Algumas palavras... antes de Before Watchmen



Sim, ficamos um mês de férias, sem avisar. Deem um desconto. O povo aqui tem vida. Mas tem mais coisa pra mostrar em Raio Laser. Preguiçosamente, depois dos nossos orgulhosos dois dias de Omelete, retornamos. E quem puxa o bonde é o colaborador Lima Neto, dono da Kingdom Comics, figura onipotente das HQs em Brasília, etc, etc ("bocejo") que traz texto reflexivo, com enorme potencial de polêmicas, sobre a famigerada "Before Watchmen" (eu, na minha humilde desatenção, digo que parece maneiro). Gostaria de salientar que tenho orgulho de ter Lima como colega no PPG-COM da UnB. Valeu Limão! (CIM)
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por Lima Neto

“Os quadrinhos são os filhos bastardos da imprensa com o mercado” disse Art Spiegelman certa vez (Art Spiegelman, caso você tenha entrado neste site por engano à procura de promoções em tratamento estético a laser, é um dos principais quadrinistas a chamar a atenção do grande público para a arte das HQ´s, e seu potencial é para abordar temas mais sérios e espinhosos como campos de concentração e antissemitismo, caso de sua obra-prima Maus). E como mercado e HQ´s mainstream são meus assuntospreferidos para tratar aqui, evoco a fala de Spiegelman e acrescento que estes filhos, em sua encarnação mais mercadológica – os comics norte-americanos – além da sua infeliz condição de bastardos, estão passando hoje por um momento de exploração intensiva e abusiva por parte dos grandes conglomerados do entretenimento, acrescentando a uma relação incestuosa (como coloca Alan Moore) um nível só visto antes na aurora da indústria dos comics.


E, já que falamos aqui do escritor Alan Moore, recentemente a DC Comics anunciou uma série de especiais entitulados Before Watchmen, onde um eclético grupo de escritores e artistas exploram o passado do universo criado pelo polêmico mago inglês e pelo artista Dave Gibbons. Preciosismos à parte, a lista é de impressionar: Darwin Cooke, Amanda Corner, Adam Hughes, Jae Lee, Joe e Adam Kubert, Brian Azarello, além do controverso escritor J. Michael Straczinsky. Há ainda um nome curioso que está há bastante tempo sem produzir e que tem sua carreira entrelaçada à de Moore por motivos não menos curiosos: Lein Wein.  Wein é um notório antipatizante de Moore e criador do personagem Monstro do Pântano, que foi a porta de entrada do mago nos comics. Lein era editor da DC quando quis alterar o final da minissérie por considerar ser uma idéia não muito original. Tendo razão ou não, a tensão no final da série marcou a relação de Moore com a DC e os trabalhos futuros. Ironicamente, agora Wein vai ter a chance de mostrar sua visão da série em Before Watchmen.

Nem preciso dizer que este projeto incendiou os fóruns e a imprensa especializada, e que isso irritou bastante Alan Moore, que já havia se posicionado contra qualquer utilização da história em projetos caça-níqueis posteriores. E que, enquanto o editor Paul Levitz capitaneava a editora, este acordo de cavalheiros se manteve inalterado até a Time Warner decidir que deveria assumir as rédeas administrativas daquela pequena editora que possuíam e que mal rendia lucros com suas vendas (lógico, falo isso dentro da ótica agigantada de um monstro corporativo do porte da Warner), mas que tinha propriedades criativas que lhe rendiam bilhões de dólares nas portas dos cinemas e nas lojas de brinquedos.

Há aproximadamente um ano, o quadrinista Darwin Cooke, a mente e mãos por trás de obras como o libelo da era de prata DC Nova Fronteira e suas muito bem recebidas Graphic Novels Richard Stark´s Parker: The Hunter e Parker: The Outfit – que adaptam os livros da novela policial de Donald Westlake – , disse ter sido abordado pela nova direção da editora de Super-Homem  para trabalhar em um projeto com os personagens de Watchmen. Cooke afirmou nutrir um respeito imenso pela obra e que considerava ofensiva uma tentativa de retornar a este universo sem que seus criadores originais estivessem envolvidos ou que houvesse ao menos uma autorização por parte de Moore. No entanto, ao anunciarem Before Watchmen para o público, seu nome figurava como uma das maiores estrelas envolvidas no projeto, encabeçando títulos que, imaginados pela sua visão particular, exalam o perfume apetitoso que suas obras liberam : Minutemen – o equivalente à Sociedade da Justiça do universo de Dr. Manhattan e sua trupe de heróis disfuncionais; e o título Silk Spectre – narrando as aventuras da heroína mascarada da era de ouro e que será ilustrada pela artista Amanda Corner. 

Além destes títulos ainda temos Brian Azarello em colaboração com seu parceiro de trabalho Lee Bermejo em uma série de Rorchach e, tendo J. G. Jones com colaborador, uma série do Comediante.  O já citado Lein Wein fará dois títulos, uma série de Ozimandias com a soturna arte de Jae Lee; e uma revista misteriosa chamada Crimson Corsair desenhada por John Higgins. J. Michael Strazinsky estará por trás dos roteiros de uma série do Doutor Manhattan, ilustrado com a bela arte de Adam Hughes e também da série de Nite Owl, que conta com o lápis de Andy Kubert e o nanquim de seu pai, o mestre Joe Kubert (que cairia melhor, talvez, no título do Comediante).


Obviamente, junto a esse projeto já estão programados estátuas e figuras de ação produzidas pela DC Direct, ramo da DC comics que cuida dos produtos colecionáveis. Aliás, este mês também a DC Direct mudou de nome, e agora atende por DC Collectibles.  A troca do nome atende às mudanças que a nova direção impôs, afinal, colecionismo doentio é uma das modas propagadas pela principal vitrine da DC: o seriado Big Bang Theory. Mudar o nome é uma ótima estratégia para guiar o público da série para o setor da empresa que transforma o hobby em moda e estilo de vida.


