todo o potencial de ilustração de Ribera, de traço fino e claro, usando linda paleta de cores frias, baseada em um estilo sci-fi de realismo clássico, mas com toda a deferência associada à cultura das BDs: sombreamentos quase obsessivos, planos distantes detalhados em minúcias e intensa imersão na concepção de cenários exóticos e verossímeis. Os “três monarcas” com que Axle se defrontará no labirinto são nada menos que três versões dele mesmo: uma, envelhecida e amarga, sem sua Quimera, rei de um mundo mortos-vivos; outro, um jovem petulante e excessivo, trivial e leviano; e por fim uma criança assustada, guardiã obcecada de uma loira linda e espectral, cercado por um exército de brinquedos. A variação onírica dos cenários permite a Ribera recriar a HQ na própria maleabilidade do universo dos sonhos, deixando sua atmosfera tenebrosa e fantasmagórica no primeiro monarca, psicodélica e bucólica no segundo, e neurótica, muito surreal, no terceiro.


Quimera: loiraça
A busca por si mesmo acaba nos levando a uma terceira grande sacada deste álbum, que é a busca do herói por sua identidade temporal (nesse mesmo sentido, sempre vale ler a excelente história “Futuro imperfeito”, do Hulk de Peter David) enquanto desdobramento de sua busca por uma certa “Quimera”, idealizada, fantasmagórica, muda, e que nunca chega. Não custa aproximar essa relação da obsessão com a fantasia erótica e o sonho tanto com Little Nemo de McCay, que desperta a cada vez que seu sonho se aproxima de uma resolução, quanto com o famoso mito grego de Sísifo, que tem a pedra que carrega pela montanha derrubada sempre que se aproxima de seu destino final. Axle Munshine (como o nome diz), está em uma linhagem mais lunar de heróis românticos, influenciado pela tradição americana, mas subvertendo-a no sentido de que problematiza sua própria existência a partir de sua obsessão erótica e romântica, colocando-a acima da justiça e do “bem”. Pode-se ver que O andarilho dos limbos é um exemplo ideal para se argumentar que, na boa ficção científica, a viagem pela vastidão do cosmos é uma imagem para uma viagem pela vastidão de nós mesmos.

Próximo da série: Ulysses, de Georges Pichard e Jacques Lob.

            
A linda arte de Julio Ribera

O que são BDs? Pt.2


por Ciro I. Marcondes

Conforme vimos no primeiro post sobre a cultura da BD clássica, as revistas que coletavam jovens autores dos anos 40-60 na França e na Bélgica – Tintim e Spirou – foram responsáveis por uma verdadeira diáspora na europeização (especialmente francófona) das histórias em quadrinhos. E antes que a BD atingisse sua faceta adulta, erótica e delirante (herdeiros da Metal Hurlant), esses quadrinhos supostamente infantis foram responsáveis por construir um imaginário estilístico e temático: paródico, grotesco, cartunesco e especialmente denso em termos de humanidade para os personagens. Aqui, mais algumas BDs que se destacaram nesta trajetória.

1 – GASTON LAGAFFE – Franquin

André Franquin foi um dos mais geniosos artistas belgas a saírem do jornal/revista Spirou durante seu apogeu nos anos 50, e muito disso graças a uma transfiguração de si mesmo em seu personagem mais famoso, o gaffeur patético e picareta Gaston Lagaffe. Este personagem, que já nesta época transpirava o espírito de contradição entre o desejo de liberdade moderno e o andamento aborrecido e rotineiro no capitalismo avançado, tem interessante reverberação nas adoráveis comédias italianas de Mário Monicelli e Dino Risi. Franquin em princípio se destacou em história de jornal, de um página, conforme era costume nas HQs mundiais da primeira metade do século. Gaston ainda carregava a bandeira de ser um trabalho metalinguístico para as edições da revista Spirou, pois ele trabalha numa ficctícia redação da própria revista, não raro cruzando com outros personagens importantes da publicação, como o próprio Spirou e Fantasio.

