Superego: terapia superheroística made in Brazil

por Marcos Maciel de Almeida

Caio Oliveira é quase uma unanimidade no underground quadrinístico nacional. E sua presença é sentida de diversas formas no meio. Vejamos. Pelo formato tradicional ele publica quadrinhos indies adorados, como All Hipster Marvel ou Alan Moore - o Mago Supremo. Nas plataformas digitais ele também deixa sua marca, com sua prolífica página no facebook, Cantinho do Caio, em que posta – com frequência quase religiosa – sátiras que versam sobre temas do universo pop, principalmente quadrinhos. 

Finalmente, Caio também materializa sua onipresença na moda nerd. As camisetas com a capa de seu gibi O Mago Supremo vestiram toda uma geração de fãs de quadrinho em geral e de seu trabalho em particular. Senti isso em 2015, no Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte, em que suas camisetas pareciam ter se tornado item obrigatório do fã descolado. Foi naquele evento que tive o primeiro contato com o trabalho do artista piauiense.

Exemplo de humor peculiar na página de Caio

Na época, ele estava fazendo um pacotão para vender três obras publicadas em português: All Hipster Marvel, Alan Moore e Panza. Eu, mão de vaca que sou, só comprei os dois primeiros, para meu futuro arrependimento. O troço era bom pra cacete. É a produção de um cara que tem um senso de humor único, com forte teor satírico, fruto de cuidadosa observação do meio quadrinístico, seja dos gibis em si, seja do que rola nos bastidores. E, claro, sua longa jornada como fã da nona arte conta bastante na construção desse olhar. 

Desnecessário dizer que a partir daquele momento de conversão passei a acompanhar avidamente sua página no facebook, onde pude me deleitar com tiradas humorísticas cujas referências incluíam de Chaves a Clube da Luta. Ah, esqueci de dizer que no FIQ 2015 o Caio também estava expondo outro filhote seu, Superego, esse em inglês, lançado no mercado norte-americano em 2014 pela Magnetic Press

O gibi, que namorei bastante, mas também acabei não levando, tinha uma capa maneira feita pelo Glenn Fabry e parecia bastante interessante, tanto na arte quanto na história, ainda que o tema do psicólogo de heróis já não fosse novidade para quem acompanhou o X-Factor de Peter David. Mas o lance é que agora o personagem principal do gibi era o próprio terapeuta. E pô, o título do gibi era bem bacana. Vai dizer que não?

E eis que no início de 2017, apoiado por um esquema de vaquinha virtual, Superego dá as caras em português. A edição coleciona quatro histórias, no formato de minissérie, com um montão de extras, tais como perfis psicológicos dos personagens, além de esboços. 

Superego relata o quotidiano de Eugene Goodman, aka Dr. Ego, terapeuta de combatentes do crime. E o dia-a-dia do “dotô” não é nada fácil, porque haja paciência e jogo de cintura para lidar com os egos astronômicos de caras que são o poder encarnado.  À vontade, e em um clima despretensioso, Caio monta um desfile de arquétipos superheroísticos, sem abrir mão de pitadas generosas de criatividade. A pegada aqui lembra a Liga da Justiça Internacional de Keith Giffen e JM DeMatteis, em que os personagens não se levavam tão a sério. Esse tipo de abordagem é muito instigante, porque permite uma leitura mais crua do que está por trás de cada personagem. É como se os heróis estivessem sendo analisados pelos melhores amigos, que são as pessoas que realmente os conhecem a fundo. 

E é claro que essa maior intimidade permite que os supers sejam ainda mais sacaneados por seus buddies. Isso não é diferente em Superego, em que o papel de analista da mente heroística é feito de modo indireto pelo próprio autor, desta vez representado pelo Dr. Ego. Assim, a bagagem de leitor inveterado de Caio se torna juíza e júri do que funciona e de quais são os pontos fracos dos personagens do gênero. Isso fica bastante claro nos momentos em que ele expressa a ideia de que muitos heróis – principalmente aqueles com melhores meios financeiros e intelectuais – poderiam ter feito mais diferença na sociedade na qualidade de pessoas comuns e não na de vigilantes. 

Outra experiência que trabalha a favor do autor é sua vivência na produção quotidiana de textos para abastecer as sátiras presentes em seu facebook. A narrativa de Superego é redonda e os diálogos são fluidos e verossímeis.  A construção da história é feita de forma leve e divertida, como os gibis do tipo deveriam ser. O traço de Caio consegue ser, simultaneamente, sutil e detalhista. Há ocasiões de pura expressividade, como no momento ao lado, em que o herói adolescente capaz de destruir montanhas não consegue suportar a dor da rejeição amorosa.

Do cast hilário e bizarro, quem mais me chamou a atenção foi o “Luchador de Fierro”, alter ego de Javier Hernandez, espécie de Tony Stark mexicano. Novamente, o senso de humor privilegiado de Caio destila um personagem que vai além da proposta original do homenageado, conferindo-lhe nuances mais deprimentes, mas muito apropriadas. 

Fãs hardcore e novatos vão se divertir muito com Superego. Claro que os mais antigos captarão mais as piadas e referências escondidas, mas o gibi é um prato cheio para todos. É frase batida dizer que alguns gibis são feitos de fã para fã, mas neste caso não existe expressão mais acertada. Produzindo de forma independente,  Caio está livre para mostrar, sem amarras ou censuras, o que realmente mexe com sua cabeça de fanboy. Mal comparando, imagine que a mente do autor é uma espécie de liquidificador que, durante décadas, misturou inúmeros gibis de super-heróis, de todos os tipos e sabores. Se quiser conhecer um dos resultados mais hilariantes e sagazes desse caldeirão de referências, dê uma conferida nos filhotes de Caio Oliveira. 

Muito além do jardim: as três grandes epopeias do Monstro do Pântano

por Marcos Maciel de Almeida

A primeira vez que tive conhecimento da existência do Monstro do Pântano foi quando vi uma propaganda de seu gibi mensal em alguma revista de super-heróis da Editora Abril. Era um anúncio simples, mas eficiente. Pegaram uma imagem do Monstro do Pântano e outra do (também desconhecido para mim) John Constantine e escreveram embaixo de cada um: O "Celestial" e o "Profano". Minha cabecinha adolescente acostumada a fazer associações baseadas mais na embalagem que no conteúdo começou a dar tilt tentando entender aquela mensagem: quer dizer então que o monstrengo verde era o mocinho e o outro era o malvado? Mas como assim? Desnecessário dizer que isso atiçou minha curiosidade e a vontade de colocar as minhas mãos no primeiro gibi do Monstro que minha magra mesada permitisse. O fato de as histórias também terem amealhado tudo quanto é prêmio na época de seu lançamento também contribuíram para aumentar o desejo de dar um confere no gibi quando fosse possível.

Quem não quereria conferir isso?

Embora só tenha passado envergar – nos EUA – a logotipo da Vertigo em 1993 (Moore havia começado a trabalhar no gibi em 1984), a verdade é que o gibi Swamp Thing era muito diferente do que vinha sendo publicado na DC da época. Não é à toa que, ao lado de Sandman, Hellblazer e Doom Patrol, títulos também exóticos dentro da seara do Universo DC, a revista do Monstro do Pantâno também tenha sido incluída no selo Vertigo, que se propunha a lançar histórias para o público que estivesse interessado em um material que fugisse do feijão com arroz superheroístico.