Retornando aos gibis, pensar no produto que estas mentes podem conceber é algo que realmente dá água na boca. E não me sinto nem um pouco culpado em reconhecer isto. Pelo menos não tanto quanto me sentiria em ler um fanfic de boa qualidade que envolvesse os personagens de Watchmen. Alias, a palavra que mais se encaixaria para descrever este projeto seria exatamente esta: Fanfic. Lógico que os fãs envolvidos na produção desta ficção são profissionais de grosso calibre, fato que não desmerece qualquer mérito estético-narrativo que essas obras possam vir a ter. Mas o que me impede de nomear Before Watchmen como Fanfic é um único e importantíssimo fator: Não se paga, ou se lucra, por fanfics. O objetivo de um Fanfic é sempre o de extravasar as histórias que ainda continuam sendo escritas nas cabeças dos fãs anos depois de eles terem lido determinadas obras. O que empesteia todo esse empreendimento, manchando boas índoles profissionais e desrespeitando criaturas e criadores é a insistência dos executivos da Warner em disfarçar exploração descarada de bens intelectuais que se perderam em acordos jurídicos assinados em uma época que era impossível prever o que tais obras se tornariam (Batalha DC XShuster/Siegel, alguém? Alguém?) com um discurso de “homenagens” a importância dessas obras ou criadores. Ano passado, outra “homenagem” de mau gosto enfureceu a família do falecido Dwayne McDuffie. A editora anunciou uma edição especial de seu personagem Static Shock,  conhecido no Brasil como “Super Choque” em que por U$ 5,95 você podia relembrar a obra de McDuffie sem que nenhum centavo das vendas desta revista fossem repassados a família. Os parentes do autor, lógico, obrigaram a editora a cancelar a edição.

Na contramão disso tudo, autores independentes têm encontrado na net um terreno fértil para publicarem seu trabalho. Tão fértil, que é preciso muitas horas livres para garimpar as perolas potenciais deste novo meio. Meio este que também é responsável pelo grosso do prejuízo que os conglomerados midiáticos monstruosos vêm sofrendo com a distribuição gratuita de filmes e scans de gibis. Se isso é bom ou ruim é outra complexa discussão, mas que, graças ao escritor Mark Waid, seu novo blog de opinião e seu novo cargo como coordenador do selo Marvel Infinity de quadrinhos desenvolvidos direto para tablets e iphones, tentaremos pincelar no nosso próximo texto. Concluo imaginando, em um futuro bem próximo, um Alan Moore bonachão liberando na net as páginas de Before Watchmen para todos que quiserem matar a curiosidade de ler estas homenagens à sua obra. E cobrando o preço justo que uma obra não autorizada deve ter.    

Uma mulher sem medo e as contradições de Frank Miller

por Pedro Brandt

Já foi mais fácil gostar de Frank Miller. Primeiramente porque seus quadrinhos já foram muito melhores. E, segundo, porque sua pessoa pública, ao menos no passado, parecia mais simpática. E mais coerente. Para alguém que se disse desiludido com Hollywood depois da experiência traumática que foi escrever o roteiro de Robocop II, Miller não parece ter se importado com princípios quando fez sua horrenda adaptação cinematográfica do Spirit – personagem de seu velho amigo Will Eisner que, morto em 2005, não teve o desgosto de ver sua criação massacrada na tela de cinema.

Recentemente, o americano escreveu em seu blog sobre o movimento Occupy. O teor do texto é tão reacionário que cabe a pergunta se Miller realmente pensa aquilo tudo ou se suas palavras apenas expressam a frustração do artista com as críticas negativas recebidas por seu mais novo trabalho, Holy terror.

O no mínimo controverso Holy Terror

O rancor do discurso de Miller parece ir de encontro a muitas coisas pelas quais ele já lutou e defendeu. Existe uma pouco lembrada HQ dele lançada pela Dark Horse em 1997 chamada Tales to Offend, uma provocação ao Comics Code Authority, o famoso selo que regulava o conteúdo que poderia ser publicado em um quadrinho americano mainstream. Em Tales, FM apresenta uma história do universo de Sin City (Daddy’s little girl, publicada no Brasil em 2001 em uma one show, da editora Pandora) e duas histórias do anti-herói Lance Blastoof, um mercador da morte que viaja pela galáxia fazendo negócios escusos, nunca se preocupando com quaisquer consequências. O engraçado é que no último quadro da última história, Blastoff diz ao leitor “Nunca deixe o Sr. Oportunidade passar por vocês, crianças!”

O mais legal disso tudo é que o texto de Frank Miller sobre o Occupy acabou repercutindo bastante, fazendo com que outros profissionais dos quadrinhos se manifestassem sobre o assunto – o que acabou gerando a circulação desse tema entre o público leitor de quadrinhos.

A roteirista Ann Nocenti, por exemplo, escreveu um texto no qual expressa sua opinião sobre o Occupy. Uma visão, aliás, totalmente oposta à de Miller. O texto pode ser lido no site Bleeding Coole é, na verdade, apenas um trecho de uma entrevista maior (ainda não publicada na íntegra) na qual ela fala de vários assuntos, entre eles o Occupy e seu futuro trabalho na revista Green Arrow (Arqueiro Verde).

Parte do discurso de Ann segue abaixo:

Ann Nocenti

“Muitas pessoas têm problemas para entender o movimento Occupy porque ele é algo muito novo. É descentralizado. Não é um movimento de ‘protesto’. É amorfo, como a Internet. É, de certa forma, um estilo de vida. É apoiado por trabalhadores sindicalizados, policiais simpáticos à causa, idosos, ricos, pobres, a direita, a esquerda... e, cada vez mais, até pelo ‘1%’. Ele cruza todas as linhas de classe, raça, gênero e política. É claro que as rádios de direita estão cheia desses descrições do Occupy – ‘crianças mimadas, bufões, ralé’, etc. – porque as pessoas temem o que não entendem".