De certa maneira, o humor aloprado e politicamente incorreto de Gaston, junto com a habilidade minuciosa de Franquin para desenhar expressões faciais e detalhes caricaturescos para seus personagens é que popularizou esta HQ como uma das mais avançadas de sua época. Gaston é uma espécie de “orêia-seca” da redação, folgado e preguiçoso, cuja importância resume-se basicamente em enviar a correspondência e consertar coisas. A intenção de mostrar um escritório como um ambiente insuportável e altamente procrastinável antecipam alguns dos produtos de humor contemporâneos mais refinados sobre o cotidiano do trabalho, como a série The office e o Vida de estagiário, do Alan Sieber. Tudo isso somado a um conjunto carismático de coadjuvantes e belas garotas (vela ressaltar a habilidade preciosa dos autores da BD clássica em desenhar adoráveis caricaturas da beleza feminina), além das aspirações desastrosas de Lagaffe em sair do detestável ambiente da redação tornando-se inventor (ainda não tão longe das aspirações dos jovens contemporâneos que trabalham em escritório), que geram ótimos plots. Acho que é motivo suficiente para considerar essa HQ um item obrigatório, especialmente se buscamos algo capaz de te conquistar em uma só página.


2 – SPIROU E FANTASIO – fase Janry e Tome

O personagem Spirou é uma criação tão antiga quanto o Super-Homem e foi um dos pilares tanto para a consolidação da editora Dupuis (fundada pelo visionário Charles Dupuis), quanto pela sobrevivência da Revista Spirou, quanto pelo crescimento da HQ franco-belga. Spirou é um simpático grumete (ajudante) de hotel, virtuoso e bem-intencionado, à maneira de Tintim, com o adicional de sua timidez ser um ingrediente irresistível a belas garotas. O coadjuvante Fantasio, um fotógrafo mais descolado e de arquétipo mais politicamente incorreto e malandro, foi criado já nos 40, e a série passou pelas mãos de vários mestres da BD belga, como Rob-Vel, Jijé e teve fase áurea nas mãos de Franquin. No nosso caso, vale destacar a fase mais contemporânea, desenvolvida ao longo de 20 anos pelo desenhista Janry (Jean-Richard Geurts) e pelo roteirista Tome (Phillipe Vandevelde). Nas mãos destes autores os personagens ganharam tom bem mais aventuresco e de espionagem, com interessantes doses de romance e erotismo. Considerando que Spirou e Fantasio é tradicionalmente uma HQ infantil, é admirável as fronteiras entre o mundo das crianças, dos adolescentes e dos adultos que a série quebra com elegância e precisão narrativa, sem insultar ou superestimar a inteligência infantil, tudo isso ajudado pelo fantástico e carismático talento gráfico de Janry. Os textos completos de Tome, cheios de referências interessantes e aprofundamentos narrativos à Will Eisner, conferem o selo de qualidade definitivo para esta fase da série. Como se já não bastasse, a dupla ainda é responsável pela série Le petit Spirou (“O pequeno Spirou”), uma acertada e lasciva versão infantil dos personagens, capaz de fazer os roteiristas de Turma da Mônica Jovem desejarem abandonar suas carreiras para prestar concurso público.

3 – LUCKY LUKE -  Morris e Goscinny

Antes do monstruoso e avassalador sucesso de Astérix, Goscinny – um dos grandes escritores de HQ da história – trabalhou com o não menos lendário desenhista Morris, da primeira leva de grandes autores belgas. O resultado, durante mais de dez anos, foram as incrivelmente famosas histórias do cowboy monossilábico Lucky Luke, que traziam o estilo errante e dramaticamente preciso de Goscinny ao traço mais fino e artístico de Morris. O resultado, mesmo que seja mais antiquado e menos arrojado que o posterior Asterix, é uma HQ histórica e fenomenal que se junta à vasta produção dos fumetti italianos e aos filmes de bangue-bangue spaghetti nos anos 70 como uma tentativa de a cultura europeia construir sua própria reflexão – dentro do pop, claro – de um universo e uma categoria artística exclusivamente americanos. A aproximação das culturas europeias com o distante mundo do velho-oeste curiosamente começa com um embargo de importação de gibis (anos 40) americanos durante e após a segunda guerra, obrigando os europeus a escreverem historia de bangue-bangue se quisessem ter contato com isso. Lucky Luke talvez seja um dos produtos mais bem-acabados dessa cultura, sendo ambiguamente entusiastas e críticos do passado norteamericano. Tantas as paisagens de Morris quanto os personagens de Goscinny são devedores e dignos renovadores do western clássico americano, amplificado porém por um senso de humor e um olhar cético típico da cultura francófona.