Capa de Swamp Thing #137. Primeiro gibi da série a usar a logo da Vertigo

Bem, é claro que todo o buchicho em cima do personagem – totalmente justificável – começou a partir do trabalho do autor de Watchmen. Ali foram estabelecidos padrões para as narrativas envolvendo o alter-ego do cientista Alec Holland que seriam, dali por diante, replicados pelos autores que tivessem a ingrata tarefa de substituir o inglês arretado de Northampton. Assim como qualquer autor que passasse a escrever os X-Men pós Claremont/Byrne teria que fazer uma passagem obrigatória pela Terra Selvagem, os sucessores de Moore também teriam que fazer o Monstro do Pântano passar por situações específicas. É sobre isso que eu gostaria de falar. Na metade final de sua passagem pelo gibi do Pantanoso, Moore decidiu isolá-lo de seus entes queridos e de sua terra natal, lançando-o numa memorável jornada pelo espaço. O formato dessa saga, com histórias independentes e autocontidas, foi replicado por autores como Rick Veitch e Mark Millar, que também criaram jornadas fantásticas para o Elemental do Verde, atirando-o de volta no tempo (Veitch) e fazendo-o prisioneiro dos contos de um livro (Millar).

Alan Moore: o céu não é o limite

Forçado a deixar a Terra em decorrência dos eventos de Swamp Thing #54, a consciência vegetal que imagina ser Alec Holland vaga pelo Cosmo em busca de uma maneira de voltar pra casa. E a star trek do Monstro do Pântano envolverá os personagens espaciais mais famosos do Universo DC, vistos, é claro, sob a lupa dissecadora de Moore. E os encontros com esses ícones não serão sempre marcados pela cordialidade para com o visitante terrestre, muito pelo contrário. O roteiro afiado do britânico mostra como é difícil a comunicação entre culturas alienígenas, especialmente quando nós é quem somos o estranho na terra estranha. E o autor não se serve apenas das criações já estabelecidas do Universo DC, ficando à vontade para fazer o protagonista descobrir planetas bizarros e envolver-se em situações impensáveis para um personagem principal (quem tiver lido a clássica Swamp Thing # 60 - "Loving the Alien" - saberá a que me refiro). Curiosamente, minha edição favorita deste arco não foi escrita por Alan Moore, mas pelo desenhista da revista, Rick Veitch. Imagino que estetest drive tenha sido muito bem apreciado pelos editores, visto que Veitch também seria catapultado à condição de responsável pelos argumentos após a partida do britânico.

Capa de Swamp Thing # 62.

Estreia de Rick Veitch como roteirista

A estreia do quadrinista norte-americano nos roteiros foi na edição # 62, de 1987. Ali o Monstro do 

Pântano encontraria Metron dos Novos Deuses, numa história que guarda segredos para os leitores atentos. Lembro que, quando li o gibi pela primeira vez, tinha achado muito bom, especialmente pela maneira pela qual o aleph tinha sido mostrado. Para quem não sabe, alephs são um conceito de Jorge Luís Borges – surgido em conto homônimo – que se referem a um ponto no espaço que contém todos os outros pontos. Todos que observarem um aleph verão tudo no universo por todos os pontos de vista possíveis, simultaneamente, sem distorção ou sobreposição de imagens.  O que mais gostei na história foi a proliferação de imagens nonsense, que me fizeram sentir como se estivesse tendo um sonho lisérgico, com Gita, de Raul Seixas, como trilha sonora. Quando o Monstro do Pântano e Metron estão dentro do aleph, as páginas possuem números idênticos de fileiras e colunas, segundo o modelo de matrizes quadradas. Página por página, entretanto, a ordem da matriz vai aumentando, de 3 x 3 para 4 x 4, e assim por diante. O efeito equivale a tentar transportar o leitor para o interior de um aleph, onde o número de páginas – e de quadros – tenderia ao infinito. Mas bem, na época eu não fazia ideia de que o aleph era um conceito importante na obra fantástica de Borges, tampouco tinha conhecimento de sua existência. Alguns anos mais tarde, quando finalmente conheci – e passei a admirar – os contos desse mestre da literatura mundial, lembrei-me do conto O Aleph e resolvi reler o gibi do Monstro do Pântano. Examinando cada quadrinho das cenas no aleph, adivinhem quem vi por lá, quase escondido em um deles? ALERTA DE SPOILER: Fuja deste parágrafo se não quiser saber. Ainda está aqui? Bem, digamos que o próprio escritor argentino dá as caras.

As matrizes infinitas do Aleph de Borges

Concluída esta longa digressão, retorno ao tema principal. A jornada espacial do Monstro do Pântano é uma viagem de autoconhecimento para o personagem. Diante de situações inusitadas e de seres alienígenas – aqui tomados no sentido mais literal possível – Alec Holland reflete sobre sua natureza híbrida e passa a entender mais claramente quem são os elementos e pessoas que o tornam mais próximo dos humanos que dos vegetais.  E, acima de tudo, percebe que a singularidade de sua existência empalidece diante da complexidade e da diversidade das formas de vida presentes no universo.

O coito interrompido de Rick Veitch

O substituto de Alan Moore no Monstro do Pântano não fez feio. Muito pelo contrário. A fase de Veitch manteve o interesse dos leitores e estabeleceu capítulos importantes na saga de Alec Holland. O crème de la crème ficou reservado para o final, quando o autor lançou o protagonista numa viagem ao passado, com direito a participações de personagens clássicos do Universo DC. A grande sacada de Veitch foi colocar o Monstro do Pântano correndo contra o fluxo temporal, enquanto o restante dos personagens seguia na direção normal. Isso deu origem a situações interessantes. Exemplo: na edição # 85 há uma aparição do feiticeiro indígena Wise Owl, que já sabia que iria encontrar o Elemental, porque isso tinha ocorrido com sua versão jovem em... Swamp Thing # 86! A grande diversão dessa minissérie é acompanhar o sentimento de desorientação de Alec Holland, potencializado pelo fato de seu futuro estar nas mãos de personagens que estão no passado. Os saltos no tempo de Alec Holland teriam como ápice a aparição de Jesus Cristo em Swamp Thing #88, mas o gibi foi vetado pelos editores, em razão de seu conteúdo potencialmente polêmico. Isso resultou na saída de Veitch, então substituído por Doug Wheeler, obrigado a encerrar, de modo abrupto, este arco. Segundo consta, a volta no tempo continuaria mesmo após a interação com Jesus, numa sequência que parecia impressionante

Entre mortos e feridos, a verdade é que Veitch montou uma história muito bem sacada, na qual a sensação de não pertencimento e de solidão é angustiante. Se o exílio espacial já havia sido particularmente doloroso, o banimento temporal não seria menos cruel com o Pantanoso. Na saga de Moore foi, ao menos, permitido ao personagem manter o pleno domínio das faculdades mentais e de seus poderes. Com Veitch, entretanto, o Monstro do Pântano – consciência vegetal que se deslocará em corpos recém falecidos – vai se tornar joguete de forças que possuem agenda própria. Suas reuniões com a versão jovem, mas nem por isso menos ensandecida, de seu arqui-inimigo Anton Arcane serão particularmente tortuosas.

A jornada temporal do Monstro do Pântano, além de muito bem amarrada, é pontuada pela aparição, nada gratuita, dos personagens clássicos da DC, desta feita homenageados por Veitch. A saga de Moore já havia confirmado a riqueza da Divina Concorrência da Marvel no que tange a temas espaciais e agora foi a vez de Veitch pagar seu tributo. Sargento Rock, Soldado Desconhecido, Ás Inimigo e Tomahawk são alguns dos coadjuvantes da viagem inglória de Alec Holland. Confesso que li muito pouco ou quase nada desses personagens, mas minha curiosidade foi bastante atiçada e passei a temer pela saúde financeira de minha conta corrente após descobrir que há várias republicações dos quadrinhos dessa rapaziada disponíveis por aí.

