por Pedro Brandt
Na contracapa de
Saino a percurá — Ôtra vez, Ziraldo pergunta onde foi que Marcelo Leis, autor do livro, aprendeu a desenhar, quem foi seu professor: “Quantos museus o Lelis visitou na vida? Como foi que ele conseguiu dominar, como um mestre, a mais difícil técnica de pintura do mundo, que é a aquarela?” O talento de Lelis talvez não se explique. É um dom. E basta ver alguma de suas ilustrações para entender a estupefação do pai do Menino Maluquinho.
O “ôtra vez” no subtítulo não é à toa. O álbum foi publicado pela primeira vez em 2001, de forma independente. Esgotada há bastante tempo,
Saino ganhou relançamento. Mas chega as lojas reformulada. Além das três histórias presentes na publicação original,
Saino a percurá — Ôtra vez apresenta mais 10 HQs (publicadas ao longo dos últimos 15 anos), resultando em uma coletânea da produção de Lelis com (quase todas) suas histórias em quadrinhos publicadas no mercado brasileiro.
Mineiro de Montes Claros, Marcelo Lelis, 44 anos, trabalha como ilustrador do Diário de Minas. Paralelamente, produz ilustrações para livros e histórias em quadrinhos (muitas delas, para editoras estrangeiras). “Em outubro ou novembro chega às livrarias Clara dos Anjos, adaptação para os quadrinhos da obra do escritor carioca Lima Barreto, feita por mim e pelo (roteirista) Wander Antunes, para a Companhia das Letras”, adiante Lelis.
Mineirice
“Saino a percurá”, explica Lelis, é “sair à procura”, em mineirês bem carregado. “Jão Tadim, o personagem da história que dá título ao livro, é uma mistura de galinha com pato. Encerrado ali naquela fazenda aonde um galo obrigatoriamente teria que ser de briga, ele decide sair a ‘percurá’ lugares aonde poderia ser outra coisa. E, afinal, Jão somos todos nós, não satisfeitos com os papéis preestabelecidos que nos reservam”. Muitas das referências de Lelis estão com ele desde que era criança. “Quando ia para a roça, lidava com o gado e escutava os causos dos vaqueiros”, conta.
O interior de Minas, suas histórias, cenários históricos, personagens pitorescos e jeito de falar serviram de inspirações para algumas das HQs, mas não para todas. Há espaço também para observações sobre o comportamento humano e a vida em sociedade. Tudo conduzido com bom humor e algumas doses surrealismo.
Na função de roteirista, Lelis cria histórias simples, que se resolvem em poucas páginas. Nem todas, ao chegar ao último quadro, resultam em um final surpreendente ou tão interessante quanto a arte do ilustrador. Algumas delas carecem de mais desenvolvimento. Surpresa mesmo, só em Luxúria, uma das HQs mais recentes do álbum e que mostra, inclusive, como a fluência da narrativa gráfica de Lelis melhorou com o tempo. De qualquer forma, Saino a percurá — Ôtra vez é um achado, um deleite visual fruto do talento de um artista de traço original e inconfundível.
Saino a percurá — Ôtra vez
De Lelis. 96 páginas. Zarabatana Books. R$ 59.
Entrevista:
Qual sua idade e onde nasceu?
Nasci em Montes Claros, norte de Minas Gerais, em 30 de julho de 1967.
Na contracapa, Ziraldo pergunta onde você aprendeu a desenhar. Então, qual foi a sua escola? Quem diria que são seu mestres e inspirações?