4 – UMPA-PÁ – Goscinny e Uderzo

Umpa-pá (Oumpah-pah) é de certa maneira um complementador de Lucky Luke e também um outro lado da inteligência quadrinística mostrada em Asterix por Goscinny. Mesmo que não tenha sido um grande sucesso como os anteriores, esta HQ parece subestimada mais por aspectos fortuitos do mercado e do timing do seu lançamento do que pela qualidade artística. Vamos falar sério: Umpa-pá foi criado na mesma época de Asterix, pelo mesmo escritor e mesmo desenhista. O apego imediato que o público francês e logo mundial teve pelo inigualável subtexto político de Asterix certamente ajudou não apenas a ignorar as histórias da América colonial de Umpa-pá como para fazer seus autores desistirem da publicação após 5 álbuns. O tempo, porém, sempre dá abertura às obras-primas, e hoje podemos ler a incrível alegoria colonial das histórias do guerreiro indígena Umpa-pá (um tipo escoteiro, que tem dificuldade em processar não só a cultura do homem branco, mas especialmente os entrecruzamentos sociais entre as culturas) como uma das visões mais antecipadoras (estamos falando dos anos 50) do debate humanista do multiculturalismo e do pós-colonialismo a partir dos anos 70. Muito antes que o cinema sonhasse em reverter as relações de poder cultural no passado colonial das américas, os quadrinhos investiam neste tema de maneira lúdica e ousada.

ESPANHA

O universo das HQs espanholas não é necessariamente tão próximo às BDs e ainda falta alguém aqui neste blog para fazer uma examinação mais completa deste vasto e desconhecido continente que são los cómics (mas estamos cuidando disso!). No entanto, com um acento mais mediterrâneo e traço mais grosseiro e rústico, é lógico que a mistura entre as fronteiras do cômico, do dramática, do realismo e do cartunesco, assim como a permuta entre mundos infantis, adolescente e adultos também influenciou HQs populares da Espanha, e cabe um pequeno comentário sobre uma delas:

5 – MORTADELO E SALAMINHO- Francisco Ibáñez

O temperamento ibérico e mediterrâneo dos espanhóis produz ótimos efeitos quando o modelo plural das BDs francófonas se adapta ao talento de Ibáñez, um dos grandes “magos del humor” das HQs de língua espanhola. Mortadelo e Salaminho (Mortadelo y Filemón) surgiram (1958) um pouco depois do esplendor da escola belga, mas pode-se dizer que está alinhado em um profundo movimento de renovação da HQs de línguas latinas. Os quadrinhos de Ibáñez, sobre dois agentes secretos insuperavelmente estúpidos, são recheados de chistes grosseiros e escatologia, além de piadas mais diretas e um vínculo bem direto com acontecimentos midiáticos, políticos e éticos que atravessam os anos junto com a série. Este apelo mais rústico de Mortadelo e Salaminho torna esta HQ menos poética e elegante que as BDs francófonas, mas Ibañez tem sua maneira de compensar com uma quadrinização hiper-meticulosa com belo trabalho em onomatopeias, linhas de movimento, hipérboles hilárias e insistente repetição de gags e cenas, apostando numa narrativa propositadamente irritante e neurótica. 