Este arco também foi agraciado capas belíssimas, que exibem o personagem interagindo, à sua maneira, com os nomes clássicos do Universo DC. Bem, melhor mostrar que falar:

Mark Millar: exílio na metalinguagem

Apadrinhado por ninguém menos que seu conterrâneo escocês Grant Morrison, o escritor Mark Millar debutou nos quadrinhos americanos no Monstro do Pântano, mais precisamente na edição # 140. Seus primeiros quatro números foram escritos em parceria com Morrison, que pareceu estar ali apenas para dar o kick-off na carreira do – hoje – bem sucedido amigo e colega de profissão. E, bem, a “pré-temporada” de Millar no gibi 2000 AD – verdadeiro celeiro de talentos quadrinísticos – foi bastante proveitosa, visto que o escritor começou na Vertigo já jogando como um profissional. Ainda que as histórias iniciais sob a batuta da dupla escocesa não sejam necessariamente uma maravilha, é difícil não perceber a evolução do texto de Millar – especialmente depois que ele passou a assinar os roteiros individualmente. E aqui cabe menção especial para o talento do argumentista em criar diálogos espirituosos e irônicos. Tudo isso sem deixar de dar espaço para ideias originais e insólitas. Por exemplo, as seis últimas edições de Millar na revista (#166-171), que por sinal fecham o caixão da série original, são simplesmente geniais e serão discutidas numa outra ocasião, já que merecem um post só para elas.

Bem, se você já foi atirado fora do espaço e do tempo, não há muito mais o que fazer, certo? Errado, já que, desta vez, Holland vai parar dentro de um livro. Neste arco, que ocorre nas edições Swamp Thing # 151-158, os homenageados não são os personagens da DC per se, mas sim o próprio gênero quadrinístico. Cada edição é um conto do livro fictício “River Run” – imaginado pela suicida Anna – e remete a um tipo de gibi específico: noir, terror, super-herói, etc. A edição # 153, por exemplo, vai agradar aos fãs de ficção científica, já que faz menção a uma realidade em que o Eixo venceu a II Guerra Mundial, num flerte com o livro Homem do Castelo Alto, de Philip K. Dick. No desfecho da minissérie – e não se preocupe que não há spoiler aqui – o Monstro do Pântano se deixa cair no oceano e chega à conclusão – numa referência direta ou indireta às suas jornadas anteriores – de que tempo e espaço já não possuem mais significado. E isso pode ser uma verdade para quem está preso dentro de um livro. Afinal, tempo e espaço podem ser consideradas constantesvariáveis dentro da cronologia do Monstro do Pântano e do Universo DC. Agora, quando o personagem é lançado em realidades alternativas – como os tais contos do livro –, o único limite para a sua jornada é a imaginação de Anna.

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A saga espacial do Monstro do Pântano foi publicada integralmente pela Editora Abril, na revista Monstro do Pântano, edições 11 a 19 (1990-1991). Esse material foi encadernado, pela Panini, em: Saga do Monstro do Pântano vols 5 e 6 (2015). A volta no tempo e a prisão no livro ainda permanecem inéditas no Brasil. Há boatos de que a fase de Millar sairá em breve no Brasil. Torçamos para que seja verdade. Já as perspectivas para a fase de Veitch são mais sombrias. Ela não chegou nem a ser encadernada nos EUA...

Considerações sobre a mídia "História em Quadrinhos"

A já clássica definição de McCloud Nos últimos tempos tenho me dedicado a leituras especializadas e à participação em cursos teóricos sobre a mídia "Histórias em Quadrinhos" (Comic Books) e, a partir dessa bagagem cultural, quero efetuar algumas breves considerações sobre o tema.

As obras teóricas Narrativas Gráficas, do genial quadrinista Will Eisner, e Desvendando os Quadrinhos, do estudioso Scott McCloud, são fundamentais para uma definição segura do que seja essa forma de arte e de comunicação. Eisner trata as HQs como verdadeiras "artes sequenciais", ou seja, enquanto "imagens dispostas em sequência, de modo a transmitir ideias e comunicar uma história".

McCloud tece uma definição mais específica, tratando as HQs como "imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada, destinadas a transmitir informações ou produzir uma reposta no espectador/leitor". Em outras palavras, as HQs seriam como que "recipientes midiáticos" que podem conter diversas idéias, imagens, temas, conteúdos, estilos e técnicas narrativas e artísticas, o que desde já desconstrói a opinião corrente de que possuem relação direta com temas específicos de caráter infanto-juvenil do porte de super-heróis ou de "animaizinhos" falantes engraçados. 

Apesar de muitas HQs possuírem tais conteúdos temáticos, elas não se resumem a isso e mesmo quando narram aventuras de super-heróis ou de animaizinhos falantes, tais como Watchmen, de Alan Moore, ou o Pato Donald, de Carl Barks, bem, tais HQs são impressionantes por vários motivos, sejam psicológicos, filosóficos, existenciais, históricos, sociológicos, dentre outros.

Na verdade, me parece que as opiniões depreciativas do público em geral sobre a mídia Histórias em Quadrinhos possuem diferentes motivos, a começar pela ignorância da maioria das pessoas sobre o que realmente seria tal veículo de comunicação e de manifestação artística (e emprego a palavra ignorância aqui em sua etimologia, como sendo o ato de opinar sobre algo sem o devido conhecimento de causa).

Juntando-se a isso temos a tradição de certos posicionamentos preconceituosos de educadores e "especialistas em juventude e adolescência" que, no decorrer das seis primeiras décadas do século XX, consideraram as HQs como sendo "vulgares, estúpidas, moralmente condenáveis e/ou como a expressão do baixo senso intelectual daqueles que não gostavam de livros". Muitos desses ditos intelectuais afirmavam em alto e bom tom que os leitores de HQs seriam jovens incapazes cognitivamente, sendo todos eles facilmente "manipuláveis diante de imagens de cores berrantes, rostos disformes e esgares contorcidos de ódio e terror, uma forma de manifestação que careceria de senso estilístico e gramatical".

Tais opiniões pejorativas e preconceituosas direcionadas às HQs aparecem no estudo de Thierry Groensteen sobre especialistas em juventude e delinquência nas décadas de 1950 e 1960. Muitas dessas opiniões sendo sintetizadas na impactante e absurda obra Seduction of the Innocent, do psiquiatra Fredric Wertham, de 1954. 

O autor desta obra, inserido no contexto do macarthismo (movimento político de perseguição a atividades consideradas subversivas que se baseava nos trabalhos de investigação do senado americano) estaria preocupado com a delinquência juvenil e com as influências nefastas de certos bens culturais midiáticos na moral tradicional estadunidense da época, o que levou a indústria das HQs à defensiva, condicionando a criação do tão difamado e contraditório Comics Code Autority.

Mesmo assim, a visão simplista sobre a mídia História em Quadrinhos não se resume a um contexto de paranoia coletiva ou mesmo de falta de senso “intelectual” sobre qualquer juventude transviada. É possível colocar na conta também de muitos especialistas das ditas humanidades que até a década de 1960 tinham posições bem demarcadas em torno da existência de uma cultura de elite em completa oposição a uma cultura popular, essa última sendo normalmente vinculada ao que se costumava denominar como "cultura de massas".

Escola de Frankfurt, Estudos Culturais

Para resumir essa dicotomia, é como se os artefatos culturais voltados para o homem comum, do povo, fossem naturalmente de baixa qualidade, quando não constituídos para a total alienação dos receptores de bens culturais, com fins ideológicos ou mesmo econômicos, dentro do processo de mercantilização e massificação da cultura do século XX. 

Alguns expoentes da famosa Escola de Frankfurt e também alguns pensadores marxistas expressaram posições que dicotomizaram a cultura como um todo, preocupando-se com os processos de alienação e dominação ideológica das massas via produção e difusão de bens culturais voltados para tais setores subalternos da sociedade (um viés importante, mas que acabou gerando tal visão hermética e unilateral das mídias em geral e dos quadrinhos em particular). 