Em Montes Claros, na década de 1980 e começo dos anos 1990, era muito difícil ter acesso a publicações do dito eixo Rio-São Paulo e também do exterior. Um dos caras que me apresentaram material não encontrável por lá foi o médico e artista plástico, morto recentemente, Kosntatin Cristoff. Como eram visitas rápidas à sua biblioteca, tudo aquilo que eu via era muito pulverizado, não dava pra me afeiçoar a uma ou outra linha. Então, me considero um artista bruto, sem muitos planejamentos, moldes, portanto, sem escolas. Tenho um pensamento que me parece estúpido mas me adequei de tal forma a essa estupidez que não consigo me livrar dela: não leio muitos autores e nem vejo muitos quadrinhos porque acabo me embrenhando em minhas lembranças e nos meus métodos próprios de narrativas gráficas. O suporte é universal: aquarela, nanquim, ou photoshop todo mundo tem acesso. É claro que as inspirações estão no ar e por mais que fujamos delas, elas nos encontram.
No texto de introdução, você comenta sobre trazer para os quadrinhos a cultura brasileira. E nas histórias, isso está bem claro. Nesse sentido, qual a sua “formação”? Vem de família mesmo ou de um interesse pessoal que surgiu com o tempo?
Vou te explicar isso contando como fiz a primeira edição de Saino a percurá. Em 2001, preenchi uma penca de papéis da lei de incentivo à cultura de Belo Horizonte e escrevi lá, como justificativa, que faria um álbum de histórias em quadrinhos. Aprovado o projeto, não fazia a mínima ideia de como seriam as histórias. Com o prazo de execução do projeto de um ano na cabeça, me sentei uma tarde em minha mesa e escrevi todo o livro. Tudo que eu queria contar estava comigo desde a infância, quando ia para a roça, lidava com o gado e escutava os causos dos vaqueiros. Só criei os argumentos, mas o universo que me acompanha está materializado ali, naquele livro.
Você diria que Saino é seu trabalho mais importante? Por que? Por falar nisso, o que quer dizer “saino a percurá”?
Talvez sim. É um livro autoral, portanto, além do traço, é uma extensão do meu pensamento. “Saino a percurá” é “sair à procura”, na linguagem formal. Nos lugarejos próximos a Montes Claros e em todo o norte de minas e no sul da Bahia, é comum ouvir isso. Jão Tadim, o personagem da história que dá título ao livro, é uma mistura de galinha com pato. Encerrado ali naquela fazenda aonde um galo obrigatoriamente teria que ser de briga, ele decide Sair a “percurá” lugares aonde poderia ser outra coisa. E, afinal, Jão somos todos nós, não satisfeitos com os papéis preestabelecidos que nos reservam.
Acompanho o seu blog, e por ali vejo vários dos trabalhos que você desenvolve para o mercado internacional. Alguma previsão de algum deles sair no Brasil? E quais trabalhos em quadrinhos você está desenvolvendo atualmente?
Do jeito que o mercado de quadrinhos tem evoluído por aqui, eu não descarto uma edição brasileira qualquer dia desses. Às vezes alguma editora daqui me sonda, mas eu passo a bola pros franceses porque eles detêm os direitos internacionais da obra. Estou trabalhando atualmente em Gueules noires, em parceria com o escritor Antoine Ozanam, para a editora francesa Casterman.
Quando poderemos ver um próximo trabalho autoral?
Escrevi um novo livro e estou esperando algumas respostas. Não dá pra falar muito porque não há nada de concreto ainda. Em outubro/novembro chega às livrarias Clara dos Anjos, adaptação para os quadrinhos da obra do escritor carioca Lima Barreto, feita por mim e pelo Wander Antunes, para a Companhia das Letras.
Você ainda é ilustrador do Estado de Minas? Acha que conseguiria viver só da sua produção em quadrinhos?
Sim, sou ilustrador do jornal Estado de Minas. Além disso, ilustro livros infantis e juvenis para editoras de São Paulo e do Rio. Difícil responder se posso viver só de quadrinhos. Hoje em dia ainda não. Vivo também deles, mas não só deles. Apesar de trabalhar para um mercado muito sólido como é o franco/belga, preciso de mais estrada por lá para me arriscar a uma dedicação exclusiva. Vejo boas perspectivas para que isso aconteça em breve, mas estipular datas é temerário. Enquanto isso, vou construindo minha carreira por lá e por aqui.