O que são BDs? Pt. 1

por Ciro I. Marcondes

BD (bedê) vem da designação francesa bande desinée (“banda desenhada”, como se diz em Portugal, ou simplesmente uma “tira desenhada”). Graças a um domínio bastante substancioso do quadrinho de língua francesa na produção europeia, é comum que praticamente toda produção do continente esteja relacionada ao universo das BDs. De uma forma metonímica, pode-se dizer que a HQ europeia, ou no mínimo a brilhante produção franco-belga, se identifica com as origens da BD. Isso não lima a importância de outras manifestações quadrinísticas da cultura europeia, como os fumetti (quadrinho de banca italiano), por exemplo, ou as origens do quadrinho de tabloide britânico, que se confude com as próprias origens das HQs. Além disso, estamos fazendo aqui um corte bastante específico, de BDs que se originam a partir de Tintim, assemelhados especialmente pelo traço, cartunesco, e por uma imersão inteligente no mundo adulto a partir de situações que fazem fronteira clara com o exagero, a fantasia, a história, a aventura, enfim, um universo próprio, fundamentado em narrativas simples, mas em geral elegantes e de plena consciência e domínio sobre as possibilidades expressivas dos quadrinhos. Os quadrinhos europeus são incrivelmente vastos e especializados, e se proliferam em culturas nas quais esta forma de expressão há muitas décadas deixou de ser um entretenimento infantil. Logicamente, a revolução que parte da revista Metal hurlant e todo um aprofundamento no campo da fantasia, erotismo e ficção científica merece um tópico à parte. Assim como o quadrinho experimental, o faroeste, as histórias de piratas, o noir europeu, entre tantos outros gêneros importantes.

1 - TINTIM (Tintin): Hergé

Por vezes, é comum que se façam ressalvas a Hergé (Rémi, Georges – RG) por conta de algum conteudo enviesadamente político ou colonialista – digamos, não antropologicamente correto segundo os padrões de hoje – em alguns de seus primeiros álbuns. Bem, temos de relativizar isso, logicamente. Hergé começou a escrever sua obra-prima Tintim ainda nos anos 20, quando a antropologia americana (de Ruth Benedict e Margaret Mead, mulheres formidáveis), essa que nos ensinou a relatividade cultural, estava ainda em seus passos iniciais. Fôssemos pensar assim, teríamos de proibir da leitura de autores como Herbert Spencer ou Monteiro Lobato.

A questão é que uma HQ como Tintim (tantan, na pronúncia francesa), que teve seu derradeiro álbum publicado em 1976, possui tantas qualidades gráficas, narrativas e temáticas que seria uma tolice falar sobre qualquer outra coisa neste momento. Atualmente, é comum que as pessoas tenham certa preguiça de ler Tintim, por mais que surjam novas e belas edições de seus álbuns. Isso se dá talvez por falta de uma leitura contextualizada e o entendimento de que esta é uma obra essencialmente da primeira metade do século. Aos olhos cínicos do leitor atual, Tintim é romântico, ingênuo, enfadonho, previsível.

Porém, para exaltarmos a necessidade de se ainda ler Tintim, cabe talvez apenas enumerar alguns atributos básicos:
1) Tintim não é uma história de super-heróis. Pelo contrário, surgiu antes deles, e traz, mais ou menos como Tom Sawyer ou Apanhador no campo de centeio, a criança/adolescente como protagonista intuitivo e sagaz. Um protagonista arguto, que valoriza possibilidades realistas de solução dos problemas, cujos coadjuvantes não são menos carismáticos e palpáveis e saudavelmente politicamente incorretos.
2) Tintim ainda tem um mundo a apresentar aos seus leitores. Podemos ir ao Congo, às arábias, à China, à Lua (em álbum muito detalhado e coerente em relação ao mapeamento lunar, escrito antes de Apolo 11). Olhando ao meu redor, vejo que a maioria das pessoas ainda não sabe quase nada sobre lugares como esses.
3) Tintim tem pegada clássica, de pistas a serem seguidas pelo leitor, mas Hergé não deixava de ser um mestre da narrativa por isso. Seu domínio do tempo na HQ, fragmentando quadros e inserindo microsegundos em incrível detalhismo espacial, ainda é exemplar para a maioria dos quadrinistas mundiais.
4) O traço de Hergé fundamenta praticamente tudo que conhecemos de uma vertente franco-belga em quadrinhos de aventura, num caricaturismo contido, ainda delineado pela realidade, fundador dos quadrinhos em estilo linha-clara. É um traço fino, detalhista, elegante e limpo.
5) Ao contrário do que se alardeia ordinariamente, Will Eisner não inventou a graphic novel nos anos 70 (pasmem!). Já nos anos 30 Hergé lançava álbuns de histórias longas, desenvolvidas como romances, com pleno domínio do fôlego narrativo em HQs.
6) Capitão Haddock, um alcoólatra impulsivo e de bom coração que... nunca deixa de ser alcoólatra.