Indiretamente ou não, as HQs, consumidas por milhares de jovens a partir da década de 1930, acabaram sendo depreciadas, sendo vistas como expressão da alienação das massas, como produtos massificados da ideologia dominante ou como bens culturais produzidos para fins exclusivos de lucro e acúmulo de riqueza de uma pujante e inovadora indústria cultural (é comum a utilização do termo mainstream, que designa certos artefatos culturais produzidos a partir de uma linha de produção de tipo industrial).

Ora, posso traçar aqui dois tipos de leituras teóricas distintas sobre os produtos massificados da dita indústria cultural mainstream, incluindo os quadrinhos, e isso, a partir das explanações do filósofo Douglas Kellner sobre o que ele tão bem denomina de “Cultura da Mídia”. 

Por um lado temos as leituras teórico-conceituais de alguns expoentes da Escola de Frankfurt (principalmente Theodor Adorno), que consideraram os produtos da indústria cultural (termo cunhado pelos pensadores dessa supracitada escola filosófico-teórica) como expressões da dominação de classe e/ou da alienação das massas. Por outro lado, temos os chamados Estudos Culturais Britânicos, que procuraram compreender a dialética intrínseca existente nesses produtos massificados, suas formas de alienação e ao mesmo tempo os posicionamentos críticos intrínsecos nos mesmos, ou seja, a expressão dos conflitos culturais e políticos existentes em nossa sociedade. 

Depreendo a partir disso que a visão preconceituosa da Escola de Frankfurt sobre os bens culturais da dita indústria cultural condicionou muitas das visões depreciativas no que tange aos quadrinhos, ainda que existam posições distintas que observam os produtos culturais voltados para as massas como sendo expressões igualmente críticas, subversivas e até inovadoras.

Canclini

Para ajudar no entendimento dessa dicotomia, seria possível traçar outras opiniões sobre bens culturais, agora a partir de dois importantes estudiosos da cultura: o primeiro, Edgar Morin, que relaciona a cultura de massas à indústria cultural para fins exclusivos de lucros rápidos em detrimento da cultura popular genuína e o segundo, Nestor Garcia Canclini, que considera existir uma hibridização entre a cultura de massas e a cultura popular, sendo a primeira consumida em razão de ecoar visões de mundo em amplos setores da sociedade contemporânea, porque mesclada ao popular, “ela se faz entender pelos receptores de bens culturais, podendo auxiliar, inclusive na formação crítica e da cidadania dos mesmos”, uma visão que se distancia da opinião corrente de que tudo o que é voltado para o povo significa alienação.

O caso da Marvel Comics

Para explicar como se daria a leitura de Canclini, seria imperativo trazer aqui um caso bastante peculiar relacionado à  famosa Marvel Comics, uma das grandes empresas de quadrinhos de super-heróis dos séculos XX e XXI. Exemplifico esse caso a partir das considerações extraídas da obra Marvel Comics, a História Secreta, de Sean Howe. Quando foi rearticulada em 1961 pelo escritor, roteirista e editor Stan Lee e pelo desenhista e criador Jacky Kirby, a Marvel se tornou uma espécie de "Casa das Idéias" de novos artistas, inovando o gênero dos super-heróis nos EUA e no mundo. Isso ocorreu porque os artistas da empresa colocaram em cena narrativas bastante antenadas com o contexto de seus leitores, gerando identidade nos mesmos em relação a super-heróis adolescentes ou mesmo homens e mulheres cheios de defeitos e contradições psicológicas, como se fossem meras pessoas comuns.

Quarteto Fantástico de Kirby: defeitos e contradições psicológicas

Com o tempo, porém, o espírito criativo foi entrando em conflito com o espírito corporativo da empresa, ocorrendo uma expansão gradual da linha de super-heróis Marvel e dos lucros das empresas que gerenciavam a linha editorial do gênero (só para constar, ao longo das três primeiras décadas de reformulação, a Marvel passou por três corporações diferentes). 

Starlin: comics não-alienados

Nos anos 1970 e 1980, certa independência dos artistas e editores-artistas geraram narrativas bastante engajadas, críticas e inovadoras (as narrativas cósmicas de Jim Starlin, por exemplo, fugiam a qualquer espírito corporativo que tivesse preocupações exclusivas com os lucros imediatos ou com qualquer alienação) ao mesmo tempo em que foram sendo controladas pelo corpo editorial, mais tarde centralizado nas mãos do virtuoso roteirista Jim Shooter.

No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, as coisas mudaram radicalmente, visto que os próprios artistas, agora verdadeiras celebridades do meio, começaram a não se preocupar mais tanto com a qualidade das narrativas de super-heróis, mas sim com desenhos multicromáticos e detalhistas, além de ações impactantes que gerassem nos leitores o fascínio pelas HQs, incrementando assim a mercantilização por parte de colecionadores e/ou especuladores do gênero, em meio ao crescimento do público mais adulto e consolidação das lojas de revistas especializadas (o chamado mercado direto de vendas). 

Artistas como Todd McFarlane e Rob Liefeld não precisavam de ordens de cima para se desvencilhar daquele espírito crítico e dinâmico da Casa das Ideias dos anos 1960, 1970 e início dos 1980. Eles simplesmente foram se inserindo no esquema dos especuladores de HQs cromáticas, com capas e artes detalhadas ao extremo e histórias cheias de ação gratuita e vazias, quase que pasteurizadas. Ainda assim, bons arcos podiam aparecer na Marvel e nada era maquiavelicamente pensado para alienar ou mesmo para gerar convulsões sociais entre os jovens leitores.

Os lucros sempre fizeram parte da equação empresarial, desde os anos 1960 (até antes disso, nos tempos da Timely Comics) e não afetaram diretamente as boas idéias dos artistas da empresa nas primeiras décadas de reformulação Marvel, ainda que por causa dos descontentamentos por direitos autorais, muitos desses artistas tenham se desentendido com a Marvel ao longo dos anos (incluindo o maior dos criadores do universo Marvel, Jack Kirby).

Spawn, de McFarlane: em tudo, excessos

Estudos sobre quadrinhos no Brasil

Agora, seria importante mencionar também que existem no Brasil diversos especialistas em HQs, todos eles referências para qualquer estudioso que pretenda seguir por essa seara, muitos dos quais respeitados em suas respectivas áreas de conhecimento, o que demonstra uma mudança gradual acerca do olhar voltado para essa mídia. 

Alvarão de Moya, na Primeira Exposição

Internacional de Histórias em Quadrinhos

Nomes como de Álvaro de Moya, Antônio Luiz Cagnin, Zilda Augusto Anselmo, Waldomiro Vergueiro, Sérgio Augusto e Moacy Cirne devem ser listados nas bibliografias de qualquer trabalho acadêmico sobre a mídia, sendo que todos esses autores possuem trabalhos complexos e interessantes que são facilmente encontrados na internet. 

Em um artigo recente, Vergueiro específica os tipos de estudos acadêmicos existentes sobre quadrinhos na USP e sua classificação pode auxiliar quaisquer novos pesquisadores sobre o assunto. Em primeiro lugar existem aqueles estudos que tratam da linguagem das HQs, a forma como são constituídos, com seu tempo espacializado, sua elipse narrativa, as formas de enquadramento e de perspectivas, as representações de sons, chamadas de onomatopeias, as linhas cinéticas que dão movimento às imagens e até mesmo o estudo da "sarjeta", que seria aquele espaço vazio entre os quadros e que serve à elipse narrativa, onde os leitores interagem com o escritor para dar continuidade e significados às sequências dispostas.

Em segundo lugar podemos elencar a análise de conteúdos, ou seja, os significados presentes nas HQs, bem como os processos de codificação das mensagens das mesmas. Em terceiro lugar, temos as análises históricas das HQs, quando foram produzidas, publicadas e distribuídas e as relações com os seus respectivos contextos históricos, o que seria a análise das conjunturas, do levantamento das publicações e da recuperação da memória das narrativas, seja dos artistas ou de seus editores. Em quarto lugar são elencadas as análises das sociedades e culturas subjacentes às produções de HQs, que seria uma abordagem relacionada a temas comuns presentes nas mesmas e em nossa sociedade e cultura, tais como violência urbana, guerra, racismo, sexismo, feminismo, xenofobia, etc. 

