por Pedro Brandt
Em 1937, a série
A Garra Cinzenta dividia espaço com as aventuras dos personagens Fantasma e Super-Homem no suplemento infantil
Gazetinha, do jornal paulistano
A Gazeta. A popularidade da criação do roteirista Francisco Armond e do desenhista Renato Silva era tanta que, em 1939, depois de publicados todos os 100 episódios, a série foi relançada em dois volumes.
Com o passar dos anos, o culto ao redor de A Garra Cinzenta só aumentou. E também o mistério a respeito da HQ brasileira (considerada a primeira no país e ter elementos de terror). Algumas perguntas permanecem sem resposta. Por que, mesmo popular entre os leitores, a série foi interrompida abruptamente? E, afinal, quem foi Francisco Armond?
Garra Cinzenta, edição de luxo e fac-similar que a Conrad acaba de colocar nas livrarias, não responde essas perguntas. Mas faz justiça a um título que marcou época, virou xodó de colecionadores e, mesmo tendo sido republicada em mais duas ocasiões (somente a primeira parte, em 1975, e em tiragem limitada e completa, em 1998) e estar disponível para download em vários sites, estava há muito fora de catálogo.
Na nova edição, as 100 páginas da história são antecedidas por um informativo prefácio do pesquisador das histórias em quadrinhos
Worney Almeida de Souza. A leitura ajuda a entender o contexto em que
A Garra Cinzenta foi publicada (quando São Paulo, ainda uma cidade tranquila, almejava se tornar uma grande metrópole) e suas repercussões. “À época, seu sucesso foi tão grande que ultrapassou as fronteiras do país, e
A Garra Cinzenta chegou a ser publicado até na Europa. Na França e na Bélgica, graças à revista
Le Moustique, o personagem ficou conhecido como Griffe Grise. E, segundo alguns estudiosos, teria influenciado diretamente diversos personagens de HQs internacionais, como o
Blazing Skull (Caveira Flamejante) da Marvel e os italianos
Kriminal e
Satanik", comenta Worney.
Renato Silva (1904-1981) foi desenhista atuante em diversas áreas, entre elas, os quadrinhos. Um de seus trabalhos mais conhecido são as ilustrações do livro
Cazuza, clássico da literatura infanto-juvenil brasileira escrito por Viriato Corrêa. Sobre Francisco Armond, Worney conta que a única certeza é que se tratava de um pseudônimo. A principal “suspeita” é a jornalista carioca Helena Ferraz de Abreu (1906-1979). “Quanto a ela nunca ter assumido tal autoria, a explicação estaria no fato de que havia não só o preconceito contra os quadrinhos, mas também o preconceito maior ainda contra mulheres que escrevessem tal coisa”. O estudioso conclui seu texto com a esperança de que com a publicação do álbum, o mistério chegue finalmente a um desfecho.
Vilão carismático
A Garra Cinzenta é inspirada na literatura pulp e nos filmes
noir americanos, bastante populares também no Brasil daquela década. Na trama, os policiais Higgins e Miller investigam uma série de assassinatos praticados por alguém que deixa no local dos crimes um cartão com a estampa de uma garra cinzenta. O facínora, ou “scelerado”, como muitas vezes o Garra Cinzenta é chamado (a edição da Conrad mantém o português da época), se veste com chapéu, capa, blusão com o desenho de ossos cruzados e uma máscara de caveira. Mais do que o visual, são seus planos ardilosos, escapadas inacreditáveis, personalidade manipuladora e ambiciosa (e um tanto cômica) que fisgam o leitor — até porque os heróis da série não passam de arquétipos sem charme.
A isso se soma uma história ambientada em cemitérios, túneis, casas de ópio, laboratórios, becos e esconderijos. Tiroteios, lutas, mulheres fatais, poção de vida eterna, múmias, monstro mutante e até um robô (ou “autômato”, batizado de Flag) são alguns dos elementos presentes que ajudam a entender o fascínio que A Garra Cinzenta exercia nos leitores de ontem. Os de hoje precisarão de algum desprendimento para se divertir, afinal, trata-se de uma HQ feita há mais de 70 anos — mas que, justamente por todos os seus disparates, acaba ganhando um encanto a mais. Independente disso, a publicação é inestimável justamente por jogar luz em cima de um episódio importante da história das histórias em quadrinhos no Brasil.
GARRA CINZENTA: De Francisco Armond e Renato Silva. 128 páginas. Conrad Editora. R$ 39,90.
Texto publicado originalmente no Correio Braziliense.