2. ASTÉRIX: Uderzo e Goscinny

Se considerarmos como critério a estrutura narrativa clássica em HQ, a longevidade, popularidade, cristalina qualidade imaginativa e capacidade de contar histórias, Asterix seria sério candidato a melhor HQ da história. Levando a cabo a estética de admirável ousadia e inventividade trazido por Hergé, o Asterix clássico tem textos de René Goscinny, já antes celebrado pelo humor refinado de Lucky luke, mas muito mais debochado, especial e calibrado na série do famosíssimo gaulês. Ao seu lado, o traço de Uderzo, que seguiu com os textos da série após a morte de Goscinny nos anos 70. Uderzo, que praticamente redefiniu o detalhamento e a abordagem visual em BD, sendo capaz de criar uma identificação própria, sua, em cada etnia, cada padrão arquitetônico, cada peça indumentária e cada indivíduo dentre as centenas de variedades que aparecem na antiguidade mostrada em Asterix. No caso desta HQ não poderíamos nos limitar a apenas dizer que os personagens são carismáticos e inesquecíveis. A galeria genial e geniosa dos gauleses e romanos é tão fértil e aprofundada na série que podemos estipular um tipo de criação mitológica contemporânea, da mesma maneira que se faz com a criações de Tolkien para O senhor dos anéis
Os personagens correspondem a arquétipos que se enquadram tanto na tipologia da antiguidade (soldados, ferreiros, chefes, césares, matronas, comerciantes, generais, barqueiros, gladiadores, arquitetos, escribas, intelectuais, feirantes, etc.) quanto nas relações muito peculiares da vida contemporânea (sendo evocados o jornalismo, o comércio, a construção, as guerras, as culturas modernas, a política, tudo com escarninho, mas brilhantemente bem dosado, humor de modelo francês). Desta maneira, Asterix ainda fornece fértil diálogo e consciência sobre a História, produzindo um tipo de dialética instantânea e mítica, capaz de divertir, ensinar e ser um sofisticado produto de arte, tudo ao mesmo tempo. As páginas grandes, carregadas de desenhos personalíssimos, detalhados em minúcias, estão envolvidas em narrativas potentes e equilibradas. Goscinny tinha pleno domínio do tom que deveria ser vertido nos quadros, de maneira a não desandar a história, aplicando grafismos geniais, referências escondidas e deformação nas fontes e onomatopeias, prescindindo dos diálogos quando podia, deixando os quadros e sons se contarem por si. Personagens como Asterix e Obelix, passeando em arte tão bem dominada e sincera, acabam lembrando, no fim das contas, seres bíblicos como Davi e Golias, ou mitológicos como Ulisses e o Ciclope, ou rei Minos, o Minotauro e Ariadne – coisas de eras, histórias, pessoas e narrativas mais puras e profundas. Após a morte de Goscinny a série tem um decaimento bastante vertiginoso. Então é melhor recomendar os álbuns publicados apenas até meados dos anos 70, finalizando um era poderosa nas HQs.



3 – OS SCHTROUMPFS (SMURFS): Peyo

Os anos 50 foram sem dúvida a era de ouro da BD clássica, quando as histórias em quadrinhos europeias conseguiram romper definitivamente o julgo das comics americanas e passaram, cada país a seu modo, a transformar as HQs do velho mundo em fenômenos culturais autônomos. No caso da Bélgica, duas revistas que atingiram seu esplendor nesta época foram determinantes para solidificar a cultura das HQs francófonas, exercendo obviamente grande influência no quadrinho francês. A Revista Tintim era editada por Hergé, trazendo, é claro (mas não só) sua criação principal, e foi responsável por fundar a linhagem da HQ de linha clara. Por outro lado, a Revista Spirou, que, entre idas e vindas, existia desde o período entre-guerras, abriu espaço para uma verdadeira constelação de grandes artistas franco-belgas de traço mais caricatural e viés cômico e crítico, dentre eles André Franquin, Morris.. e Peyo. 