Seguindo aqui as premissas do historiador Paul Veyne, “todo estudo histórico é igualmente sociológico, significando que as perspectivas histórica e sociológica se interpenetram”. Outras formas de leituras seriam a análise técnica e estética das HQs, as formas de aplicações práticas em marketing, bem como as análises de recepção, ou seja, como as histórias foram lidas e quais as reações do público leitor ante as narrativas das mesmas (essa tarefa é facilitada hoje em dia devido à internet e blogs especializados, aonde os leitores efetuam comentários sobre o que foi publicado em termos de narrativas gráficas). Isso sem falar nos estudos sobre a economia das HQs, as tendências de mercado, os tipos de público para cada gênero, suas segmentações.

Coloco aqui mais um tipo de estudos que me interesso sobremaneira, os estudos sobre os "usos do passado", ou seja, estudos sobre o contexto histórico de produção e difusão de algum arco ou história que tenha um passado histórico qualquer como tema (por exemplo, a famosa obra Asterix, de René Goscinny e Albert Uderzo, que trata da conquista das Gálias por Júlio César no século I A.C.), o que sugere uma análise sobre a forma como é representado esse passado no mundo contemporâneo.

O caso de Alan Moore

Para finalizar, gostaria de tecer alguns comentários sobre Alan Moore, que criou narrativas de extrema qualidade do porte de Watchmen, V de Vingança, A Liga Extraordinária, Do Inferno, Promethea, e tantas outras.  Após observar atentamente seus comentários no documentário The Mindscape of Alan Moore percebo que sua obra Promethea é a expressão mais genuína daquilo que ele define como arte e magia. O que me impressiona em Moore, além de sua enorme erudição, é o fato de vincular arte com magia, como se uma manifestação artística fosse a elevação do homem para outro nível de consciência, como se o artista, inspirado por forças mágicas, pudesse, com seus artefatos culturais, moldar e transformar o nível de consciência dos indivíduos de modo que esses transformem a realidade à sua volta, adquirindo uma consciência igualmente mística ao tocar o mundo sobrenatural com tal consciência.

Promethea: ocultismo, kabhala, esoterismo - some crazy shit!

Para muitos críticos das opiniões de Moore (e devo dizer aqui, críticos que não entendem o conteúdo das palavras do roteirista inglês), isso parece a expressão da mais pura insanidade embebida em drogas, mas Moore reinterpreta, por meio de seus conhecimentos e releituras sobre Ocultismo, Kabhala e Esoterismo, o que pensavam os antigos poetas aedos gregos, que concebiam sua poesia como a inspiração das musas e das forças primordiais, como se fossem tocados pela luz da verdade. 

Como bem reitera o estudioso antiquista Marcel Detienne ao tratar do pensamento mítico entre os gregos antigos, a aletheia significaria para eles a verdade, a luz que ilumina o homem com a inspiração das musas, que tira os entraves da ignorância e da escuridão, representadas pela lethe. Para os aedos, ou seja, para os poetas gregos dos tempos homéricos, a arte servia para a inspiração e a elevação do pensamento humano, das consciências. 

Se Moore tem alguma leitura teórica sobre tudo isso, é difícil afirmar (eu realmente acredito que sim), mas com certeza seu conhecimento empírico, embebido pela literatura, pela filosofia e pela mitologia (a partir das premissas de Joseph Campbel, presumo) fez com que ele se veja como um poeta aedo dos quadrinhos, o que estaria próximo das artes da magia. 

O fato de ele se ver como um mago leva muitas pessoas a taxarem-no de insano ou excêntrico, mas a magia para ele seria a arte que inspira e toca a consciência do seu público leitor e isso, para os grandes filósofos gregos (como Aristóteles, por exemplo) seria o dever da poesia, de inspirar e colocar as grandes questões existenciais em pauta. Só para finalizar essas breves considerações: Moore chega a afirmar que mitologia é uma forma de linguagem complexa (e quanto mais deuses existentes em um corpus mitológico, mais complexa), uma ideia encontrada em pensadores como Roland Barthes e Juanito de Souza Brandão. 

Se ele leu os dois pensadores, realmente não sei afirmar, mas ele expressa ideias bastante ricas e complexas e isso mostra que sua obra não é apenas um punhado de tinta e letrinhas psicodélicas sobre o papel. Se pararmos para pensar em tudo isso, podemos afirmar então que os quadrinhos possuem um alto grau de abstração e sabedoria de vida, tal como seriam os mitos para Moore e Campbell, claro, desde que bem escritos, elaborados e articulados.

O que depreendo de todas essas considerações estabelecidas no presente texto é que, antes de julgarmos as Histórias em Quadrinhos como uma forma de arte ou de comunicação eminentemente popular de massas (em seu sentido depreciativo) e alienante, que conheçamos antes seus autores, produtores, desenhistas e leitores e que percebamos a complexidade dessa mídia, ou seja, que vejamos as suas especificidades e riquezas. 

A mídia, histórias em quadrinhos pode conter diversos tipos de narrativas, podendo ser narrativas infantis, adultas, adolescentes ou até mesmo mescladas, contraditórias e misturadas, com toques variados. Podem ser até mesmo ensinamentos filosóficos para a elevação da consciência humana. Vejamos os quadrinhos como devem ser vistos, ou seja, como uma forma de comunicação e de manifestação artística, logicamente que apropriada pela industrial cultural mainstream para a geração imediata de vultosos lucros, ainda que possuindo diversos elementos interessantes, críticos e até subversivos. 

BONS QUADRINHOS QUE LEMOS EM 2015 - PARTE 3

Acompanhei, à distância, boa parte dos quadrinhos – publicados por grandes editoras ou independentes – lançados no Brasil ao longo de 2015, mas li bem menos do que gostaria. Conferi muita coisa nas bancas e livrarias, mas poucas voltaram comigo ($) para casa. As melhores surpresas vieram dos sebos, onde costumo encontrar grandes achados, e em 2015 não foi diferente. Mas gostaria de ter bem lido mais. Lido outras coisas. Terei que correr atrás de muito quadrinho bom. Coincidência ou não, na hora de preparar esta lista, percebi que ela é composta basicamente de relançamentos ou material antigo (comics, mangá e BD). Teci breves comentários sobre 10 deles, elencados abaixo sem nenhuma ordem hierárquica, abordando roteiro, arte e também questões editoriais (como papel, impressão, etc). (PB)

Parte 1

Parte 2

por Pedro Brandt

1 - COMICS STAR WARS - CLÁSSICOS VOL. 4 E 5 - Archie Goodwin (roteiro) e vários (arte) (Planeta DeAgostini, 2015): O universo de Guerra nas Estrelas em quadrinhos é vastíssimo e a coleção Comics Star Wars - Clássicos, publicada desde setembro de 2014, é uma ótima oportunidade para o leitor brasileiro interessado em conhecer esse material, grande parte dele inédito por aqui. Serão ao todo 70 edições. Tem muita bobagem no meio (histórias insossas, desenhos canhestros), mas também algumas pérolas. As edições 4 e 5, por exemplo, guardam um tesouro especial: a adaptação ilustrada por Al Williamson de O Império contra-ataca. Renomado desenhista e arte-finalista, Williamson (1931-2010) recria o episódio V da saga cinematográfica com base em stills do longa-metragem de 1980. O ritmo da HQ é diferente do filme, bem mais lento e pouco dinâmico, ainda que, dado o número de páginas, a leitura seja rápida. Tudo isso poderia pesar contra a HQ, mas, pelo contrário, é o ideal para consumir a sensacional arte desse desenhista americano. A interpretação de Williamson para o filme dirigido por Irvin Kershner é bastante fotográfica, fiel às cenas que o inspiraram, mas é recriada pela ótica e estilo gráfico do ilustrador, à época, já um veterano de renome, mestre em cenários exóticos e ambientações fantásticas em quadrinhos de aventura, inspiração não apenas para George Lucas, mas para incontáveis outros criadores. Cada edição da coleção, publicada pela editora Planeta DeAgostini, é vendida lacrada em embalagem de plástico transparente, tem capa dura, papel couché, ótima impressão e recriação de cores (sem pesar a mão no digital). Mas tem um problema: não informa na contracapa detalhes do conteúdo de cada edição, quem são os autores, ano de publicação original, enfim, algo além de uma breve sinopse das tramas. Cabe ao leitor se informar sobre cada uma ou arriscar e comprar no escuro.