Para Ann, o Occupy não significa estar vendado, mas tomar o controle da própria vida: “Que algo está errado com este país é inegável. Que os alunos se graduem em direito com uma enorme dívida e ainda assim não possam conseguir um emprego é simplesmente errado. Que bons planos de saúde só possam ser comprados pelos ricos é simplesmente errado. Que despejar dinheiro em guerras que não podemos ‘ganhar’ é simplesmente errado. Passei um tempo no país da al-Qaeda. Dólares abastecem tudo; acabam até financiamento quartéis do Talibã. Winston Churchill disse há muito tempo que ‘olhos ocidentais nunca vão entender os caminhos da cultura tribal’. A Guerra às Drogas (*o programa do governo americano War on Drugs), a última e inútil ‘guerra’ que levou nosso país à falência, foi recentemente declarada um fracasso absoluto.

“É muito fácil e preguiçoso demais apenas criticar o que o movimento Occupy está fazendo. É muito mais difícil apoiar e tentar entender que este é um símbolo de uma natural mudança radical em nossa sociedade”.

Mulher sem medo

Talvez os leitores estejam se perguntando “quem diabos é Ann Nocenti?”. Não lembro de nenhum trabalho dela recente (até porque, segundo o próprio Bleeding Cool, ela passou os últimos anos mais próxima de projetos sociais do que dos quadrinhos), mas algumas das HQ escritas pela americana têm lugar cativo na minha memória afetiva.

Uma delas, inclusive, faz de certa forma um link com esse assunto do Occupy. É a edição de número 252 da revista Daredevil, publicada nos Estados Unidos em 1987 e no Brasil em 1989, dentro da edição 82 de Superaventuras Marvel. Detalhe curioso: o gibi em questão tem 66 páginas e duas histórias, ambas com roteiro de Nocenti, a do Demolidor e uma protagonizada por Longshot, personagem criado por ela (e idealizado visualmente por Arthur Adams). Imagino que isso tenha sido uma coincidência. Mas gosto de pensar que foi uma espécie de homenagem da equipe de quadrinhos da Editora Abril ao trabalho de Ann Nocenti – que naquela época fazia um baita sucesso com o Homem Sem Medo ao lado do desenhista John Romita Jr. (e não esqueçamos do veterano Al Williamson, responsável pela arte final).

Outra curiosidade: a edição original, americana, fazia parte de uma saga chamada Queda dos mutantes, que, em 1989, ainda não tinha chegado ao Brasil. Por isso, as referências à saga (como uma breve aparição do Arcanjo) não aparecem em Superaventuras Marvel 82.

A ilustração da capa – com o Demolidor em plena ação, no alto de uma pilha de corpos desfalecidos (uma referência às famosas pinups de Frank Frazetta) - e as chamadas “Blecaute em Nova Iorque!” e “Caos nas ruas!” dão uma indicação do que é a história. Intitulada Ataque, a trama apresenta Matt Murdock (advogado cego, alterego do Demolidor) guiando uma comunidade carente da Cozinha do Inferno (o bairro onde ele cresceu) até um hospital em uma noite sem luz em Nova York. Já com o uniforme do Demolidor, o herói e a Viúva Negra partem para as ruas para tentar controlar o tumulto e, especialmente, os arruaceiros mais perigosos.

Ao medo das pessoas do escuro somam-se outros temores. Em tempos de Guerra Fria, um bombardeio nuclear talvez fosse o maior deles. Como seria o mundo em meio aos destroços, sem lei e ordem? Balaço, integrante da galeria de inimigos do Demolidor, sabe que seria a situação ideal para causar o caos e fazer valer a lei da violência. “Em breve a cidade estará a nossos pés”, acredita o vilão.

Tal qual Will Eisner nas histórias do Spirit, Nocenti preenche a sua com personagens coadjuvantes que ajudam a contextualizar o cenário e, claro, contar outros dramas além daqueles dos heróis. Caim, por exemplo, é um adolescente confuso, dividido entre seguir os passos de Matt Murdock ou uma vida marginal. Enquanto isso, um presidiário anônimo (sem ligação com o restante da história) escapa da delegacia mas revê suas posições quando encontra um bebê abandonado em uma lata de lixo.

Sejam eles coadjuvantes ou protagonistas, os personagens são embebidos de humanidade pela roteirista. Até o Demolidor chega a perder a paciência e passar uma descompostura em Caim.  No fundo de uma história cheia de ação, tensão, drama e paranoia, Ann Nocenti encontra espaço para mostrar o lado mais iluminado do ser humano, aquele que, em meio às adversidades, busca um objetivo maior, coletivo e solidário.

"Approved by the Comics Code Authority"

Medo de um planeta negro!



Temos recebido colaborações de gente legal e preocupada em pensar o mundo dos quadrinhos. Ficamos extremamente felizes com o entusiasmo das pessoas em torno do conceito do site. Esta última é muito especial, porque vem de um cara que tanto eu quanto o Pedro admiramos enormemente. Lima Neto é artista plástico, quadrinista e empresário, e é responsável por uma parada obrigatória da cultura pop em Brasília: a gibiteria Kingdom Comics, no Conic. Esta loja é, desde os anos 90, ponto nevrálgico do debate quadrinístico na cidade, onde passam grandes figuras, são trocadas grandes ideias e construídas grandes amizades. Lima não apenas mencionou a RL no (ótimo) blog da loja, como nos ofereceu a republicação de um texto lúcido e necessário. Só temos a agradecer. (CIM).

por Lima Neto

Se você leu qualquer site ou blog de quadrinhos nesses últimos dois dias, já deve estar por dentro de duas novidades que veem tendo uma grande repercursão no mundo dos gibis.