De certa maneira, ao lado de Hergé, Peyo (Pierre Culliford) pode ser considerado um análogo francófono de Walt Disney, porque logo cedo a capitalização de seus personagens se tornou maior do que suas histórias em quadrinhos, e o próprio autor deixou de produzi-las pessoalmente para ir cuidar de franquias, merchandisings, parques temáticos e produtos baseados em suas criações improváveis e fascinantes. Dono de uma capacidade imaginativa que rivaliza com a de Goscinny, Peyo possuia natural senso de construção narrativa, e suas BDs estão entre as mais prazerosamente legíveis dentre os mestres franco-belgas. Sua primeira criação de sucesso foi a série Johan e Pirlouit, situada em um adorável universo medieval onde temos como protagonista um jovem escudeiro e seu ajudante ranzinza e aloprado que servem como buchas-de-canhão para os mais cômicos e estapafúrdios problemas do reinado local. Já nesta série Peyo demonstra completo domínio do tempo nas HQs, usando páginas inteiras sem mudar de cenário e criando grande número de situações e ações não-dialogadas. Impressiona sua natural e seletiva capacidade de saber o que mostrar e o que não mostrar em uma narrativa que segura e abre os requadros com timing muito preciso e brilhante dinamismo. Seus personagens são desengonçados e não conseguem fazer nada direito, contrapondo, já nos anos 50, aos virtuosismo tolo dos heróis americanos. 

Os Schtroumpfs, que ficaram conhecidos em nossa cultura pela denominação em língua inglesa – os Smurfs: realmente é difícil pensar em um não-francófono se acostumando a pronunciar o termo original, que é difícil até para os franceses, apesar de ser exatamente esta a piada do nome – , aparecerem em um dos melhores álbuns da série Johan e Pirlouit, “A flauta de seis schtroumpfs”, de 1958, e posteriormente ganharam uma série que hoje contabiliza mais de 20 álbuns, transformados em histeria global após a série animada da Hanna-Barbera (supervisionada por Peyo) nos anos 80. Esta história colocava Johan e Pirlouit de encontro com um lugar adimensional e feérico, o “país maldito”, onde eles teriam de recorrer à ajuda de pequenos gnomos azuis, mal-humorados, excêntricos e irascíveis (mais afrancesados que suas contrapartidas folclóricas do norte da grã-bretanha), que se comunicam usando a impronunciável palavra schtroumpf como verbos, adjetivos e substantivos, tornando difícil uma comunicação que não fosse entre eles. 

Nesta primeira história, o Schtroumpfs parecem bem mais uma massa impulsiva e homogênea de pequenos diabinhos azuis do que uma comunidade organizada em que cada cidadão possui uma característica própria (como vemos no desenho animado). Porém, mesmo com uma aproximação mais clara com as sociedades humanas nos álbuns a partir dos anos 80, as HQs dos Schtroumpfs até hoje não perderem sua diretriz não-maniqueísta, em que seus protagonistas são desarranjados e flutuantes, com grande quantidade de arquétipos egoístas, mesquinhos e dignos de pena. Suas personalidades falastronas e enxeridas de certa maneira ajudaram as BDs a não se distanciarem do gênio voluntarioso do europeu continental. O antagonismo entre o Grande Schtroumpf (Papai Smurf), único ser de bom senso no país maldito, e o alucinado, patético e misantropo bruxo Gargamel (o devorador de Schtroumpfs) ainda conta entre os mais clássicos e impagáveis pares de nêmesis dos quadrinhos, não deixando dúvidas de que esta série é famosa por apelar ao delirante e ao irracional, mas ao mesmo tempo tem o mérito de ajudar a fundar, esteticamente e tematicamente, a tipologia de todo um universo nas HQs mundiais.

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