2 - COLEÇÃO HISTÓRICA MARVEL – O HOMEM-ARANHA #7 - Stan Lee, John Romita e Jim Mooney (Marvel / Panini, 1969-1970 [2014]): No final dos anos 1960, o roteirista Stan Lee, o desenhista John Romita e o arte-finalista Jim Mooney, então equipe de produção do Homem-Aranha, viviam um momento inspirado. As histórias presentes em Coleção Histórica Marvel – O Homem-Aranha # 7 (contemplando as edições # 68-75 de The Amazing Spider-Man, lançadas originalmente entre 1969 e 1970) apresentam um punhado de ótimas histórias, com ação e drama na mesma medida, mostrando o personagem em sua essência: a dualidade entre o universitário correto e desajeitado, sem grana ou tempo para família, amigos e namorada, fazendo jornada dupla (não remunerada!) como mascarado combatente do crime de grandes poderes e responsabilidades, além de desacreditado e à beira de desistir, contracenando com uma galeria de clássicos coadjuvantes (Rei do Crime, Lagarto, Shocker, Gwen Stacy, entre outros). Até aí, tudo dentro do esperado. É sabido que este é um dos melhores momentos da trajetória do personagem nas HQs. O que realmente chamou minha atenção nessa leitura foi perceber – desta vez, conscientemente – como o time por trás dessas histórias alcançou esses resultados. Esses quadrinhos, e tantos outros da mesma época, são exemplares da modernização pela qual a Marvel passava naquele período, com novas abordagens para personagens, atualizando pautas e trazendo um pouco de mundo real para as tramas, aproximando o leitor dos heróis; e, tão importante quanto, novas maneiras visuais de contar histórias de aventura. Em parceria com alguns talentosos desenhistas, Lee forjou um jeito Marvel de fazer histórias em quadrinhos (o livro How to do comics the Marvel way não tem esse nome à toa): ação quase ininterrupta, poucos quadros por página, narrativa econômica e eficiente (mostrando apenas o que é necessário e sempre trabalhando por uma continuidade clara da narrativa), influência de montagem cinematográfica, cenas dinâmicas de ação compostas por quadros com infinitas opções de angulação e uma série de recursos gráficos para retratar sentimentos e ações dos personagens. De um quadro para o outro, de uma página para a seguinte, de uma edição para a próxima, as conexões são ágeis, magnéticas, deixando o leitor sempre sem fôlego, curioso pelos próximos capítulos. Esse material é clássico e, dada a distância do tempo, mantém o frescor da novidade. Uma leitura divertida e, acima de tudo, instrutiva. Uma verdadeira aula de quadrinhos de super-herói. Pena que a impressão e a colorização – problema não apenas aqui, mas em outros títulos da coleção – ficaram tão lavadas, tanto nas cores como em várias áreas de preto.

3 - OS 80 ANOS DO PATO DONALD - POR SEUS PRINCIPAIS ARTISTAS

 - Vários autores (Disney / Abril, 1944-2014 [2014]): Os fãs de quadrinhos Disney não têm do que reclamar. Além dos títulos publicados mensalmente, as bancas estão sempre recebendo coletâneas especiais de seus principais personagens, como Donald, Mickey e Tio Patinhas. Mais do que as histórias propriamente ditas – algumas divertidíssimas, engraçadas, mas boa parte bastante infanto-juvenil, ingênuas e até mesmo bem bobinhas – foi o caráter histórico e panorâmico de Os 80 anos do Pato Donald– Por seus principais artistas que me atraiu para esta coletânea. É interessante notar como os desenhistas representados aqui (americanos, europeus e brasileiros. Nomes consagrados como Carl Barks, Don Rosa, Giovan Battista Carpi e Giorgio Cavazzano), cada um à sua maneira, consegue driblar as limitações do model sheet e imprimir sua marca distinta nas tramas e nos traços das histórias. Um índice detalha o país de produção, ano de cada HQ e se ela é inédita ou uma republicação no Brasil. Biografias apresentam os autores e suas principais contribuições para o universo de Donald nas histórias em quadrinhos. O acabamento da edição é impecável: capa dura, 480 páginas e papel couché (que é ótimo no geral, mas algo menos brilhoso valorizaria mais a arte). Infelizmente, as cores da maioria das histórias foram recriadas em computador, sem preocupação de quando elas foram publicadas originalmente. Fica feio, vulgar. Não faz nenhum sentido uma coloração assumidamente digital (que em nenhum momento tenta negar sua condição como tal) numa HQ da década de 1940!

4 - A DRIFTING LIFE – Yoshihiro Tatsumi (Drawn and Quarterly, 2009): Impossível assistir ao filme de animação Tatsumie não se interessar em conhecer os quadrinhos deste autor japonês. Diretor do longa-metragem, Eric Khoo apresenta adaptações de histórias curtas criadas por Yoshihiro Tatsumi (1935-2015) entremeados a várias passagens da vida do artista descritas na obra autobiográfica A drifting life. Apesar de seu tamanho monumental, com mais de 800 páginas, a leitura flui rapidamente e, em pouco tempo, o leitor pode ver-se engolido pela obra. Tatsumi nos fisga com relatos de drama e superação com uma narrativa detalhada (esbarrando por vezes na redundância) de sua trajetória pessoal (infância pobre, brigas familiares, relacionamentos) e profissional (os desafios para se manter como autor de mangás). Em paralelo, reconta a história das histórias em quadrinhos no Japão. Tudo com uma sensibilidade e leveza típicas dos autores japoneses (vêm à mente cineastas como Mikio Naruse e Yasujiro Ozu), apresentado com uma arte simples e eficiente em narrativa, construção de cenas e uso de recursos gráficos. A edição da editora Drawn & Quartely para a obra é simplesmente impecável (papel, impressão, acabamento, tudo)!

5 - THE ROMITA LEGACY - Tom Spurgeon (Dynamic Forces, 2010): Pai e filho, os desenhistas John Romita e John Romita Jr. fazem parte da história principal não apenas da Marvel Comics, mas da história das histórias em quadrinhos americanas. Tom Spurgeon apresenta longas entrevistas com ambos e reconta suas trajetórias, com enfoque na vida profissional. Pai e filho artistas comentam suas principais influências, o desenvolvimento de seus estilos de desenho, diversos bastidores da indústria dos quadrinhos, além, é claro, do relacionamento entre eles. Tudo acompanhado de dezenas de reproduções de páginas, capas, pinups e rascunhos. Um índice no fim do livro compila toda a produção quadrinistica de Romita Sr. e Jr. até 2010 (quando foi publicada a primeira edição). Como todo livro desse tipo, é recomendado especialmente para fãs.