Como essas notícias jã não são mais novidades e foram amplamente divulgadas até pela imprensa leiga, não vou temer spoilers…

A primeira notícia se refere ao Homem-Aranha do universo Ultimate. Como já noticiamos em nosso site, a Marvel deu carta branca para a equipe criativa do universo de Marvel Millenium para ousarem e escreverem o tipo de estória que nunca seria visto no universo convencional da editora. Esse com certeza é o maior presente que um escritor poderia receber e é uma ótima notícia também para os leitores ávidos por novidade. Sendo assim, munido de uma liberdade editorial inédita em um título do Aracnídeo, o escritor Brian Michael-Bendis botou as mangas pra fora e revirou o mundo do Ultimate Spider-man de cabeça para baixo. Peter Parker encontrou seu fim em um dos momentos mais tocantes da série e foi substituído por um novo personagem: Miles Morales. Jovem e negro de decendência latina.


Outra novidade que vem causando arrepios na espinha da juventude W.A.S.P (Branco, Anglo-saxões e Protestantes) norte-americana é a escalação do ator Laurence Fishburne como o novo Perry White, o editor irrascivo do Planeta Diario,  na nova superprodução de Zack Snyder.

Ambas as notícias foram recebidas com milhões de e-mails espumantes que podem ser classificados em uma enorme pasta com o nome de “Não sou racista, mas…”

A indústria de quadrinhos mainstream nos estados unidos, ou seja Marvel e DC, vem se debatendo como peixes fora d’água para se adaptarem às mudanças extremas que o mercado está sofrendo. A editora pertecente o grupo Warner e casa do Super-homem e Mulher-Maravilha já vem passando por mudanças polêmicas que, além de professarem o fim do quadrinho impresso mensal, com a publicação simultânea online e nas bancas, ainda acena com uma preocupação formal de promover uma inclusão de minorias sociais dentro de seus títulos. Mesmo que algumas afirmações truculentas do editor chefe da casa, Dan Didio, quase tenham levado esses planos por água abaixo (Didio respondeu agressivamente a uma leitora que o questionou sobre o por quê da editora ter reduzido o número de mulheres trabalhando na casa de 12% para 1%), a editora aumentou sensivelmente a variedade racial/social/sexual em seu relançamento, optando por manter alteregos diversos no lugar dos originais anglo-saxãos como o Elektro. Enquanto isso, a Marvel aproveita seu universo alternativo, o universo Ultimate, para explorar os benefícios que a diversidade cultural pode trazer ao mercado. A equação é óbvia, se estamos perdendo leitores a solução é trazer novos leitores que não se sentiam representados em nossos títulos.

Fanboy argumentando: "Heimdall é um deus nórdico! É incoerente!"
Essa equação não foi o resultado de um raciocínio comunitário em direção à sobrevivência, mas uma lição ensinada pelas suas companhias irmãs de Hollywood, que reconhecem já a muito tempo o quanto pode ser lucrativa a diversidade. O que não quer dizer que estejam livres de polêmica. O recente filme do Thor deixou eriçado até leitores brasileiros com a escolha de Idris Elba como Heimdall, fato que se repete agora com o novo Perry White e antes ainda com a escolha de Michael Clarke Duncan como Rei do Crime (que causou bem menos rebuliço do que o fator Heimdall, por que será?…).

Porque sou o rei... do crime?
A principal reclamação dos fãs é que tudo isso modifica a mitologia de seus personagens. Que altera cânones sagrados das comic books. Eu chamo isso de posição reacionária.

Peter Parker, Perry White, Clark Kent e Miles Morales tem uma coisa em comum. São todos personagens fictícios, criados por seres humanos que são um reflexo da época em que vivem e naquilo que acreditam. São ideias. O problema é que estas mesmas ideias são cultuadas com um fervor quase religioso pelos fãs, o que acaba por engessá-las e anulam a habilidade das boas ideias de serem abrangentes. Muito provavelmente nos guetos do bairro judeu de uma Nova York atolada na depressão do final dos anos 30, a diversidade de culturas fosse algo bem difícil de experimentar, mas isso não é motivo para se levar essa experiência limitada para frente só por que foi assim que ela foi “criada”. Concordo que certas modificações burocráticas a título de preenchimento de cotas em detrimento do roteiro são questionáveis. Mas ter a oportunidade de ver um ator do calibre de Laurence Fishburne encarnando um personagem querido como o Perry White é um prazer pra qualquer apreciador de cinema. E a gama de possibilidades que se abre com um novo Homem-Aranha, e o aroma fresco da ousadia e da criatividade põem por terra qualquer argumento reacionário onanista que apareça.

“Inteligência. Essa é a única arma capaz de deter a decadência” como diz a banda Cidadão Instigado. Os quadrinhos estão passando por uma de suas piores crises desde sua criação como mídia de massa. E ele só vai poder sobreviver se se transformar e se adaptar. E somos nós, leitores, que temos a responsabilidade de guiar esta transformação para algo que valha a pena ser lido. Queremos representatividade social e cultural, queremos estórias dinâmicas e relevantes e, acima de tudo, queremos criatividade e inovação!

O título desse artigo é o título de uma música do grupo norte-americando Public Enemy chamada Fear of a Black Planet.

Eu diria: Não temam um planeta diverso!

HQ em um quadro: Triunfo de Loki, por Esad Ribic e Robert Rodi





















O eterno retorno do trapaceiro (Esad Ribic e Robert Rodi, 2005): este quadro abre a minissérie Loki, uma HQ de super-herói de rara densidade existencial e valor filosófico, roteirizada pelo escritor Robert Rodi e poderosamente pintada pelo artista croata Esad Ribic. Se acabei sendo um pouco duro com as primeiras histórias de Thor, esta HQ tem o mérito de nos recompensar com toda a beleza conceitual do universo do personagem, construindo, no final, uma incrível parábola mitológica. Loki, o deus da trapaça de Asgard e irmão adotivo de Thor, finalmente conseguiu. Já velho e amargo, ele derrota o soberbo irmão em combate e se torna senhor dos deuses. É a hora da desforra. Loki acorrenta o irmão e prende todos aqueles que durante incontáveis anos haviam-no humilhado das mais diferentes formas: Lady Sif, Balder e até seu pai adotivo, Odin.