6 - CREEPY – CONTOS CLÁSSICOS DE TERROR VOL. 2 – Vários autores (Dark Horse /  Devir, 1964-65 [2013]): Quando você pega uma coletânea da Creepy para ler está imediatamente fazendo um acordo entre as partes: a Creepy finge que te assusta e você finge que sente medo. Nada é minimamente assustador. As histórias são curtas demais e, geralmente, não conseguem alcançar um clima de suspense para então surpreender o leitor com uma reviravolta criativa ao final de cada trama. Tudo é muito ingênuo – bruxas, vampiros, múmias e mortos-vivos com uma abordagem datada. Quem não conta com o poder da nostalgia talvez se decepcione. Como leitura histórica e coletânea de grandes autores, aí é outro papo. O time da Creepy contava com os talentos de Frank Frazetta, Al Williamson, Alex Toth, Wallace Wood, entre outros grandes nomes, alguns veteranos e outros novatos à época (caso de Bernie Wrightson). Todos eles têm trabalhos melhores antes e depois de Creepy (aqui, parecem um tanto domesticados), mas não são chamados de mestre à toa. E é sempre bem-vinda uma publicação reunindo tanta gente boa. Destaque para as histórias com o personagem Adam Link, com desenhos de Joe Orlando e texto de Eando Pearson, protagonizadas por um robô com sentimentos humanos vivendo em uma sociedade hostil; e para o conto sobre a cobiça "Item de colecionador", de Archie Goodwin e Steve Ditko. A Devir está de parabéns com a edição, mas peca em um aspecto: por se tratar de quadrinhos tão fortemente associados a uma época, não dá para não se queixar das fontes de letras (computador, seu vilão!) utilizadas em algumas histórias, que tiram a cara vintage do material e soam como um corpo estranho ali.

7 - MIRACLEMAN – Alan Moore e vários (Marvel / Panini, 1982 [2014/15]): Muito já foi falado sobre Miracleman e sobre Alan Moore. Pulemos essa parte. Se você ainda tem dúvida sobre ler ou não Miracleman eu te digo: vá na fé, irmão. Mas eu entendo quem ainda não se deixou pegar pela série. Ao folheá-la, percebe-se que a arte não é o forte da HQ. Alan Davis, Gary Leach e os outros desenhistas que passaram pela série eram todos novatos na época, com estilo pouco definido e sem polimento. O que não empaca o ótimo roteiro de Moore, repleto de reviravoltas e surpresas, e a fluidez dos episódios, garantindo o bom entretenimento e a curiosidade para voltar à banca no mês seguinte. Os ingredientes viagens no tempo, conspirações governamentais, alienígenas e super-heróis (inseridos num contexto mais realista) são velhos conhecidos, mas Moore cozinha-os com seus temperos mágicos e leva-os para um nível superior. Logo na edição # 2 tem um acontecimento envolvendo Mike Moran (o Miracleman) e seu antigo pupilo Johnny (sem spolier) que me ganhou na hora. Mas (que chato, sempre tem um “mas”!), vendida por quase R$ 8, as edições deixam um tanto a desejar. Lá pela edição # 5 eu percebi estar sendo “meio” enganado. A impressão é que paga-se muito para ter apenas meia revista de Alan Moore (ou, o “roteirista original”, como ele está creditado) e o resto com histórias clássicas sem nenhum sabor, rascunhos (quem quer rascunho de desenhista meia boca?!) e pinups que nada acrescentam. Que venha logo um encadernado com apenas o filé!

8 - A SAGA DO MONSTRO DO PÂNTANO - LIVRO 4 - Alan Moore, Stephen Bissette, John Totleben, Stan Woch (DC Comics / Panini, 1985-6 [2015]): Tal qual em Spirit ou em Sandman, muitas das melhores histórias em O Monstro do Pântano têm o protagonista apenas como coadjuvante (ou nem isso), dando espaço para personagens secundários brilharem. O livro 4 de A saga do Monstro do Pântano, que engloba o ciclo Gótico americano, tem muito disso. Enquanto acompanhamos o protagonista em um percurso pelos Estados Unidos em busca de autoconhecimento, somos apresentados ao hippie Chester e suas experiências alucinógenas, ao grupo de jovens de Dança dos fantasmas e, principalmente, ao irritantemente carismático John Constantine. Ao contrário das tolas histórias de Creepy, aqui temos feitiços, casas mal-assombradas, manifestações sobrenaturais, psicopatia e demência usadas para máximo efeito. A arte de Stephen Bissette, John Totleben e Stan Woch são todas de uma personalidade visual esquisita, feia até. Mas essa feiura, esse exotismo gráfico, em determinado momento da leitura se tornam algo tão natural e próprio de cada história que funcionam como o complemento ideal para os roteiros de Alan Moore.

9 - SETON – UM NATURALISTA VIAJANTE – VOL. 1: LOBO, O REI DE CURRUMPAW – Jiro Tanigushi e Yoshiharu Imaizumi (Futabasha Publishers / Panini, 2004 [2008]): A simples menção de Jiro Tanigushi na capa de um quadrinho deveria ser o suficiente para atrair a atenção do leitor. Uma pena que pouquíssimo material do autor japonês tenha saído no Brasil.

Seton é um deles. Aqui, Tanigushi atua “apenas” como ilustrador e os roteiros são de autoria de Yoshiharu Imaizumi. Seton é inspirado na vida de Ernest Thompson Seton (1860-1946), pioneiro do escotismo e homem com forte admiração pela vida selvagem. Cabe a ele tentar capturar “O lobo”, líder da matilha que aterroriza os rebanhos da região de Currumpaw (EUA). Diferente da maioria dos quadrinhos de caubói, focados no embate de justiceiros e criminosos, Seton se foca na relação do homem com a natureza de maneira sensível e respeitosa. A narrativa tem fôlego tanto para as sequências de ação (que, pela dinâmica dos quadros, tem o pique dos animes), quanto para o drama. Fãs de Caninos Brancos(Jack London) e Princesa Mononoke (Hayao Miyazaki) têm de conhecer a obra. A despeito de suas qualidades, o mangá vendeu pouco e apenas o número 1 (de quatro) foi publicado pela Panini no Brasil.

10 - OS PASSAGEIROS DO VENTO #2 – O PONTÃO – François Bourgeon (Glénant / Meribérica / Liber, 1980): Pobres piratas! A pirataria, antes um gênero de aventura que rendeu incríveis livros, filmes e histórias em quadrinhos nos últimos tempos foi resumida a Jack Sparrow! Sendo assim, voltemos aos clássicos. Autor de Os passageiros do vento, o roteirista e desenhista francês François Bourgeon é do tipo que transporta o leitor para dentro de suas histórias. Faz isso com engenhosos roteiros, minuciosas pesquisas de época e dando a seus personagens uma vivacidade autêntica. Além disso, seu traço inconfundível (seus homens e mulheres têm feições bastante particulares) e a reconstrução fidedigna de barcos, armas, castelos, roupas e objetos de época acrescentam ainda mais à experiência intensa de leitura da obra. O mote de O pontão é o resgate engendrado por Isa e sua amiga Mary para resgatar Hoel de um navio (o tal “Pontão”) utilizado como prisão. Além da aventura, o relacionamento entre os personagens, todos donos de personalidades marcantes, dão bom ritmo à narrativa e impulsionam a história para o próximo episódio, de modo a deixar o leitor sedento por mais.

Algumas palavras... antes de Before Watchmen



Sim, ficamos um mês de férias, sem avisar. Deem um desconto. O povo aqui tem vida. Mas tem mais coisa pra mostrar em Raio Laser. Preguiçosamente, depois dos nossos orgulhosos dois dias de Omelete, retornamos. E quem puxa o bonde é o colaborador Lima Neto, dono da Kingdom Comics, figura onipotente das HQs em Brasília, etc, etc ("bocejo") que traz texto reflexivo, com enorme potencial de polêmicas, sobre a famigerada "Before Watchmen" (eu, na minha humilde desatenção, digo que parece maneiro). Gostaria de salientar que tenho orgulho de ter Lima como colega no PPG-COM da UnB. Valeu Limão! (CIM)
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por Lima Neto

“Os quadrinhos são os filhos bastardos da imprensa com o mercado” disse Art Spiegelman certa vez (Art Spiegelman, caso você tenha entrado neste site por engano à procura de promoções em tratamento estético a laser, é um dos principais quadrinistas a chamar a atenção do grande público para a arte das HQ´s, e seu potencial é para abordar temas mais sérios e espinhosos como campos de concentração e antissemitismo, caso de sua obra-prima Maus). E como mercado e HQ´s mainstream são meus assuntospreferidos para tratar aqui, evoco a fala de Spiegelman e acrescento que estes filhos, em sua encarnação mais mercadológica – os comics norte-americanos – além da sua infeliz condição de bastardos, estão passando hoje por um momento de exploração intensiva e abusiva por parte dos grandes conglomerados do entretenimento, acrescentando a uma relação incestuosa (como coloca Alan Moore) um nível só visto antes na aurora da indústria dos comics.


E, já que falamos aqui do escritor Alan Moore, recentemente a DC Comics anunciou uma série de especiais entitulados Before Watchmen, onde um eclético grupo de escritores e artistas exploram o passado do universo criado pelo polêmico mago inglês e pelo artista Dave Gibbons. Preciosismos à parte, a lista é de impressionar: Darwin Cooke, Amanda Corner, Adam Hughes, Jae Lee, Joe e Adam Kubert, Brian Azarello, além do controverso escritor J. Michael Straczinsky. Há ainda um nome curioso que está há bastante tempo sem produzir e que tem sua carreira entrelaçada à de Moore por motivos não menos curiosos: Lein Wein.  Wein é um notório antipatizante de Moore e criador do personagem Monstro do Pântano, que foi a porta de entrada do mago nos comics. Lein era editor da DC quando quis alterar o final da minissérie por considerar ser uma idéia não muito original. Tendo razão ou não, a tensão no final da série marcou a relação de Moore com a DC e os trabalhos futuros. Ironicamente, agora Wein vai ter a chance de mostrar sua visão da série em Before Watchmen.

Nem preciso dizer que este projeto incendiou os fóruns e a imprensa especializada, e que isso irritou bastante Alan Moore, que já havia se posicionado contra qualquer utilização da história em projetos caça-níqueis posteriores. E que, enquanto o editor Paul Levitz capitaneava a editora, este acordo de cavalheiros se manteve inalterado até a Time Warner decidir que deveria assumir as rédeas administrativas daquela pequena editora que possuíam e que mal rendia lucros com suas vendas (lógico, falo isso dentro da ótica agigantada de um monstro corporativo do porte da Warner), mas que tinha propriedades criativas que lhe rendiam bilhões de dólares nas portas dos cinemas e nas lojas de brinquedos.

Há aproximadamente um ano, o quadrinista Darwin Cooke, a mente e mãos por trás de obras como o libelo da era de prata DC Nova Fronteira e suas muito bem recebidas Graphic Novels Richard Stark´s Parker: The Hunter e Parker: The Outfit – que adaptam os livros da novela policial de Donald Westlake – , disse ter sido abordado pela nova direção da editora de Super-Homem  para trabalhar em um projeto com os personagens de Watchmen. Cooke afirmou nutrir um respeito imenso pela obra e que considerava ofensiva uma tentativa de retornar a este universo sem que seus criadores originais estivessem envolvidos ou que houvesse ao menos uma autorização por parte de Moore. No entanto, ao anunciarem Before Watchmen para o público, seu nome figurava como uma das maiores estrelas envolvidas no projeto, encabeçando títulos que, imaginados pela sua visão particular, exalam o perfume apetitoso que suas obras liberam : Minutemen – o equivalente à Sociedade da Justiça do universo de Dr. Manhattan e sua trupe de heróis disfuncionais; e o título Silk Spectre – narrando as aventuras da heroína mascarada da era de ouro e que será ilustrada pela artista Amanda Corner. 

Além destes títulos ainda temos Brian Azarello em colaboração com seu parceiro de trabalho Lee Bermejo em uma série de Rorchach e, tendo J. G. Jones com colaborador, uma série do Comediante.  O já citado Lein Wein fará dois títulos, uma série de Ozimandias com a soturna arte de Jae Lee; e uma revista misteriosa chamada Crimson Corsair desenhada por John Higgins. J. Michael Strazinsky estará por trás dos roteiros de uma série do Doutor Manhattan, ilustrado com a bela arte de Adam Hughes e também da série de Nite Owl, que conta com o lápis de Andy Kubert e o nanquim de seu pai, o mestre Joe Kubert (que cairia melhor, talvez, no título do Comediante).


Obviamente, junto a esse projeto já estão programados estátuas e figuras de ação produzidas pela DC Direct, ramo da DC comics que cuida dos produtos colecionáveis. Aliás, este mês também a DC Direct mudou de nome, e agora atende por DC Collectibles.  A troca do nome atende às mudanças que a nova direção impôs, afinal, colecionismo doentio é uma das modas propagadas pela principal vitrine da DC: o seriado Big Bang Theory. Mudar o nome é uma ótima estratégia para guiar o público da série para o setor da empresa que transforma o hobby em moda e estilo de vida.


Retornando aos gibis, pensar no produto que estas mentes podem conceber é algo que realmente dá água na boca. E não me sinto nem um pouco culpado em reconhecer isto. Pelo menos não tanto quanto me sentiria em ler um fanfic de boa qualidade que envolvesse os personagens de Watchmen. Alias, a palavra que mais se encaixaria para descrever este projeto seria exatamente esta: Fanfic. Lógico que os fãs envolvidos na produção desta ficção são profissionais de grosso calibre, fato que não desmerece qualquer mérito estético-narrativo que essas obras possam vir a ter. Mas o que me impede de nomear Before Watchmen como Fanfic é um único e importantíssimo fator: Não se paga, ou se lucra, por fanfics. O objetivo de um Fanfic é sempre o de extravasar as histórias que ainda continuam sendo escritas nas cabeças dos fãs anos depois de eles terem lido determinadas obras. O que empesteia todo esse empreendimento, manchando boas índoles profissionais e desrespeitando criaturas e criadores é a insistência dos executivos da Warner em disfarçar exploração descarada de bens intelectuais que se perderam em acordos jurídicos assinados em uma época que era impossível prever o que tais obras se tornariam (Batalha DC XShuster/Siegel, alguém? Alguém?) com um discurso de “homenagens” a importância dessas obras ou criadores. Ano passado, outra “homenagem” de mau gosto enfureceu a família do falecido Dwayne McDuffie. A editora anunciou uma edição especial de seu personagem Static Shock,  conhecido no Brasil como “Super Choque” em que por U$ 5,95 você podia relembrar a obra de McDuffie sem que nenhum centavo das vendas desta revista fossem repassados a família. Os parentes do autor, lógico, obrigaram a editora a cancelar a edição.

Na contramão disso tudo, autores independentes têm encontrado na net um terreno fértil para publicarem seu trabalho. Tão fértil, que é preciso muitas horas livres para garimpar as perolas potenciais deste novo meio. Meio este que também é responsável pelo grosso do prejuízo que os conglomerados midiáticos monstruosos vêm sofrendo com a distribuição gratuita de filmes e scans de gibis. Se isso é bom ou ruim é outra complexa discussão, mas que, graças ao escritor Mark Waid, seu novo blog de opinião e seu novo cargo como coordenador do selo Marvel Infinity de quadrinhos desenvolvidos direto para tablets e iphones, tentaremos pincelar no nosso próximo texto. Concluo imaginando, em um futuro bem próximo, um Alan Moore bonachão liberando na net as páginas de Before Watchmen para todos que quiserem matar a curiosidade de ler estas homenagens à sua obra. E cobrando o preço justo que uma obra não autorizada deve ter.