Loki é um dos tipos mais intrigantes do mundo dos super-heróis. Conspirador, invejoso, ressentido, fracassado: é o nêmesis exato do ideal viking, altivo, perfeito, orgulhoso e infalível que representa o arquétipo de Thor. O fato de Loki trazer um perfil desajustado, malhado pelas condições cruéis das virtudes mitológicas, sem qualquer ideal clássico de beleza ou força moral, me faz pensar, com alguma compaixão, numa triste gênese da infâmia, da perfídia e, claro, da covardia. Rodi enquadra a história em um princípio narrativo muito simples, mas sempre eficiente: Loki é o novo soberano e impõe sua vontade aos súditos de Argard, que o detestam, mas o servem. Solitário e repudiado, ele é atormentado por flashes e fragmentos do passado ao mesmo tempo em que precisa considerar o ofício, natural do monarca, de governar, e se vê mergulhado em um improvável dilema: deve ou não matar o meio-irmão Thor?

Sem cenas de batalha, a história já começa com Thor acorrentado, de onde lemos, vindo de fora do quadro, o imperativo de Loki: "Ajoelha-te, deus do trovão". O quadro arrebata porque, é claro, remete à imagem de cristo crucificado, e a qualidade realista da arte de Ribic traz dolorida humanização, tal qual imagens do Renascimento, como a Crucificação de Cristo de Rubens, tinham intenção de trazer. A ironia e grandeza desta história, porém, está no fato de que, aqui, a vítima é Loki, e Thor, o crucificado, o algoz. Desde as imagens da infância amarga de um pequeno e raquítico Loki, até sua juventude privada das orgias e do hedonismo dos perfeitos deuses de Argard, tudo vai piedosamente comovendo, em sua rememoração. Estamos presenciando a expiação da perfídia, a redenção do invejoso.  

A grande epifania da história está no momento em que Loki consulta um oráculo para saber as razões de seus intermináveis fracassos. "Fadado a perder. O destino é o arquiteto de meu tormento". Loki então descobre não apenas que possui um tipo de "falha trágica" grega, um daimon, maldição eterna e repetitiva, mas também que isso transcorre em todo tipo possível de realidade: ele pressente, num transe místico, infinidades dentro de infinidades de realidades alternativas, em mundos exóticos e alienígenas, aonde existem sempre um arquétipo de Loki e um de Thor. E em todas elas, inefavelmente, Thor é sempre o vencedor, e Loki, sempre o perdedor. A pulsação deste retorno eterno do mesmo faz desta HQ uma linda narrativa de matriz nietzschiana, e do personagem de quadrinhos Loki um legítimo emulsor de mitologia. (CIM)

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Superbully Americano




por Ciro I. Marcondes

Por uma questão de coincidência, a DC Comics acaba de zerar novamente (“reboot”) seu universo, no legítimo sentido mercadológico de adaptar seus personagens às novas condições culturais, justamente no momento em que eu preparava este texto a respeito das primeiras histórias do Superman, datadas de 1938, republicadas pela Panini sob o título de “Crônicas – Volume 1, em 2007. No reboot em questão, a mitologia do personagem será repensada a partir de uma ideia muito conveniente de Grant Morrison: a de trazê-lo de volta às suas raízes mais profundas. O novo “velho” Superman não vai voar (apenas dar uns saltos muito grandes) e seus poderes divinais serão consideravelmente reduzidos. Da mesma forma, ao invés de supervilões intergalácticos e de outras dimensões, este novo Superman estará a serviço do cidadão comum, combatendo gangsters, falsários, políticos corruptos, etc. De fato, estas alterações (radicais a ponto do “azulão” vestir calça jeans) possuem uma convergência com o Superman de Jerry Siegel e Joe Shuster. Mas que Superman era este?

As origens culturais do Superman são mais ou menos bem conhecidas: mistura de herói de ficção científica pulp, com herói de capa e espada, com halterofilista. O seu surgimento – os autores o criaram em 1932 e tentaram vendê-lo no usual formato de comic strip, mas só conseguiram publicá-lo no formato de comic book, em 1938) – dentro de um mundo de publicações pop muito crescentes nos anos 30 que incluíam toda espécie de histórias fantásticas, poderia ser, de certa forma, previsto (vide outros justiceiros mascarados precedentes). Porém, usando uma linguagem contemporânea, este meme que se inaugura com Superman – o do super justiceiro com poderes esdrúxulos advindos de explicações científicas grosseiras (considerando o mundo sci-fi B das histórias de alienígenas como tal), usa roupa esquisita e protege os fracos e oprimidos – foi disparado com a grande sacada de Siegel e Shuster. Como podemos ver pelo sucesso deste mesmo arquétipo nos dias de hoje, foi um meme vitorioso, adaptado ao imaginário cultural do século 20.


O que é mais interessante ao se ler “Superman Crônicas”, porém, são as mutações que este arquétipo sofre no decorrer do desenvolvimento do personagem, e que revelam como nos apropriamos e hiperdimensionamos os conceitos de “super”, “homem” e “herói” de maneira que o original não previa. O Superman de Siegel e Shuster é um produto dos anos 30, ao mesmo tempo herdeiro das reformas de Roosevelt e do avanço da cultura americana como modelo para o mundo. No caso do cinema, é o momento em que os conglomerados de distribuição mundial ganham força, e políticas de boa vizinhança são instauradas. Os gêneros clássicos do cinema falado ganham corpo e presença, e passam a formatar os códigos comuns de várias linguagens culturais. O western se torna o gênero mais popular da época, e seria justamente o responsável pela criação de uma mitologia americana, contando e formatando as origens daquele povo. Os super-heróis surgem dentro deste imaginário, e refundam esta mitologia sob o prisma das então modernas indústrias culturais.

Fanfarrão
O Superman dos anos 30 se parece com um caubói. Mesmo fisicamente. Lembra uma mistura de Clark Gable com John Wayne. O cabelo, poderíamos atribuir ao protótipo de todos eles, Douglas Fairbanks, astro de inúmeros filmes de capa e espada. Porém, são as atitudes do personagem nestas primeiras histórias que lembram melhor o que significava ser um herói nos anos 30. A tríade básica da mitologia está lá: Superman é ao mesmo tempo Clark Kent, um repórter eficiente, justo, mas tímido e covarde, completamente abobalhado diante da colega repórter Louis Lane, retratada aqui como uma biscate sem caráter e sacana, mas ao mesmo tempo astuta e “investigativa”. É apaixonada pelo herói, mas desdenhosa de seu inadequado alterego. Imagino que talvez Louis Lane tenha sido a invenção deste estereótipo, tão repetido em filmes e gibis, feminista e machista ao mesmo tempo. Porém, o senso de justiça desta fase do herói, sempre descrito como uma grande invenção de Siegel, era muito adequado aos valores de outros produtos culturais da época. Tratava-se de um olhar atento aos reais problemas sociais, fruto do new deal; e uma atitude impetulante e arrogante de superpotência crescente, “direito divino” dos Estados Unidos em aplicar o senso moral “correto” da maneira que bem entendesse.

Biscate

Justiça social e fanfarronismo

Essa coisa ambígua se refletia no jeito que Superman resolve seus desafios. Da mesma forma que os caubóis (intermediários entre a civilização crescente e a selvageria natural de todo western), ele é um tipo rude e impaciente, fanfarrão e porradeiro, bem diferente do modelo apolíneo a que estamos acostumados a associá-lo (o escoteiro puritano). São várias as cenas em que o herói arremessa os bandidos de prédios ou para longe, sempre fazendo comentários cínicos, agressivos: “Desculpa, mas foi você quem pediu!”, “Sou alguém que odeia ardorosamente a sua pessoa!”. Da mesma forma, ele é um agente impiedoso e ensandecido de destruição: chega a trucidar fábricas de automóveis para impedir que se aumente o índice de atropelamentos, ou a destruir favelas para que os governos sejam obrigados a realizar reformas que impeçam o aumento da criminalidade. Suas entradas em cena são sempre bombásticas: destruindo vidros, arrebentando portas, virando carros. Se o tipo “valentão” (bully) é um dos maiores vilões sociais nos dias de hoje, podemos ver que nos anos 30 ele era um modelo de heroísmo.

Porém, esse jeito pouco ortodoxo ou “caubói” (vejam bem que o caubói é um fora-da-lei de bom coração, que realiza a justiça que a lei não alcança) de ser tinha implicação profunda nas aspirações dos Estados Unidos enquanto difusor (agressivo) de uma cultura global padrão, e especialmente enquanto força de guerra, já que estamos falando de um período à beira da Segunda Guerra Mundial. O alistamento dos soldados e a colaboração da população em terra natal (especialmente mulheres e crianças) eram atitudes que não podiam deixar ambigüidades. O cinema, os quadrinhos e toda indústria cultural serviram como força motriz para este processo. Basta lembrar que vários aviões da força aérea americana tinham o “azulão” ou o Capitão América pintados em suas superfícies.

Métodos "pouco ortodoxos"
Este modelo diferente de Superman tinha uma interessante aplicabilidade social, que nos faz refletir sobre para quão distante do nosso próprio mundo o universo dos super-heróis se afastou, enquanto, em sua origem, ele alertava para problemas bem reais. Diante da ausência da figura do supervilão, Superman dá cabo (em sua maneira tosca e até... anti-heroica) de: magnatas do tráfico de armas, torturadores, estupradores, empresas que exploram seus trabalhadores, capatazes de prisões em péssimas condições, falsários que vendem ações de petróleo falidas. De certa maneira, este mapeamento do universo do new deal que as histórias do herói traziam parecem ainda dizer mais sobre nossa própria época do que suas histórias contemporâneas.

A diferença é que, para resolver os problemas, Superman adota uma espécie de código “olho-por-olho, dente-por-dente” bastante associado ao esforço do puritanismo protestante tão presente na era clássica da cultura industrial americana: para “punir” o industrial que dá péssimas condições aos seus mineiros, Superman cria um esquema para prendê-lo, junto com outros grã-finos, dentro de uma mina, deixando-os se virarem sozinhos para sair. Da mesma forma, para “punir” o magnata da indústria bélica, Superman o obriga a alistar-se no front, para que possa vivenciar os horrores da guerra e se arrepender. Na história mais absurda de todas, Clark Kent compra dos falsários todas as ações falidas de um poço de petróleo inativo, para depois, com seus poderes de Superman, escavar a terra e ativar o poço, revendendo as ações para eles, para logo depois destruir os poços e trazer mais algum tipo “lição” torta, quase inexplicável. Esta “doutrina de correção punitiva” parece uma mistura de judaísmo primitivo, do velho testamento, com a força moral do puritanismo. Certamente muito convicente no empenho de reconstrução de um país ou de um esforço de guerra.


As histórias originais do Superman, e despeito dessas ambiguidades, possuem grande valor cultural, e entusiasticamente traziam o conceito de heroísmo para uma causa do povo (mesmo que fosse só o povo americano). Como o arquétipo “super” acabou sendo usado como propaganda de guerra, é natural que estes valores tenham se deturpado no decorrer dos anos 40, até que a cultura do gênero morresse para dar chance a um “realismo” mais brutal e sanguinário: quadrinhos de crime, horror e guerra da EC Comics. O arquétipo “super” só ressurgiria após o macartismo e censura às HQs nos anos 50, quando sua vitoriosa forma “light” seria concebida pela Marvel nos anos 60. Vale comentar, porém, que a forma “light” se enclausuraria num universo próprio e fechado, cada vez mais fazendo referência apenas a seu “mundo paralelo”, virando entretenimento puro.

Em uma das histórias de “Superman – Crônicas”, um charlatão tenta lucrar com a fama do herói, acreditando que ele fosse apenas uma lenda. Ele então patenteia direitos de comercialização da imagem de Superman, vendendo cereais, carros e até gasolina com a marca do herói. Até que chega o momento em que este “agente” procura vender para o jornal (então “Estrela Diária”) uma entrevista com o próprio Superman, que acabaria sendo realizada pelo repórter Clark Kent. No final das contas, é claro, Superman dá umas boas pancadas nos falsários, elucidando-os sobre os perigos da capitalização extrema das notícias, dos cidadãos, do heroísmo. Vista com o distanciamento de quase 80 anos, esta história parece uma ironia perdida no tempo. Um tipo como Superman obviamente nunca existiu, mas aquele mundo de mafiosos, picaretagens e extorsões continua bem vivo. A imagem do personagem descambou para capitalização extrema, e o mundo dele acabou se tornando uma mistura maluca de pseudo-futurismo, fantasia e delírios intergalácticos que pouco lembra o nosso. Fica a lição. Vamos torcer para que Grant Morrison se lembre dela. 


Crazy bastard

O Poderoso Thor

por Ciro I. Marcondes

Lendo a recente republicação das primeiras histórias de “O Poderoso Thor”, com roteiros de Stan Lee e arte de um ainda imaturo Jack Kirby, creio ser correto pensar na incômoda ambiguidade da cultura de super-heróis tanto para as HQs em geral quanto para a cultura de nossa era, assim como na ausência de perspectiva crítica sobre a adorada figura de Stan Lee da maneira como se faz, por exemplo, com Walt Disney. Digo isso pensando na avalanche de filmes desprezíveis consumindo salas de cinema e monopolizando a atenção de Hollywood na direção de um entretenimento bombado em efeitos especiais, mas infantilizado e vazio. Muitas vezes baseados nos simpáticos personagens de Lee, alguns destes filmes estão aquém da cultura de HQs, alimentando o estigma de descartabilidade. 

É claro que a força das criações de Stan Lee - com admirável moderação dos exageros dos heróis da era de ouro, popularizando em um contexto pós-midiático arquétipos humanos interessantes e aproximando o herói dos seus leitores -  tem méritos. O sentido aqui não é colocar na berlinda o Homem-Aranha, o Hulk, os X-Men ou sequer o poderoso Thor (cuja adaptação pro cinema saiu justo agora). As criações de Lee (ou remodelações, já que quase tudo em Lee é francamente baseado em algo de outros quadrinhos ou culturas), importantes para nosso imaginário atual, permanecem com suas essências ao mesmo tempo simples e adequadas. Elas estão muito além do alcance de seu criador. Parece um problema, porém, que estas essências, fetichizadas, disseminadas em bonecos, produtos, metáforas cotidianas, fantasias sexuais, moda, etc, estejam se tornando um denominador comum da sociedade de consumo. Esta atenção entusiasmada e cultista de um imaginário antes muito consciente de suas limitações está tornando o que hoje entendemos como uma identidade geek em uma cultura autoindulgente, cínica, explicitamente perversa, confessadamente idiotizante. Como fã de quadrinhos e até como leitor de Stan Lee, confesso acompanhar com horror a massificação do imaginário de super-heróis.

Vejamos estes quadrinhos do Poderoso Thor, datados de 1962, roteirizados no estilo marvel way por seu criador Stan Lee, com diálogos detalhados por Larry Lieber e arte de Jack Kirby. Meu primeiro interesse por Thor foi justamente buscar de que maneira esta figura extraída das mitologias vikings havia sido revertida em objeto de exploração (acho que, no caso de Thor, é lícito dizer “exploitation”) pela indústria das HQs. Sempre pareceu-me que, a partir de abordagens inteligentes como a de Alan Zelenetz e Charles Vess (“A Bandeira do Corvo”) ou a de Robert Rodi e Esad Ribic (“Loki”), o universo de Thor tivesse grande potencial. Daí recorrer à arqueologia. Lendo as mais de 10 histórias magnificamente republicadas pela Panini na versão nacional da “Biblioteca histórica marvel”, logo nos chama à atenção a pobreza conceitual e artística, mesmo para os padrões da Marvel nos anos 60, do universo de Thor.

Não é novidade que HQs da era de prata, fora algumas coisas do Homem-Aranha, Surfista Prateado e X-Men, despertam interesse mais pelo lápis vigoroso de um Kirby, Ditko ou Buscema do que pelas aventuras ingênuas de Stan Lee. No caso de Thor, entretanto, o caráter derivativo é franco e patente. Lee, já ocupado com o sucesso do Hulk, do Quarteto Fantástico e do Homem-Aranha, produziu roteiros sintéticos com os plots básicos e passou o detalhamento para Larry Lieber, processo que se tornaria tradicional em alguns setores da Marvel. Assim, os personagens de Thor são pálidos, óbvios, diretos. O frágil alterego Don Blake, médico cuja deficiência física contrasta com sua contraparte divina e ariana, logo é abandonado em sua assepsia maniqueísta. O mesmo ocorre com o interesse romântico, a puritana Jane, apaixonada por Thor, mas desdenhosa de Blake (bla bla bla... mesma velha história). Assim, o que emerge dessas tediosas tramas da Thor é justamente o aspecto não-ingênuo que delas se depreende, o que nos permite um comentário mais severo a respeito da isenção de Stan Lee.

Caça às bruxas



Consideremos, em primeiro lugar, que o mais interessante em Thor, e o que o definirá na sequência de sua trajetória enquanto mito e personagem de HQ, quando ele já não estiver mais sob o controle de Stan Lee, é sua origem na cultura nórdica, na mitologia viking, na inesgotável fonte de inspiração para o imaginário ocidental, do épico mudo de Fritz Lang “Os Nibelungos” às recentes e oscarizadas adaptações de “O Senhor dos Anéis”. Logo, mesmo nas histórias de Lee, são as intrigas mágicas e palacianas dos deuses tortos de Argard que vão instilar algum diferencial no universo do personagem, especialmente na figura do nêmesis Loki, um tipo picaresco, subversivo e invejoso, contraponto importante.  Porém, submetido a um ritmo industrial de produção, aos rigores do comics code authority (incomodamente estampado em todas as capas da republicação) e à franca paranoia da guerra fria em seu auge, imagino que Lee não tenha tido muito interesse em aprofundar o personagem em suas origens resididas na cultura popular. Thor é um herói qualquer, exilado na Terra, e combate vilões eventuais e ordinários como o “Copiador”, “Sandu” ou “Mister Hyde”, apaixonado por uma moça reprimida que o ridiculariza em sua essência humana. Nada que um Super-Homem, protótipo de todo super-herói, já não fosse.

Porém, além de vilões insossos perdidos no tempo, Thor também trabalha junto com o exército americano. Logo na primeira história (“Os homens de pedra de sarturno”), uma ilusão provocada pelos tais “homens de pedra” chama atenção pelo seu caráter subliminar: um dragão vermelho que aterroriza o povo norteamericano. Nas histórias subsequentes, vemos que as alusões ao mundo comunista deixam de ser subliminares. Em “O poderoso Thor x o executor”, Thor deve lançar-se contra uma ameaça militar controlada por um tirano ensandecido por aspiração de domínio global chamado “executor”. Ele e seus comparsas possuem traços alatinados, com cicatrizes de guerra deformativas, usam boinas e seus caças ostentam a foice e o martelo. São rudes, pavorosos, e suas ações sugerem tortura e estupro. Lee não avança no conteudo político deste conjunto de signos. Nada sobre o mundo do socialismo é revelado. O executor é um vilão genérico e cruel como um Esqueleto de He-Man ou um Munn-ha de Thundercats. É o mal pelo mal, sem arestas ideológicas. Mas usa boina como guerrilheiros cubanos, chama-se “executor” e, em quadro emblemático, manda para o paredão de fuzilamento um soldado que falhou em uma missão.


Esta associação à cultura militar e a uma demonização dos inimigos dos Estados Unidos nos anos 60 se encontra, ainda neste mesmo volume, em várias outras histórias. Em “Prisioneiro dos vermelhos”, Thor precisa ir à União Soviética à procura de cientistas americanos, supostos desertores. Lá ele os encontra capturados pelos grotescos soviéticos, que os obrigam a desenvolver tecnologia sob regime de escravidão. Esta história, escrita no auge da guerra fria, distorce tema controverso do passado norteamericano: o dos cientistas americanos que efetivamente fugiram por se filiarem ao partido comunista. A história de Thor descarta essa possibilidade e os coloca como vítimas de uma tola conspiração. Os exemplos se repetem e seria perda de tempo recapitulá-los em detalhes. Em “Aprisionado pelo copiador”, Thor se depara com grupo de alienígenas cruéis e com sede de conquista cujo líder tem o rosto de Stalin (além de serem da cor vermelha). Em “O misterioso homem radioativo”, Thor vai à Índia salvar a população da ameaça da China comunista, genérica como todos os outros.

O ponto em que eu queria chegar é evidente: pouco se fala sobre um Stan Lee colaboracionista e ideologista, usando tramas pueris e românticas em inocentes histórias de ação (orgulhosamente aprovadas pelo comics code authority) para associar símbolos mundiais (estrelas, cores, foices) a figuras grotescas e rasas, que sequer têm o poder de crítica aos estados socialistas para além de uma transfiguração direta e barata, porque nenhum conteúdo propriamente político é abordado nestas histórias. E isso é fácil de se entender, afinal, as histórias são direcionadas às crianças, que são bem menos capazes do ato da problematização. Neste sentido, Lee não difere dos primórdios da Marvel Comics, ainda Timely Comics, que criou nos anos 40 inúmeros personagens embandeirados como motivação para a segunda guerra mundial. Logo na primeira edição do Capitão América, vemos o herói que veste e personifica o american way desferir um golpe de boxe nas fuças de Adolph Hitler. Com certeza é preciso entender o contexto sociopolítico da guerra fria e relativizar a participação da cultura pop em um mundo bipartido, mas também é preciso lembrar a vulnerabilidade de um pequeno leitor de HQs nessa mesma época.

As criações de Stan Lee fazem parte de nosso patrimônio cultural mundial e comum. Seu poder de trazer a cultura de quadrinhos para um patamar humano desencadeou muitas mudanças importantes na maneira como lidamos com nossas aspirações e heroísmos pessoais, sendo até hoje fonte de entretenimento legítimo e servindo como um aperitivo daquilo que a totalidade do prazer e da educação que o pensamento mitológico inspirou em culturas antigas ou selvagens. Porém, como toda mitologia, seus heróis se desvinculam de seus criadores no decorrer da História, e seguem vivos pela força coletiva de autores e leitores que procuram cada vez mais adequá-los à passagem do tempo. Confundir, de maneira fetichista, a mente criativa, porém artística e politicamente limitada de Stan Lee, com o efeito mitológico de suas criações, parece consequência do ato de querer-se apenas cultuar o universo dos quadrinhos sem problematizá-lo. Isso é curioso porque fornece munição justamente para aqueles que querem impedir o crescimento cultural desta forma de expressão, os mesmos que proibiram a colossal e alternativa cultura de HQs dos anos 40, permitindo a ascensão de heróis em seu formato light, cujo principal expoente é justamente o velho Stan Lee que aparece, tal qual um Hitchcock acidental, em cada uma das megaproduções cinematográficas da Marvel que são lançadas nos verões americanos.

Ciro Inácio Marcondes não odeia os heróis Marvel